CENÁRIOS URBANOS EM CLARICE LISPECTOR (2 - FINAL)
Fátima Cristina Dias Rocha (UERJ)
A rua, espaço em que se dá a iniciação sexual violenta, recebe a expressão designativa de sacrifício: “imolação”, termo que alude ao aspecto ritualístico da narrativa.
Deste modo, Clarice Lispector ressemantiza de maneira singular a imagem da rua como o espaço do contingente, do “dinâmico que aguça a potência do olhar” (GOMES, 1994: 72). Se, em “Preciosidade”, a adolescente caminha para o “imprevisível da rua” (LISPECTOR, 1983: 99), esta ganha valor mítico e simbólico, transformando-se no lugar de passagem para uma outra condição. Como a rua, também a cidade perde seus aspectos familiares, deixando-se invadir pela tensão do espaço liminar e ritual:
A pedra do chão avisava. Tudo era eco e ela ouvia, sem poder impedir, o silêncio do cerco comunicando-se pelas ruas do bairro, e via, sem poder impedir, que as portas mais fechadas haviam ficado. (...) Na nova palidez da escuridão, a rua entregue aos três. (Idem, 100).
Realizado o rito de passagem e sua imolação, o percurso se consuma com o se constituir mulher, transformação a que se liga a troca de sapatos: “– Preciso de sapatos novos! (...) uma mulher não pode andar com salto de madeira, chama muita atenção!” (Idem, 105-6).
Outra história de iniciação adolescente é o conto “Mistério em São Cristóvão”. Desta vez, a violação é simbólica, e tem lugar no jardim de uma próspera família, no bairro senhorial de São Cristóvão – no espaço da casa, portanto. Nesse jardim, ganham destaque os “jacintos rígidos perto da vidraça” (LISPECTOR, 1983: 129). São eles que chamam a atenção dos três rapazes mascarados – um galo, um touro e um cavalheiro antigo com uma máscara de diabo –, que decidem colhê-los. Quando o galo quebra o talho da flor, a mocinha aparece na janela, ocorrendo uma confrontação ritualística que provoca profundas ressonâncias nos participantes da cena: “Os quatro, vindos da realidade, haviam caído nas possibilidades que tem uma noite de maio em São Cristóvão. (...) Um galo, um touro e um demônio haviam desatado a maravilha do jardim...” (Idem, 132).
Assim, mais uma vez, o cenário urbano é despido de seus traços familiares para adquirir ressonâncias singulares – mágicas, oníricas, alegóricas: “Mas a casa continuava entre trevas e sapos. E, no jardim saturado de perfumes, os jacintos estremeciam imunes” (Idem, 131). Se, como afirma Marta Peixoto, “o jacinto branco, o rosto branco da moça, e, por fim, o fio do cabelo branco representam o vulnerável corpo feminino que exibe as marcas do ataque” (2004: 182), a “terra proibida do jardim” (LISPECTOR, 1983: 131) reatualiza o belo “Cântico dos cânticos” e sua celebração do corpo feminino: “És jardim fechado,/Minha irmã, noiva minha,/És jardim fechado,/Uma fonte lacrada.../...A fonte do jardim/É poço de água viva/que jorra, descendo do Líbano!” (Apud CHEVALIER E CHEERBRANT, 1989: 514).
Segundo Lúcia Helena (1996: 27), nos contos “Mistério em São Cristóvão” e “Amor”, a natureza aparece como uma metáfora das forças poderosas e secretas com as quais as protagonistas mantêm um contato temeroso. Afirmação semelhante pode ser feita a respeito da figuração clariciana de ruas como a do Riachuelo e da Praça Tiradentes, no conto “Devaneio e embriaguez de uma rapariga”. Nessa história, a quebra da rotina diária permite que a jovem esposa se entregue a sensações e pensamentos dispersos e ambivalentes, em que imagina sua vida aberta a todas as possibilidades. O devaneio é representado por uma cadeia metafórica que modula o desejo e o erotismo, os quais recobrem, como em outros textos da autora, o jogo entre o espaço interior e o espaço externo. Com efeito, no início do conto, os ecos da cidade misturam-se às sensações da personagem – sensações carregadas de sensualidade, que se estende à descrição dos objetos e da rua: “Ai que quarto suculento! ela se abanava no Brasil. O sol preso pelas persianas tremia na parede como uma guitarra. A Rua do Riachuelo sacudia-se ao peso arquejante dos elétricos que vinham da Rua Mem de Sá” (LISPECTOR, 1983: 8). A “alma diária” da rapariga volta a perder-se no sábado à noite, numa tasca da Praça Tiradentes; e, no estado de embriaguez, é a força pulsante da sexualidade que torna a modular, agora mais intensamente, a relação da rapariga com a cena exterior: “E quando no seu decote redondo – em plena Praça Tiradentes!, pensou ela a abanar a cabeça incrédula – a mosca se lhe pousara na pele nua? Ai que malícia” (Idem, 17).
Mais um exemplo desse diálogo entre a paisagem íntima e o espaço externo pode ser flagrado no conto que dá título ao livro: “Os laços de família”. Nele, quando Catarina e a mãe se encaminham para a estação de trem, uma freada súbita do táxi lança-as uma contra a outra, provocando a ruptura com os papéis prontos e estabelecidos de filha e de mãe. A primeira marca dessa ruptura – que o texto nomeia como um “desastre” e uma “catástrofe” – é a sensação de uma “intimidade de corpo há muito esquecida, vinda do tempo em que se tem pai e mãe”(LISPECTOR, 1983: 109). Rompida a crosta dos sentimentos e das palavras previsíveis e estratificadas, mãe e filha não sabem o que dizer ou fazer, temendo olhar-se diretamente. O constrangimento – outra marca da descontinuidade – só se ameniza quando a mãe já está instalada no trem, permanecendo, entretanto, a sensação de que uma palavra deveria ter sido dita e não foi, ficando guardada, na sua vitalidade, em algum recanto das relações familiares: “Parecia-lhe que deveriam ter dito assim: sou tua mãe, Catarina. E ela deveria ter respondido: e eu sou tua filha”(Idem, 111).
Enquanto volta para casa, Catarina experimenta, sem temê-los, sentimentos contraditórios, e sua disposição interior a faz ver e vivenciar o cotidiano e a cidade de forma renovada:
E de tal modo haviam-se disposto as coisas que o amor doloroso lhe pareceu a felicidade – tudo estava tão vivo e tenro ao redor, a rua suja, os velhos bondes, cascas de laranja –, a força fluía e refluía no seu coração com pesada riqueza. (Idem, 112).
Passagem significativa na cartografia do urbana proposta por Clarice, é “o caminho aberto pela sua mãe que lhe ardia no peito” que permite a Catarina relacionar-se harmonicamente com a cidade:
Estava muito bonita neste momento, tão elegante; integrada na sua época e na cidade onde nascera como se a tivesse escolhido. (...) Espiava as pessoas com insistência, procurando fixar naquelas figuras mutáveis seu prazer ainda úmido de lágrimas pela mãe. (Idem, 112).
Disposta a “usufruir da largueza do mundo inteiro” (Idem, 113), Catarina decide vivenciar com o filho o que começara a experimentar com sua mãe: toma-o pela mão e com ele sai a passeio, pela praia, num gesto de ousadia, pois o sábado “era de seu marido”. O conto se encerra com a perspectiva deste personagem, para o qual a cidade se converte no espaço ameaçador em que sua esposa e filho desaparecem pela praia, "compreendendo-se dentro do mistério partilhado” (Idem,115); espaço em que a mulher toma “o momento de alegria – sozinha” (Idem, 117).
Não se esgotaria aqui a peculiar leitura/escrita da cidade carioca inaugurada por Clarice Lispector em Laços de família. Entretanto, os limites deste trabalho obrigam-me a buscar, em outras obras da autora, mais alguns traços da sua cartografia sensível do Rio de Janeiro.
Restringindo-me apenas aos livros de contos, destaco, em Felicidade clandestina (1971), o texto “Perdoando Deus”, em que o espaço da rua volta a se transformar em local de perigo, no qual a personagem é forçada a reconhecer sua situação de desamparo. No início da narrativa, uma mulher descreve, em primeira pessoa, a prazerosa experiência de caminhar livremente pela Zona Sul do Rio de Janeiro, vivenciando a harmonia com a paisagem urbana e a plenitude de um sentimento maternal totalizante:
Eu ia andando pela Avenida Copacabana e olhava distraída edifícios, nesga de mar, pessoas, sem pensar em nada. Ainda não percebera que (...) estava era de uma atenção sem esforço, estava sendo uma coisa muito rara: livre. (...) Tive então um sentimento de que nunca ouvi falar. Por puro carinho, eu me senti a mãe de Deus, que era a Terra, o mundo (LISPECTOR, 1987: 40).
Esse pacto de comunhão e proteção ideais é rompido bruscamente quando a mulher avista um enorme rato morto, que faz irromper o susto e a ameaça de aniquilamento: “Em menos de um segundo estava eu eriçada pelo terror de viver, em menos de um segundo estilhaçava-me toda em pânico, (...)” (Idem, 41). Confrontando-se com a sua vulnerabilidade, a mulher vive a desagregação e a desordem íntima, a que se segue a vontade de vingança contra a autoridade onipotente que a ferira com sua “grosseria”. Entretanto, a personagem vislumbra a possibilidade de transformar a dimensão trágica de seu sofrimento em sabedoria – possibilidade que já se anuncia no modo verbal presente no título do conto. E o texto termina com o reconhecimento da alteridade, do “mundo que também é rato”, percepção que se aproxima da experiência radical por que passa a personagem G.H.: “É porque ainda não sou eu mesma, e então o castigo é amar um mundo que não é ele. (...) É porque só poderei ser mãe das coisas quando puder pegar um rato na mão” (Idem, 43).
Situação semelhante – a do encontro e confronto com a alteridade, no espaço público da rua – será dramatizada no conto “A bela e a fera ou a ferida grande demais”, do livro A bela e a fera, publicado postumamente (1979). Nesse conto, quando a mulher linda e rica se depara – também na Avenida Copacabana – com um mendigo sem uma perna e com uma grande ferida na outra, ela, a protagonista, vivencia um “momento único”, em que um ser tido e percebido como abjeto “ serve paradoxalmente de espelho, no qual se cristaliza uma aterrorizante e mortal imagem invertida” (MARTINS, 2004: 29). Ainda nas palavras de Gilberto Martins, o corpo – biológico e/ou urbano – metaforiza os embates da história; e a experiência individual reproduz, em miniatura, a lógica do processo social.
Também representativo da cartografia existencial da cidade levada a efeito por Clarice Lispector é o conto “A procura de uma dignidade”, do livro Onde estivestes de noite (1974). Nesse texto, a Sra. Jorge B. Xavier se vê perdida nos labirintos subterrâneos do Maracanã: “Então a senhora seguiu por um corredor sombrio. Este a levou a outro mais sombrio. (...) E aí este corredor a levou a outro que a levou por sua vez a outro” (LISPECTOR, 1994: 7). Antes de se perder “naquele emaranhado de caminhos sem fim” (Idem, 9), a senhora estava protegida na ordenação do mundo cotidiano, com a dignidade aparente que o casamento lhe atribuía; quando se perde, seu mundo se desequilibra. O labirinto, signo da desorientação dos sentidos, leva a velha senhora ao questionamento de sua existência resignada e vazia. Na volta para casa, as ruas da cidade também se lhe afiguram como um labirinto: “Daí a pouco notou que rodavam e rodavam mas que de novo terminavam por voltar para uma mesma praça” (Idem, 13). Em seguida, o labirinto projeta-se no interior da própria personagem, no momento em que esta se percebe capaz de desejo – dando-se conta da “fome dolorosa de suas entranhas” (Idem, 16) e da paixão pelo cantor Roberto Carlos: “Ali estava, presa ao desejo fora de estação assim como o dia de verão em pleno inverno. Presa ao emaranhado dos corredores do Maracanã. Presa ao segredo mortal das velhas” (Idem, 19). Desta forma, um espaço emblemático da cidade desdobra-se na imagem do labirinto e converte-se em metáfora da errância exterior e interior da personagem, que busca uma saída para as angústias e os descaminhos da velhice e da rejeição.
Se, por um lado, o conto “A procura de uma dignidade” reedita algumas linhas da cartografia do urbano elaborada em Laços de família, por outro lado, a história da Sra. Jorge B. Xavier já aponta para o desvio que a ficção de Clarice assumiria abertamente no livro A Via crucis do corpo, também publicado em 1974. Embora não seja possível, nos limites deste ensaio, indicar a riqueza de aspectos dessa “hora do lixo” da ficção de Clarice – palavras usadas pela escritora na “Explicação” do livro –, vale ressaltar que alguns de seus contos colocam em cena, literalmente, uma sexualidade transgressora, que se alia a um tom farsesco e sensacionalista. Além das histórias que tratam de sexo e violência, ambientadas na Praça Mauá ou em Copacabana, há ainda os contos autobiográficos, cujo cenário é o Leme, descrito com a intimidade de quem ali reside.
Chegando ao fim deste percurso pelo Rio de Janeiro tal como Clarice Lispector o representou em seus contos, reconheço que romances como Uma aprendizagem ou O livro dos prazeres (1969) e A hora da estrela (1977) muito acrescentariam ao mapeamento clariciano da cidade carioca, atribuindo-lhe novas direções e contornos. Tais romances serão matéria, portanto, de um próximo ensaio. Mas não posso concluir este primeiro percurso pelo Rio de Janeiro de Clarice Lispector sem mencionar o romance em que encontrei a sugestão para o título do presente trabalho: A paixão segundo G.H. (1964), história de uma progressiva epifania, narrativa que se situa no espaço implícito e explícito da ritualização.
Affonso Romano de Sant’Anna (2003), ao analisar o processo de ritualização da narrativa e da personagem, chama a atenção para a atmosfera de celebração primitiva de ritos ancestrais que se instaura no quarto da empregada – espaço estranho onde G.H. experimentará espantos desconhecidos até então. Assim como, estando em sua própria casa, G.H. é expulsa da familiaridade, ao tirar os olhos do quarto e fitar a favela sobre o morro, a personagem começa a ter visões fantásticas, descortinando o “império do presente”: extravasa o tempo, passando pelo Estreito de Dardanelos e por mercadores assírios, vai ao passado e ao futuro, e começa a ver: “(...) então vi como quem nunca vai contar. Vi, com a falta de compromisso de quem não vai contar nem a si mesmo. Via, como quem jamais precisará entender o que viu” (LISPECTOR, 1977: 125). Trata-se, como diz a personagem, de uma “meditação visual” (Idem, 132), cena alucinatória, no limiar do tempo e do espaço: sob o sol, G.H. atravessa “El Khela, o nada”, o “Tanesruft, o país do medo”, o “Tiniri, terra além das regiões da pastagem”(Idem, 130). Passagens como esta – a que se somam todas as outras aqui comentadas – permitem-me afirmar que Clarice Lispector, em sua leitura do espaço urbano carioca, privilegia a dimensão erótica da cidade, na acepção que lhe dá Roland Barthes: “O erotismo da cidade é o ensinamento que podemos retirar da natureza infinitamente metafórica do discurso urbano”(2001: 229).
A elaboração de uma “língua da cidade” (BARTHES, 2001: 231): seria este o “tesouro” que G.H. estava procurando?
BIBLIOGRAFIA
BARTHES, Roland. A aventura semiológica. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
Cadernos de Literatura Brasileira. Clarice Lispector. Rio de Janeiro: Instituto Moreira Salles. N. 17/18, dez. 2004.
CHEVALIER, Jean e CHEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1989.
GOMES, Renato Cordeiro. Todas as cidades, a cidade. Rio de Janeiro: Rocco, 1994.
LISPECTOR, Clarice. A paixão segundo G.H. 5ª ed. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1977.
––––––. Um sopro de vida (pulsações). Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1978.
––––––. Laços de família. 17ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1983.
––––––. A via crucis do corpo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.
––––––. Felicidade clandestina. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1987.
––––––. Onde estivestes de noite. 7ª ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1994.
––––––. A bela e a fera. Rio de Janeiro: Rocco, 1999.
LÚCIA HELENA. Ficção e gênero (gender) na literatura brasileira. In: Gragoatá. Niterói: EDUFF, 1996. N. 1 (2. sem. 1996), p. 23-34.
MARTINS, Gilberto. Um passeíto pelas ruas do Rio – O espaço do perigo. In: PONTIERI, Regina (org.). Leitores e leituras de Clarice Lispector. São Paulo: Hedra, 2004, p. 21-34.
NUNES, Benedito. A paixão de Clarice Lispector. In: CARDOSO, Sérgio (et al). Os sentidos da paixão. São Paulo: Companhia das Letras, 1987. p. 269-81.
PECHMAN, Robert Moses. Pedra e discurso: cidade, história e literatura. In: Semear. N. 3. Rio de Janeiro: NAU, 1999, p. 63-72.
PEIXOTO, Marta. Ficções apaixonadas. Rio de Janeiro: Vieira & Lent, 2004.
ROSENBAUM, Yudith. Clarice Lispector. São Paulo: Publifolha, 2002.
SANT’ANNA, Affonso Romano de. A paixão segundo G.H.: o ritual epifânico do texto. In: Que fazer de Ezra Pound. Rio de Janeiro: Imago, 2003, p. 77-108.
........................................................................................................................................................... |
Nenhum comentário:
Postar um comentário