segunda-feira, 13 de junho de 2011

ROCHA - CENÁRIOS URBANOS EM CLARICE LISPECTOR (1)


CENÁRIOS URBANOS EM CLARICE LISPECTOR
Fátima Cristina Dias Rocha (UERJ)
Recife, Rio de Janeiro, Nápoles, Berna: são muitas as cidades que compõem a cartografia afetiva delineada pela ficção de Clarice Lispector. Mas é o Rio de Janeiro, inegavelmente, o espaço privilegiado pela escritora para encenar o diálogo entre a paisagem íntima de suas personagens e a geografia exterior. Um exemplo expressivo desse diálogo encontra-se no romance A paixão segundo G.H. (1964), no qual a protagonista sugere, com sua linguagem cifrada e alusiva, a elaboração de uma cartografia da cidade carioca:
Pois eu estava procurando o tesouro de minha cidade.
Uma cidade de ouro e pedra, o Rio de Janeiro, cujos habitantes ao sol eram seiscentos mil mendigos. O tesouro da cidade poderia estar numa das brechas do cascalho. Mas qual delas? Aquela cidade estava precisando de um trabalho de cartografia (LISPECTOR, 1977: 126).
Embora tentada a contemplar e perscrutar a cidade com G.H., deixo-a, por enquanto, no alto de seu “quarto-minarete”, e começo a percorrer o Rio de Janeiro com as personagens dos contos de Laços de família (1960) – livro em que Clarice Lispector deu início ao seu “trabalho de cartografia” da cidade carioca. Com efeito, nos romances publicados até então, os cenários eram abstratos, sem existência empírica, como os espaços não nomeados de Perto do coração selvagem, a Granja Quieta de O lustre e a alegórica São Geraldo, de A cidade sitiada.
Em Laços de família, as personagens transitam pelo Rio de Janeiro, desenhando uma geografia que inclui os bairros da Tijuca e de São Cristóvão, a Rua do Riachuelo e a Praça Tiradentes, o Largo da Lapa e o Jardim Botânico – espaços cheios de possibilidades, nos quais o cotidiano mais costumeiro se abre ao inesperado e à estranheza. Portanto, se os contos de Laços de família fazem referência a locais concretos da cidade, estes ganham, nas lentes da autora, tonalidades simbólicas e alegóricas. Como diria mais tarde em Um sopro de vida, o que interessava a Clarice eram os “instantâneos fotográficos das sensações – pensadas, e não a pose imóvel dos que esperam que eu diga: olhe o passarinho! Pois não sou fotógrafo de rua” (LISPECTOR, 1978: 19-20).
Cartografando sensações, tornando infamiliares lugares tradicionais do Rio de Janeiro e convertendo-os em espaços ritualísticos e míticos, Clarice Lispector está entre aqueles escritores que elaboraram imagens da cidade que se transformaram “em repertório da própria cidade pelas mãos dos leitores. Ou melhor, as imagens ficcionais da cidade se transformaram numa chave a destrancar os insondáveis mistérios de uma cidade que não se revelam à simples observação” (PECHMAN, 1999: 70). Algumas das imagens claricianas foram flagradas pelo “Ensaio fotográfico” incluído no volume dos Cadernos de literatura dedicado a Clarice Lispector (2004): nesse ensaio, ao lado de fotos de Recife – a cidade da infância –, figuram instantâneos do Jardim Botânico, das praias cariocas e dos corredores do Maracanã, paisagens que, cartografadas pela escritora, insinuam alguns dos “mistérios” do Rio de Janeiro.
Em Laços de família, as personagens femininas predominam: pelo menos dez dos treze textos tratam “das difíceis relações entre mulheres oprimidas em seus restritos cotidianos e das fendas abertas por devaneios, fantasias, acasos e epifanias, que tensionam a rigidez da ordem doméstica” (ROSENBAUM, 2002: 65). Se o meio familiar é caracterizado como aquele que ata a condição da mulher a um cotidiano repressivo e alienador, há sempre um momento em que ela escapa de seu papel social, e deixa emergir um lado dissonante submerso. Em geral, a esse deslocamento no interior da personagem corresponde um deslocamento no espaço; e, ao dramatizar esse duplo deslocamento, alguns contos do livro dão destaque a uma situação que será recorrente na obra de Clarice: a cenarização da rua como local de perigo, em que se velam e revelam fatores de desestabilização e conflito, que fazem aflorar aquele lado dissonante submerso a que aludi pouco antes, o qual irrompe – bruscamente, por vezes –, em susto e pânico, horror e êxtase.
A fortuna crítica sobre a autora tem destacado o conto “Amor” como o exemplo mais completo desse encontro súbito com a inquietante estranheza que se esconde na rua. Em “Amor”, a personagem Ana, protegida da desordem e da “felicidade insuportável” por uma vida repleta de precauções, vê, numa rua do Rio de Janeiro, um cego mascando chiclete – cena que desencadeia a crise que antes já se prenunciava:
Inclinada, olhava o cego profundamente, como se olha o que não nos vê. Ele mastigava goma na escuridão. Sem sofrimento, com os olhos abertos. O movimento da mastigação fazia-o parecer sorrir e de repente deixar de sorrir, sorrir e deixar de sorrir – como se ele a tivesse insultado, Ana olhava-o (...). Ana se aprumava pálida. Uma expressão de rosto, há muito não usada, ressurgia-lhe com dificuldade, ainda incerta, incompreensível (LISPECTOR, 1983: 22).
Ana, ao “ver o que não nos vê, ou seja, ao deparar-se com a sombra de tudo o que se esconde sob a luz rotineira” (ROSENBAUM, 2002: 67), descortina um mundo novo que a assusta e fascina: “O que chamava de crise viera afinal. E sua marca era o prazer intenso com que olhava agora as pessoas, sofrendo espantada” (LISPECTOR, 1983: 23-4). O “prazer intenso” sentido por Ana evidencia que o que ela havia suprimido de seu cotidiano fora a própria intensidade da vida, um excesso emocional e perceptivo intolerável. Desorientada, Ana salta do bonde e caminha numa “rua comprida, com muros altos, amarelos” (Idem, 24). Consegue localizar-se e atravessa os portões do Jardim Botânico, vivido epifanicamente como um verdadeiro Jardim do Éden, onde os seres da natureza se mostram virginais, crus, sensuais, entregues à pura fruição dos sentidos:
Ao mesmo tempo que imaginário – era um mundo de se comer com os dentes, um mundo de volumosas dálias e tulipas. Os troncos eram percorridos por parasitas folhudas, o abraço era macio, colado. Como a repulsa que precedesse uma entrega – era fascinante, a mulher tinha nojo e era fascinante (Idem, 26).
Metáfora da existência represada, impulsiva e caótica da personagem Ana, a figuração do Jardim Botânico, no conto “Amor”, corrobora a afirmação de Benedito Nunes de que “nos contos e romances de nossa escritora, a verdadeira ação é interna, e nada ocorre independentemente da expressão subjetiva da personagem” (1987: 273). Esta, em “Amor”, entrega-se ao fascínio da descoberta, mas, quando se lembra das crianças, sente-se culpada, e sua volta ao lar é marcada pelo estranhamento em relação ao conhecido e familiar: “Os dias que ela forjara haviam-se rompido na crosta e a água escapava. Estava diante da ostra. E não havia como não olhá-la” (LISPECTOR, 1983: 28). Nas palavras de Yudith Rosenbaum (2002: 68), o jogo paronomástico entre “crosta” e “ostra” abarca as inversões das faces de dentro e de fora, que se desdobram nas várias imagens de interior/exterior do texto: da casca e da gema, da casa e do jardim, do bonde e da rua.
Deste modo, o conto “Amor” põe em relevo um traço decisivo no “trabalho de cartografia” do Rio de Janeiro elaborado por Clarice Lispector: o fato de que a precipitação do inesperado tem lugar no cotidiano mais banal. É na rua – mas também no âmbito da casa – que ocorre o evento que desorganiza as significações estabelecidas, expulsando as personagens de uma familiaridade asseguradora e trazendo à sua consciência um “material reprimido de poder potencialmente subversivo” (PEIXOTO, 2004: 77).
No conto “Preciosidade”, por exemplo, as ruas do Rio de Janeiro convertem-se no espaço em que se dá o rito de passagem de uma adolescente à condição de mulher. O texto organiza-se em duas seqüências: a primeira acompanha a adolescente em suas ações rotineiras – acordar, sair à rua, tomar o ônibus, ir à escola, regressar à casa; a segunda apresenta o acontecimento desencadeador de transformações: o encontro com os dois homens que a tocam. Na primeira seqüência, cada elemento é carregado de uma flagrante – embora sublimada – sensualidade, presente nesta descrição do trajeto pela “longa rua deserta até alcançar a avenida”:
Ao vento de junho, o ato misterioso, autoritário e perfeito era erguer o braço – e já de longe o ônibus trêmulo começava a se deformar obedecendo à arrogância de seu corpo, representante de um poder supremo, de longe o ônibus começava a tornar-se incerto e vagaroso, vagaroso e avançando, cada vez mais concreto – até estacar no seu rosto em fumaça e calor, em calor e fumaça (LISPECTOR, 1983: 94).
Essa sensualidade, que faz da rua o espaço da fruição – no qual pode entregar-se ao “devaneio agudo como um crime” (Idem, 93) –, causa à personagem ao mesmo tempo que prazer, sentimentos de medo e preservação. E como o outro representa uma ameaça de que alguma coisa dela se revele, a partir do momento em que a jovem toma o ônibus, o percurso até a sala de aula é vivido como uma batalha: “Depois, com andar de soldado, atravessava – incólume – o Largo da Lapa, onde era dia. A essa altura a batalha estava quase ganha” (Idem, 95). No regresso à casa, todo o processo de recalque que caracteriza a ida à escola reverte-se na ampliação do desejo, que desdobra a “batalha das ruas” numa cena de “caçada”:
Na volta, parecia outra cidade: no Largo da Lapa centenas de pessoas reverberadas pela fome pareciam ter esquecido e, se lhes lembrassem, arreganhariam dentes. (...) Nesta hora em que o cuidado tinha que ser maior, ela era protegida pela espécie de feiúra que a fome acentuava, seus traços escurecidos pela adrenalina que escurecia a carne dos animais de caça (Idem, 97).
Na casa vazia, já não precisava tomar cuidado. Mas sentia falta da “batalha das ruas”, e entregava-se “à grande espera”, exercitando o “aprendizado da paciência, o juramento da espera” (Idem, 97). Assim, a personagem tem uma missão de que é incumbida desde o nascimento; e a primeira seqüência do conto compõe o clima ritualístico em que ela se prepara, se protege e aguarda.
Iniciando-se com o mesmo ritual de absorção erótica da madrugada e da rua, a segunda seqüência interrompe o ritual de preparação para que se execute o do sacrifício, que é anunciado desde o início do segmento: “Abriu a porta da rua. E então já não se apressou mais. A grande imolação das ruas. Sonsa, atenta, mulher de apache. Parte do rude ritmo de um ritual” (Idem, 99). O encontro, elemento desencadeador da transformação antes prenunciada, realiza-se com aquilo que era motivo de medo, o masculino:
O que se seguiu foram (...) quatro mãos que não sabiam o que queriam, quatro mãos erradas de quem não tinha vocação, quatro mãos que a tocaram tão inesperadamente que ela fez a coisa mais certa que poderia ter feito (...): ficou paralisada. (Idem, 102).
A rua, espaço em que se dá a iniciação sexual violenta, recebe a expressão designativa de sacrifício: “imolação”, termo que alude ao aspecto ritualístico da narrativa.
Deste modo, Clarice Lispector ressemantiza de maneira singular a imagem da rua como o espaço do contingente, do “dinâmico que aguça a potência do olhar” (GOMES, 1994: 72). Se, em “Preciosidade”, a adolescente caminha para o “imprevisível da rua” (LISPECTOR, 1983: 99), esta ganha valor mítico e simbólico, transformando-se no lugar de passagem para uma outra condição. Como a rua, também a cidade perde seus aspectos familiares, deixando-se invadir pela tensão do espaço liminar e ritual:
A pedra do chão avisava. Tudo era eco e ela ouvia, sem poder impedir, o silêncio do cerco comunicando-se pelas ruas do bairro, e via, sem poder impedir, que as portas mais fechadas haviam ficado. (...) Na nova palidez da escuridão, a rua entregue aos três. (Idem, 100).
Realizado o rito de passagem e sua imolação, o percurso se consuma com o se constituir mulher, transformação a que se liga a troca de sapatos: “– Preciso de sapatos novos! (...) uma mulher não pode andar com salto de madeira, chama muita atenção!” (Idem, 105-6).
Outra história de iniciação adolescente é o conto “Mistério em São Cristóvão”. Desta vez, a violação é simbólica, e tem lugar no jardim de uma próspera família, no bairro senhorial de São Cristóvão – no espaço da casa, portanto. Nesse jardim, ganham destaque os “jacintos rígidos perto da vidraça” (LISPECTOR, 1983: 129). São eles que chamam a atenção dos três rapazes mascarados – um galo, um touro e um cavalheiro antigo com uma máscara de diabo –, que decidem colhê-los. Quando o galo quebra o talho da flor, a mocinha aparece na janela, ocorrendo uma confrontação ritualística que provoca profundas ressonâncias nos participantes da cena: “Os quatro, vindos da realidade, haviam caído nas possibilidades que tem uma noite de maio em São Cristóvão. (...) Um galo, um touro e um demônio haviam desatado a maravilha do jardim...” (Idem, 132).
Assim, mais uma vez, o cenário urbano é despido de seus traços familiares para adquirir ressonâncias singulares – mágicas, oníricas, alegóricas: “Mas a casa continuava entre trevas e sapos. E, no jardim saturado de perfumes, os jacintos estremeciam imunes” (Idem, 131). Se, como afirma Marta Peixoto, “o jacinto branco, o rosto branco da moça, e, por fim, o fio do cabelo branco representam o vulnerável corpo feminino que exibe as marcas do ataque” (2004: 182), a “terra proibida do jardim” (LISPECTOR, 1983: 131) reatualiza o belo “Cântico dos cânticos” e sua celebração do corpo feminino: “És jardim fechado,/Minha irmã, noiva minha,/És jardim fechado,/Uma fonte lacrada.../...A fonte do jardim/É poço de água viva/que jorra, descendo do Líbano!” (Apud CHEVALIER E CHEERBRANT, 1989: 514).
Segundo Lúcia Helena (1996: 27), nos contos “Mistério em São Cristóvão” e “Amor”, a natureza aparece como uma metáfora das forças poderosas e secretas com as quais as protagonistas mantêm um contato temeroso. Afirmação semelhante pode ser feita a respeito da figuração clariciana de ruas como a do Riachuelo e da Praça Tiradentes, no conto “Devaneio e embriaguez de uma rapariga”. Nessa história, a quebra da rotina diária permite que a jovem esposa se entregue a sensações e pensamentos dispersos e ambivalentes, em que imagina sua vida aberta a todas as possibilidades. O devaneio é representado por uma cadeia metafórica que modula o desejo e o erotismo, os quais recobrem, como em outros textos da autora, o jogo entre o espaço interior e o espaço externo. Com efeito, no início do conto, os ecos da cidade misturam-se às sensações da personagem – sensações carregadas de sensualidade, que se estende à descrição dos objetos e da rua: “Ai que quarto suculento! ela se abanava no Brasil. O sol preso pelas persianas tremia na parede como uma guitarra. A Rua do Riachuelo sacudia-se ao peso arquejante dos elétricos que vinham da Rua Mem de Sá” (LISPECTOR, 1983: 8). A “alma diária” da rapariga volta a perder-se no sábado à noite, numa tasca da Praça Tiradentes; e, no estado de embriaguez, é a força pulsante da sexualidade que torna a modular, agora mais intensamente, a relação da rapariga com a cena exterior: “E quando no seu decote redondo – em plena Praça Tiradentes!, pensou ela a abanar a cabeça incrédula – a mosca se lhe pousara na pele nua? Ai que malícia” (Idem, 17).
Mais um exemplo desse diálogo entre a paisagem íntima e o espaço externo pode ser flagrado no conto que dá título ao livro: “Os laços de família”. Nele, quando Catarina e a mãe se encaminham para a estação de trem, uma freada súbita do táxi lança-as uma contra a outra, provocando a ruptura com os papéis prontos e estabelecidos de filha e de mãe. A primeira marca dessa ruptura – que o texto nomeia como um “desastre” e uma “catástrofe” – é a sensação de uma “intimidade de corpo há muito esquecida, vinda do tempo em que se tem pai e mãe”(LISPECTOR, 1983: 109). Rompida a crosta dos sentimentos e das palavras previsíveis e estratificadas, mãe e filha não sabem o que dizer ou fazer, temendo olhar-se diretamente. O constrangimento – outra marca da descontinuidade – só se ameniza quando a mãe já está instalada no trem, permanecendo, entretanto, a sensação de que uma palavra deveria ter sido dita e não foi, ficando guardada, na sua vitalidade, em algum recanto das relações familiares: “Parecia-lhe que deveriam ter dito assim: sou tua mãe, Catarina. E ela deveria ter respondido: e eu sou tua filha”(Idem, 111).
Enquanto volta para casa, Catarina experimenta, sem temê-los, sentimentos contraditórios, e sua disposição interior a faz ver e vivenciar o cotidiano e a cidade de forma renovada:
E de tal modo haviam-se disposto as coisas que o amor doloroso lhe pareceu a felicidade – tudo estava tão vivo e tenro ao redor, a rua suja, os velhos bondes, cascas de laranja –, a força fluía e refluía no seu coração com pesada riqueza. (Idem, 112).

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(continua amanhã, terça-feira)

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