quarta-feira, 1 de junho de 2011

CARVALHO - A POESIA URBANA DE CHICO BUARQUE (3 – FINAL)

[Fonte - NAU LITERÁRIA A Poesia Urbana de Chico Buarque 1 Revista eletrônica de crítica e teoria de literaturas Artigos da seção livre PPG-LET-UFRGS – Porto Alegre – Vol. 03 N. 01 – jan/jun 2007]

CARVALHO - A POESIA URBANA DE CHICO BUARQUE (3 – FINAL)

Vivian C. Alves de Carvalho


5 Quinta parte

Em 1998, Chico lança um álbum intitulado As Cidades, no qual encontra-se Carioca, uma composição urbaníssima, mas de uma leveza até então inédita. Trata-se de uma declaração de amor à cidade do Rio de Janeiro, mas um Rio de Janeiro diferente daquele que aparecia em suas canções anteriores:

Gostosa
Quentinha
Tapioca
O pregão abre o dia
Hoje tem baile funk
Tem samba no Flamengo
O reverendo
No palanque lendo
O Apocalipse
O homem da Gávea criou asas
Vadia
Gaivota
Sobrevoa a tardinha
E a neblina da ganja
O povaréu sonâmbulo
Ambulando
Que nem muamba
Nas ondas do mar
Cidade maravilhosa
És minha
O poente na espinha
Das tuas montanhas
Quase arromba a retina
De quem vê
De noite
Meninas
Peitinhos de pitomba
Vendendo por Copacabana
As suas bugigangas
Suas bugigangas


O que predomina em Carioca é uma atmosfera suave, de quem admira as belezas de uma cidade sem ignorar seus problemas, mas não deixando que eles ofusquem seu brilho. Há uma mistura de imagens que acabam transformando a cidade num mosaico: tapioca quentinha, o pregão, o baile funk, a gaivota sobrevoando o mar, o povaréu. São coisas tão diferentes, mas tão típicos do Rio de Janeiro que não a mistura não soa estranha nem para que não vive lá.


Cidade maravilhosa / És minha: o poeta se sente tão à vontade que chega a se sentir o dono da casa. A imagem do pôr do sol é forte e bela como poucas: O poente na espinha / Dastuas montanhas / Quase arromba a retina / De quem vê. E para terminar, uma demonstração de que as mazelas não são ignoradas: De noite / Meninas / Peitinhos de pitomba / Vendendo por Copacabana / As suas bugigangas. Porém, o poeta está apenas constatando a existência da prostituição. Não há nenhuma reflexão sobre os problemas da cidade.

Em 2006, no seu último lançamento, o álbum Carioca, nos deparamos com um novo olhar para o Rio de Janeiro, aquele que está para trás do Cristo Redentor, em Subúrbio:


Lá não tem brisa
Não tem verde-azuis
Não tem frescura nem atrevimento
Lá não figura no mapa
No avesso da montanha, é labirinto
É contra-senha, é cara a tapa
Fala, Penha
Fala, Irajá
Fala, Olaria
Fala, Acari, Vigário Geral
Fala, Piedade
Casas sem cor
Ruas de pó, cidade
Que não se pinta
Que é sem vaidade
Vai, faz ouvir os acordes do choro-canção
Traz as cabrochas e a roda de samba
Dança teu funk, o rock, forró, pagode, reggae
Teu hip-hop
Fala na língua do rap
Desbanca a outra
A tal que abusa
De ser tão maravilhosa
Lá não tem moças douradas
Expostas, andam nus
Pelas quebradas teus exus
Não tem turistas
Não sai foto nas revistas
Lá tem Jesus
E está de costas
Fala, Maré
Fala, Madureira
Fala, Pavuna
Fala, Inhaúma
Cordovil, Pilares
Espalha a tua voz
Nos arredores
Carrega a tua cruz
E os teus tambores
Vai, faz ouvir os acordes do choro-canção
Traz as cabrochas e a roda de samba
Dança teu funk, o rock, forró, pagode
Teu hip-hop
Fala na língua do rap
Fala no pé
Dá uma idéia
Naquela que te sombreia
Lá não tem claro-escuro
A luz é dura
A chapa é quente
Que futuro tem
Aquela gente toda
Perdido em ti
Eu ando em roda
É pau, é pedra
É fim de linha
É lenha, é fogo, é foda
Fala, Penha
Fala, Irajá
Fala, Encantado, Bangu
Fala, Realengo...
Fala, Maré
Fala, Madureira
Fala, Meriti, Nova Iguaçu
Fala, Paciência...


Depois da exaltação, Chico parece fazer questão de reconhecer que o Rio não é apenas o que figura nos cartões-postais. Novamente, não temos reflexões profundas no sentido de revelar um grave problema para o resto da sociedade. Tampouco se trata de uma visão alienada e alheia à marginalização. Aqui o poeta percebe que lá no morro, no avesso da montanha, também há beleza, também há elementos que merecem ser cantados em sua poesia. Afinal, lá não figura no mapa, mas o poeta sabe da sua importância: Vai, faz ouvir os acordes do choro-canção / Traz as cabrochas e a roda de samba. O samba nasceu no morro, foi com o samba que Chico Buarque descobriu sua vocação para a música.

O mesmo poeta que canta Cidade maravilhosa / És minha, agora canta Desbanca a outra / A tal que abusa / De ser tão maravilhosa. Antes a luz do poente Quase arromba a retina / de quem vê; agora Lá não tem claro-escuro / A luz é dura. Um contraste, mas não uma contradição.

Chico está mostrando que existem dois lados de uma mesma moeda. Se antes deixou falar a Cidade Maravilhosa, agora ele quer dar voz ao subúrbio, que, bem ou mal, é parte integrante da cidade: Fala, Penha / Fala, Irajá / Faça, Encantado, Bangu / Fala, Realengo...

Ou seja, depois de perceber e cantar aspectos específicos da vida urbana, o poeta passa a  lançar um olhar mais amplo sobre a cidade, chegando a uma visão de conjunto própria de quem já tem maturidade suficiente para perceber que estamos todos no mesmo barco. A urbanização já é não mais um processo, é um fato concretizado do qual não podemos fugir. E os problemas que vieram com ela atingem e dizem respeito a todos nós, ainda que de formas diversas. Mas, por outro lado, não podemos deixar que eles nos impeçam de apreciar a beleza que a cidade pode nos proporcionar.

6 Sexta parte

Como vimos, Chico Buarque esteve preocupado com a questão social desde o início de sua produção artística. O comentário de Eric Nepomuceno, citado em artigo de Yudith Rosenbaum na revista Leia, de novembro de 1989, é bastante revelador: “Chico foi de uma geração que conheceu três Brasis: o viável, o derrotado e o esvaziado”. O que me leva, inevitavelmente, a pensar nos três tipos de consciência do atraso classificados por Antonio Candido em Literatura e Subdesenvolvimento: amena, catastrófica e dilacerada.

O Chico dos anos 1960, que estréia com A Banda e Pedro Pedreiro, percebe que o avanço industrial está cada vez mais consolidado no país, mas isso não é garantia de qualidade de vida para todos os cidadãos brasileiros. Por outro lado, a esperança de que tal situação seja passageira é notável. A Banda que passa e resgata toda uma cidade da sua tristeza individualizada, ainda que por um curto instante, e a constante repetição do verbo esperando em Pedro Pedreiro são exemplos claros de que, apesar da dificuldade, ainda se acredita que há luz no fim do túnel.

Assim, poderíamos relacionar esse momento à consciência amena do atraso, típica de quem ainda só conhece o Brasil viável.

Entretanto, quando chega à década de 1970, no auge da ditadura militar, o poeta já não é capaz de demonstrar o mesmo otimismo. O Brasil deste momento já não é mais viável. É um Brasil derrotado que podemos ler nas linhas de Construção. “Aquela esperança de tudo se ajeitar, pode esquecer...”, dizia o poeta em Trocando em miúdos. O contexto era outro, mas o verso combina perfeitamente com essa nova perspectiva. O Pedro Pedreiro que esperava, esperava, esperava, morreu na contra-mão atrapalhando o tráfego. Ou seja, a consciência catastrófica do atraso nos mostra que não há mais lugar para a esperança.

Até mesmo o malandro carioca, que conseguia se safar de qualquer adversidade usando apenas a sua esperteza, agora tem mulher e filho e tralha e tal, e precisa trabalhar para sustenta-los. Um outro tipo de malandro tomou seu posto agora: o malandro com gravata e capital, que nunca se dá mal. Assim, Chico reconhece a responsabilidade dos maus políticos sobre a situação em que o país se encontra. É um país esvaziado de valores éticos e morais; esvaziado de humanidade. E isso está bem claro em Brejo da Cruz e O Meu guri. São milhões de seres passando fome, se alimentando de luz, ou recorrendo à criminalidade para sobreviver. Mas a cidade não pára. É preciso seguir adiante, sem olha para trás ou para os lados. Porém, aos olhos do poeta esse problema não foge. E sua consciência, agora dilacerada, é revelada de maneira que nos força a fazer uma pausa, por mais breve que seja, e refletir sobre os rumos que a nossa sociedade está tomando.

Da década de 1990 em diante a perspectiva é completamente diferente. O que temos a partir de então é um poeta que assume claramente o Rio de Janeiro como a sua cidade. Num primeiro momento, é a Cidade Maravilhosa, aquela que é abraçada pelo Cristo Redentor. Mas depois, ele lança um olhar para o Rio que ficou para trás do Cristo. Maria Rita Kehl diz tudo na seguinte passagem:


Assim, depois de assumir-se como cidadão de um Rio de Janeiro invisível para a zonal sul, Chico abre o CD Carioca, de 2006, com a belíssima Subúrbio, a um só tempo continuação e ruptura em relação a tudo o que compôs até o momento tendo por tema as cidades. A canção Carioca foi uma aquarela maravilhada do Rio de Janeiro cujo mapa se estendia da Gávea até, no máximo, a Central do Brasil. Um Rio que os é familiar. Não por acaso, Carioca abre-se com esta espantosa elegia à outra cidade, o imenso labirinto “no avesso da montanha” que não sai nas revistas nem figura no
mapa. (KEHL, 2006, p. 77)


Desse modo, podemos dizer que o poeta se tranqüilizou em relação à precariedade da vida nas grandes cidades do Brasil. Se o que separa a parte abastada da parte pobre é apenas uma imensa estátua de pedra, então está claro que não há mais fronteiras. A realidade dos centros urbanos brasileiros é que todas as classes sociais acabaram se tornando interdependentes. O pobre depende do rico, o rico depende do pobre. E todos sofrem as conseqüências do atraso: o rico é rico porque alguém é pobre; o pobre passa fome porque alguém come mais do que precisaria para viver; o rico é assaltado, seqüestrado porque tem mais do que o pobre; o pobre depende do rico para lhe dar trabalho; o rico depende do pobre para lhe prestar serviço; o pobre precisa dos políticos para tirá-lo da miséria; os políticos precisam do pobre para colocá-los no poder. E assim, infinitamente. Uma classe não existe sem a outra. Enquanto houver desigualdade social, os problemas não acabarão. Mas, já que ninguém parece disposto a fazer qualquer esforço para mudar a situação, não há motivo para se desesperar, para gritar por socorro. O que nos resta é nos tranqüilizarmos para poder aproveitar o que a cidade, seja ela qual for, pode nos oferecer de bom; temos de aceitar o risco para poder viver melhor. Portanto, ousando pensar num novo tipo de consciência do atraso, arrisco dizer que o poeta apresenta agora uma consciência conformada, acostumada com os riscos que a vida urbana oferece. O Brasil, que continua esvaziado de valores, é agora esvaziado de fronteiras sociais também.

Referências

BUARQUE, Chico. Chico Buarque Letra e Música. São Paulo: Cia das Letras, 2004.
CANDIDO, Antonio. Dialética da Malandragem. In: O Discurso e a Cidade. Rio de Janeiro: Ouro Sobre Azul, 2004.
_______. Literatura e Subdesenvolvimento. In: A educação pela noite e outros ensaios. São Paulo: Ática, 2000.
KEHL, Maria Rita. Derradeira Estação. In: Revista Bravo!, nº 109, setembro de 2006.
ROSENBAUM, Yudith.  Que rei sou eu? In: Revista Leia, nº 133, novembro de 1980.

Nenhum comentário:

Postar um comentário