ISSN 1982 - 0283
Cultura urbana e educação
Ano XIX – Nº 5 – Maio/2009
Ministério da
Educação
Secretaria
de Educação a Distância
SUMÁRIO
Cultura urbana e educação
Aos professores e professoras ................................................................................... 3Rosa Helena Mendonça
Apresentação da série Cultura urbana e educação .................................................. 4Ecio Salles
Texto 1 – A posse da linguagem ........................................................................................ 11Inclusão subjetivaIvana Bentes
Texto 2 – O conhecimento do território ................................................................. 20Conhecer o território, viver a culturaJorge Luiz Barbosa
Texto 3 – Práticas inovadoras ................................................................................. 26
Novas práticasMarcus Faustini
3
Cultura urbana e educação
Aos professores e professoras,
Urbano vem do latim e significa “o que é próprio da cidade”. Cultura urbana seria, por extensão, a expressão de grupos que desenvolvem sua arte nas ruas, nos bairros, em espaços públicos que são democratizados, criando novas sociabilidades. São projetos com um potencial transformador, uma vez que gestados nas/pelas comunidades, em especial nas chamadas periferias. Na maioria jovens, esses atores sociais estão ou estiveram na escola, tecendo redes entre educação e cultura.
É importante que o espaço escolar incorpore essas manifestações culturais e suas linguagens específicas, possibilitando recriações e inovações, num processo de permanente mudança.
Atento a essa diversidade de expressões e à necessidade de um diálogo consistente entre a cultura escolar e aquela que emerge das comunidades, o Salto para o Futuro tem se empenhado na produção de séries que buscam trazer, por meio de múltiplas vozes, reflexões acerca dessas práticas contemporâneas.
Para a consultoria desta série, contamos com a colaboração de Ecio Salles, escritor e estudioso da cultura hip-hop no Brasil, entre outros temas relacionados à cultura urbana. Ecio foi coordenador de pesquisa e conteúdo do Grupo Cultural AfroReggae, e atualmente é pesquisador na ECO/UFRJ e ainda consultor de programas voltados para ações culturais.
Os textos que compõem a publicação eletrônica Cultura urbana e educação, bem como a série televisiva, têm como proposta construir pontes entre os espaços/territórios que nas cidades são palcos de expressões culturais diversas e as escolas, potencializando a relação educação, cultura e cidadania.
Rosa Helena Mendonça1
1 Supervisora pedagógica do Programa Salto para o Futuro.4
APRESENTAÇÃO
Cultura urbana e educação
Ecio Salles1
Em um conhecido poema, João Cabral de Melo Neto escreve que um galo sozinho não é capaz de produzir a manhã. Para isso, seria necessário que o canto deste galo se unisse ao de outros, até que o conjunto sônico de todos os galos finalmente tecesse a manhã. Essa é uma forma poética – e, por isso mesmo, não menos importante que qualquer outra – de narrar a força do coletivo, a importância de os indivíduos ou grupos de indivíduos se articularem no sentido de potencializar suas ações.
O campo gravitacional ao qual pertence a expressão cultura urbana, de acordo com a proposta que embasa esta série do Salto para o Futuro, reúne palavras que se atraem mutuamente: processo, linguagem, subjetividade, experiência. São termos diferentes entre si, mas que deixam – especialmente se pensadas em face do conjunto cultura e educação – perceber um destino compartilhado: a perspectiva de ampliação ou universalização dos direitos e o aprofundamento democrático.
Estes são pontos definidores das estratégias dos grupos que desenvolvem ações culturais na cidade. Em primeiro lugar, a cultura é entendida como um modo de estar na vida. Nesse contexto, deixa-se de lado o ponto de vista da cultura como representação e passa-se a entendê-la a partir de suas estratégias e procedimentos, que deslancham processos continuados de ação criativa com a vida. A cultura pensada como processo atua no cotidiano das pessoas, modificando-as produtivamente, potencializando os sujeitos das ações, incidindo sobre a comunidade: reforça laços, estimula a conquista de autoestima, produz pensamento sobre o lugar de cada um na rua, no bairro, na cidade, no país, no mundo, abrindo-se à possibilidade de transformar e de democratizar esse processo. Trata-se de investir nos processos micropolíticos, balizados na consideração do desejo e da produção de subjetividades, capazes de obter efeitos na macropolítica: reinventar a cidade.
Trata-se de estimular o desejo, experimentar todas as linguagens, compartilhar a emoção, a inteligência, potencializar e empode
1 Mestre em Literatura Brasileira pela Universidade Federal Fluminense e doutorando em Comunicação e Cultura pela Escola de Comunicação da UFRJ. Consultor do Programa Onda Cidadã (Itaú Cultural). Entre 1997 e 2006 foi Coordenador de Pesquisa e Conteúdo do Grupo Cultural AfroReggae. Consultor da série.5
rar os sujeitos e os discursos, tomar posse da própria existência. Como percebe Ivana Bentes, “é preciso tomar posse das linguagens e dos meios, tomar posse das câmeras, pois as questões de pertencimento e autoestima passam pela potência da imagem e da visibilidade”2. E também garantir o direito à fruição, ao gozo estético.
Por um lado, a cultura designa a capacidade de determinados grupos em desenvolver o seu trabalho com organicidade e legitimidade nas comunidades onde se estabeleceram. Nos últimos anos, os movimentos dos jovens – em especial dos jovens negros e pobres – têm sido responsáveis pela produção de uma nova subjetividade a partir das periferias do Brasil. Transformaram suas comunidades, a partir de uma dinâmica que combina comportamentos de resistência com os das redes sociais de produção, inaugurando espaços de criação e de “trabalho comum”3.
É notável como, no mundo inteiro, o fenômeno da proliferação das favelas tem se tornado um elemento marcante do crescimento dos centros urbanos. Segundo relatório do Programa de Assentamentos Humanos das Nações Unidas, os moradores de favela representam 78,2% da população urbana dos países menos desenvolvidos e constituem um terço da população urbana global. E pelo menos metade dessa população é composta por jovens com menos de vinte anos de idade (apud Davis, 2006). Sob um determinado ponto de vista, esse fenômeno é preocupante, uma vez que resulta do aumento da desigualdade social, do desemprego e da miséria, além de favorecer o recrudescimento da violência urbana.
Por outro lado, nos últimos anos o campo da cultura vem desempenhando um papel cada vez mais importante em nossa vida social, econômica e política. Nesse mesmo período, a voz das periferias, “falando alto em todos os lugares do país”, tem-se apresentado como, nas palavras de Hermano Vianna, “a novidade mais importante da cultura brasileira na última década”4.
Os meios de expressão aí encontrados são os mais diversos, desde o saquinho de pão impresso, distribuído nas padarias de Vitória pelo Projeto Forninho e funcionando como um jornalzinho regional; os saraus poéticos promovidos pela Cooperifa nos bares de Capão Redondo, na periferia de São Paulo, transformando o bar no verdadeiro “espaço público” das favelas; as intervenções públicas e midiáticas do coletivo Bijari em áreas gentrificadas de São Paulo,
2 BENTES, Ivana. 2007. Texto inédito, produzido para o Programa Onda Cidadã, do Itaú Cultural.
3 NEGRI & COCCO, 2005, p. 57.
4 Texto publicado pela TV Globo como anúncio em vários jornais brasileiros, no dia 08/04/2006, data da estréia do programa Central da Periferia. Depois republicado em formato de manifesto em sites na Internet, como o Overmundo.6
contrapondo-se à limpeza étnica urbana em curso; T-bone Açougue Cultural e suas atividades em Brasília (chegou a ter dez mil livros em seu açougue para empréstimo gratuito à população); o pessoal do Media Sana em Pernambuco, com sua militância política e estética, juntando vídeo e música; o Enraizados, e suas múltiplas atividades através do hip-hop, falando a partir de Nova Iguaçu para o Brasil inteiro e para alguns países no mundo; a incrível experiência do Espaço Cubo, em Cuiabá, com a produção de festivais de rock independentes, produzindo uma economia local tão consistente que gerou uma própria; ou, ainda, o trabalho da Fundação Casa Grande, no Ceará, em que as crianças participantes assumiram a gestão do projeto.
E mais, iniciativas como as do Grupo Cultural AfroReggae, do Observatório de Favelas, da Cia. Étnica de Dança e da CUFA, no Rio; do Eletrocooperativa e do Bagunçaço, na Bahia; da Casa do Zezinho e a do Hip-Hop, em São Paulo... Inúmeros outros projetos e experiências espalhados pelo país têm em comum a conjugação dos aspectos mencionados acima com uma profunda e consistente inserção em seus territórios de atuação. Nem todos os grupos têm sua origem nos locais em que atuam (e mesmo essa “origem” não seria por si garantia de legitimidade). Aqueles que obtiveram os melhores resultados nesse processo são os que, ao entrarem em contato com o contexto social no qual investiram, a um só tempo modificaram e se permitiram modificar por ele.
Essas iniciativas são, talvez, representativas de uma nova modalidade de arte. E o artista hoje já não pode deixar-se levar pelo mito romântico do ser solitário, inspirado, acima das coisas do mundo. Ele se torna uma espécie de operário, de produtor ou operador de ações criativas, sempre inserido na mobilização coletiva, em que cada ponto da rede é um foco de irradiação cultural. Assim, caem por terra as noções consolidadas sobre a relação centro/periferia, a dependência em relação às instituições reconhecidas e os clichês sobre inclusão social, cidadania, precariedade, reivindicação e conflito. Está em suas mãos a potência de reinventar a subjetividade coletiva, os meios de produção, de troca e de consumo, a própria mídia.
Nas periferias do Brasil, os casos em que essa forma de articulação foi determinante para o êxito das iniciativas – especialmente no que se refere a projetos ligados à educação e à cultura – são numerosos. Nessas organizações, a música, a dança, o teatro, o circo e a capoeira, entre outras, além de formas estéticas, são também linguagens que promovem um certo diálogo, aquele capaz de reescrever trajetórias de vida, modificar pessoas e comunidades, repensar a vida e transformá-la. Como afirma George Yúdice em seu estudo sobre o assunto, a cultura hoje “está sendo crescentemente dirigida 7
como um recurso para a melhoria sociopolítica e econômica”5.
Nessa perspectiva, abre-se a possibilidade de investimento, a partir do campo cultural, em outra vida possível, afetando e associando-se ao movimento da vida social, numa recusa decidida de acomodar-se à ordem dominante. É por isso que, apesar de a forma de organização pelas ONGs encontrar limites à sua atuação – o risco de cooptação, devido à sua adesão à grande mídia; o desvio do sentido de suas lutas ao participar de redes abrangentes, com setores das classes dominantes, etc. –, no fim das contas não cessam de elaborar a cultura popular como “gestos ritualísticos de produção de subjetividade autônoma por parte dos pobres”, como define Muniz Sodré6. Ou, como acredita Peter Pál Pelbart, “esse grupo vive na carne a constatação de que o capital maior é a própria vida, e que sua potência de expansão e de constituição extrapola o poder do capital e o sequestro da vitalidade social dali advinda. É uma pequena revolução biopolítica”7.
O processo de articulação não se dá apenas no interior das periferias. Uma vez realizado esse movimento, as próprias periferias, a partir da ação dos grupos organizados, promovem um outro nível de articulação, agora com setores externos às comunidades – agências de fomento, empresas, governo, mídia... –, visando potencializar seus projetos e atividades.
Esses agenciamentos tendem a se complexificar ainda mais no momento em que as desigualdades sociais e a violência urbana passam a ocupar o centro das preocupações. Nesse momento, algumas organizações, em especial aquelas que se valem da cultura como recurso, passam a investir fortemente na criação de modos de aproximação entre os espaços sociais antagonizados por questões sociais, raciais/étnicas ou geográficas.
Por outro lado, uma parte significativa dos grupos atuantes nas periferias, notadamente os que se valem da cultura para desenvolver as suas ideias, atuam na direção contrária: no questionamento e constante enfrentamento das “fronteiras”. A impressão inicial é a de que identificaram os fossos que dividem e separam as pessoas – os quais passam por questões sociais, raciais, econômicas, geográficas, de gênero – e decidiram “construir pontes” sobre esses abismos.
Seu desafio é justamente o de criar pontes capazes de abrir ao menos uma via de acesso
5 YÚDICE, George. A conveniência da cultura: usos da cultura na era global. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2004.
6 SODRÉ, 2006, p. 221.
7 PELBART, Peter Pál. Texto inédito, produzido para o Programa Onda Cidadã, do Itaú Cultural. 8
de um lado a outro. Mas aqui essa “ligação” não teria nenhum conteúdo transcendente. Na prática, além de se investir na produção de redes em seu próprio campo de atuação, trata-se de ligar pontos dissociados na experiência social: favela e asfalto, elite e popular, ONGs e empresas. Eles não solucionam os problemas do mundo, não erradicam as desigualdades ou os conflitos, até porque são ainda poucos e detentores de escassos recursos para isso. No entanto, promovem as articulações – constroem as pontes – que tornarão viáveis as perspectivas de travessia, de contato, de diálogo. Um diálogo que terá de ser qualificado no percurso, porque, ao mesmo tempo em que se dialoga, também se medem forças. No final, apesar das contradições, ele traz à luz do dia sinais “de um discurso que é diferente – outras formas de vida, outras tradições de representação”8.Se essa diferença será capaz de mudar o mundo é difícil dizer, mas, desde já, compõe uma força constituinte de um novo tempo, atuante e imprevisível.
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