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A GRAVIDADE DE UM ESTILO: CAIR EM MODA |
Viver nesse tempo atravessado por várias avalanches políticas tem surtido um efeito de aprendizado no que toca à alteração ou a ampliação do sentido da palavra “queda”, especialmente no que concerne à frequência de suas ocorrências. De feito episódico ou extraordinário, a queda se vem transformando em ritual rotineiro e quase seriado.
Nos últimos dias, tem tocado ao político italiano Silvio Berlusconi desempenhar o papel de sujeito-objeto caído, em nível internacional. Ele foi antecedido por Papandreu, que perdeu o cargo de primeiro ministro na Grécia, dando a sua “cota de sacrifício” como único meio de salvar o seu País da exclusão da Zona do Euro. Nessa história se afigura a queda com laivos de generosidade por parte daquele que se rende ao chão, emprestando, assim, uma quase sensatez ao gesto do “corpo” que cai, pois o faz em nome das alturas a serem garantidas. A Espanha aguarda na fila para oficializar a queda daqueles que se encontram no topo do poder e que, provavelmente, serão rechaçados nas eleições a serem realizadas no próximo dia 20 de novembro. Mas um pouco antes, tivemos a “Primavera Árabe” com a queda de governantes que pareciam aquisições definitivas na cúpula do poder em seus países.
Diante dessas quedas monumentais prova-se a impressão de que cair está na moda, mas não de qualquer maneira, há um jeito em voga de se chegar ao chão que guarda distância antagônica do estilo “queda livre”. O sujeito, em seu primeiro estágio de pendência, recita um papel adverso à precipitação, evidenciando-se como corpo não afeito à força gravitacional, em razão da sua natural superioridade a qual, em hipótese alguma admite a possibilidade de emprego dos princípios que regem a força de atração dos corpos “comuns”. Nesta dinâmica, a expressão acima, advérbio que indica uma relação no espaço, adquire caráter de posição irreversível de onde só se move por sobre-elevação, motivo pelo qual não carece mirar o que está abaixo.
Desconectados dos estratos inferiores ao seu patamar elevado, os corpos se colocam acima das leis da física política e o fazem, justamente, pela invocação de que seus pesos extravultosos, são imunes às pesagens. Quanto mais se compenetram de que cada uma de suas moléculas pesa toneladas, mais se acham inatingíveis pelas forças que desejam a sua queda. Para eles, ser pesado é ser forte como rocha, se esquecendo de que esse juízo exige sensata complementação: as quedas das pedras pesadas costumam ser devastadoras.
Passado este primeiro degrau na descida, o descente adota uma atitude de incorporação à órbita e avisa em tom exaltado de quem acaba de aterrissar que ali está para virar o jogo. Feito ampulheta, começa a devolver a carga entornada sobre si contra outros corpos, na tentativa de transformar-se em herói de percurso. Esta disposição vem acompanhada de uma elevação no tom da voz e de um rebaixamento no teor do discurso. Como efeito imediato, chega-se ao terceiro degrau, posição ainda elevada e, portanto, dotada de destaque para a observação de danos espalhados pelo ventilador. No próximo estágio há sinais de vertigens e de rendição a uma qualidade atípica: ser humano.
Poder errar, esquecer, confundir, ter fraquezas... Tudo isso se converte em sinal de humildade calculada como necessária à interrupção da descida. É uma manobra que tem como expectativa o retorno aos andares superiores, ou seja, reconhece-se que é necessário pagar um preço em formato de declaração de culpa e pedido de desculpa numa dramaturgia dirigida aos sentimentos piedosos, retirando da questão o seu conteúdo político e preenchendo o espaço deixado com assertivas morais tais como: errar é humano, quem não erra?!
Assim, na evolução de uma queda faz medrar o ser humano, elemento escasso na natureza do topo. Parece que o homem sofre uma mutação quando do auge do poder de forma a perder a sua humanidade, que é recuperada quando do infortúnio do curso de incontroláveis descidas, dando-se a impressão de que é difícil manter-se humano nas alturas.
A humanidade despertada nestes corpos pendentes tem, entretanto, um estilo peculiar. Trata-se de uma espécie de sinônimo de inocência natural. É uma sugestão de um humano sem Lei, sem Estado, sem civilização, portanto, não passível de julgamento. É este o status de humanidade perseguido pelos pesos que se precipitam contra o chão de sultanatos, repúblicas e de altos cargos em nossos dias.
Outra possibilidade de leitura seria a comparação desses corpos políticos com as crianças na mais tenra infância, às quais não se pode atribuir culpas (no sentido jurídico) por seus erros e, em compensação, suas falhas são tomadas, pedagogicamente, como oportunidade para seu próprio amadurecimento.
As duas possibilidades de compreensão aventadas têm, como defeito, a falta de respaldo moral e até lógico. O pressuposto para a ocupação em espaço de tão elevado poder é justamente a competência para tal, não cabendo, portanto, o uso de uma “inocência original” para se manter nas mais altas esferas de decisão, muito menos se pode alegar, em favor do incomodado, a sua irrecuperável infantilidade.
À guisa de ponto final, esse escrito sugere a necessidade de se refletir sobre a distância entre os apelos feitos pelos descentes políticos, e as formas corriqueiras com que são apreciados os pedidos de clemência feitos pelos suspeitos comuns. A presunção de inocência destes últimos tem sido superada por condenações sumárias nos tribunais midiáticos em pleno início de investigação do crime. E como estes suspeitos quase nunca estiveram em qualquer degrau elevado do poder (a exceção de alguns envolvidos com o crime organizado), não têm nem mesmo a chance de descer em câmera lenta, pois seus corpos escorregam quanto menos pesados são em termos de substância típica do poder, a exemplo da já clássica figura do “ladrão de galinha”. Fica assim uma provocação: entre todos os descentes quais são os mais decentes?
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