{jornal Folha de São Paulo, São Paulo (SP - Brasil), 22 de junho de 2011, p,E10]
MEIA NOITE EM PARIS
MARCELO COELHO
GIL PENDER é um boboca de Pasadena, Califórnia, nos Estados Unidos, prestes a casar com uma patricinha autoritária. Os dois estão em Paris. A patricinha faz compras. Ele passeia pelas ruas da cidade; adora Paris quando chove e sonha com a época de ouro da cidade.
Novo filme de Woody Allen nos faz concluir que não se fazem mais homens como antigamente
A saber, os anos 20, quando escritores e artistas como Ernest Hemingway, Scott Fitzgerald, Pablo Picasso e Salvador Dalí se entregavam ao jazz, ao inconsciente, à bebida e às trepidações da modernidade.
Gil Pender escreve roteiros para Hollywood, ganha um bom dinheiro, mas sua fantasia é ser romancista. Ou melhor, ter sido romancista, em Paris, naquela época.
Magicamente, numa noite de bebedeira, seu desejo se realiza. Uma limusine amarela aparece, e o tímido Gil, um verdadeiro prodígio de falta de assunto, é convidado a entrar. Zelda e Scott Fitzgerald estão no carro. Ele está nos anos 20.
Esse é o ponto de partida do último filme de Woody Allen, "Meia-Noite em Paris", que entrou em cartaz na semana passada.
Como quase sempre, Woody Allen inventa uma história de amor muito delicada, em que muitas possibilidades de desenvolvimento e de desfecho se abrem como um leque para o espectador.
Tudo pode acontecer, desde que dentro de um jogo no qual o resultado, em última análise, seja civilizado e feliz.
Mas "civilizado" e "feliz" não são adjetivos que possam ser aplicados facilmente ao estilo de vida daqueles americanos durante as "années folles" de 1920.
Oficiante máximo do culto ao machismo, à coragem e às touradas, Hemingway hoje pode ser legitimamente qualificado como "figura do século passado". Em Paris, Scott e Zelda Fitzgerald foram colhidos num tsunami de álcool, paranoia e possessividade.
Talvez esteja aí o fundo melancólico, e também crítico, do filme de Woody Allen. Mais uma vez, Gil Pender (Owen Wilson, uma espécie de Robert Redford com baixo teor de sódio e gordura trans) encarna a personagem do sujeitinho hesitante e submisso, às voltas com rivais mais fálicos do que ele
.
Ao contrário do que acontece em muitos outros filmes de Woody Allen, Gil Pender não tem nem sequer a qualidade de ser neurótico. É apenas um garotão saudável do século 21, incapaz de se impor sobre as vontades da noiva; mesmo suas discussões com o sogro direitista estão dentro dos parâmetros recomendáveis da associação psiquiátrica americana.
A nostalgia do personagem pela cultura dos anos 20 tem, assim, um lado menos refinado do que se poderia pensar à primeira vista.
É que, parece dizer Woody Allen, não se fazem mais homens (nem neuróticos) como antigamente. Pelo menos, é a conclusão que se tira do encontro entre Gil e Hemingway. Na verdade, o autor de "Adeus às Armas" é menos o próprio Hemingway do que a projeção daquilo que Gil Pender sabe sobre ele. Cada personalidade famosa do filme aparece com as ideias e as atitudes que o espectador informado esperaria que tivessem.
Desse modo, Hemingway dá conselhos "durões" para o aspirante a romancista.
É preciso perder o medo da morte; só a paixão total por uma mulher pode nos ensinar esse segredo. Escrever é sangrar, viver é entregar-se às balas do inimigo, e matá-lo sem culpa.
Existe um sentimentalismo desse tipo de bravura, assim como existe, hoje em dia, o sentimentalismo das boas causas e da ecologia. Sem um pouco de ironia, estamos sempre condenados a cair num ou noutro tipo de esparrela.
Ironia é justamente o forte de Woody Allen -o que não exclui seus bons sentimentos.
Ironia é justamente o forte de Woody Allen -o que não exclui seus bons sentimentos.
Numa daquelas festas do passado, Gil encontra Luís Buñuel -e resolve meter sua colher na obra futura do cineasta. Diz ter uma excelente ideia para um filme: imagine-se que um grupo de pessoas, numa reunião elegante, repentinamente se torna incapaz de sair da sala. E passará vários dias nessa prisão imaginária e inexplicável.
Quarenta anos antes de filmar "O Anjo Exterminador", Buñuel não entende, ainda, o que há de interessante nessa ideia.
"Meia-Noite em Paris" parece brincar com um tema parecido. Não estamos incapacitados de sair de uma sala por nenhum feitiço. Mas, se o espaço não nos aprisiona, estamos contudo presos ao nosso próprio tempo. Na plenitude da velhice, Woody Allen nos diz que temos só uma vida para viver -a nossa. "Meia-Noite em Paris" ajuda a melhorá-la um pouco.
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