segunda-feira, 6 de junho de 2011

FCCV - Erenilton viu a moto vermelha

FCCV - FORUM COMUNITÁRIO
DE COMBATE À VIOLÊNCIA

Salvador - Bahia - Brasil

 CAUSA MORTIS:  ERENILTON VIU A MOTO VERMELHA

A visão dá morte. Eis uma escrita com pouca probabilidade de ser levada a sério. Considerando-se as referências disponíveis em nosso contexto, os leitores farão uma automática alteração, suprimindo o único acento agudo existente na frase e, portanto, apagando a ação que conecta a visão à morte. Mesmo incompleta, a reformulada oração tem mais chance de ser recebida como tema familiar em nossa cultura, a tal ponto que não se faz necessário um verbo para se chegar à delicada e polêmica visão da morte. Mas não é essa a intenção da leitura que se inicia com uma oração completa e curta. Por ela é afirmado que a visão gera a morte.

Tem sido noticiado, muito frequentemente, um jeito de ver que poderia ser classificado como uma espécie de suicídio involuntário. É este jeito que é objeto dessa leitura, a partir da análise de uma morte a ser tratada como exemplo dos lamentáveis óbitos desencadeados pela visão da vítima.

            O agricultor Erenilton Pereira dos Santos tinha 25 anos quando foi encontrado morto, assassinado no último sábado de maio de 2011. Seu corpo foi achado a sete quilômetros do assentamento Praialta/Piranheira, em Nova Ipixuna, município localizado no sudeste do Pará.
           
              Há indícios que relacionam a causa da morte com o fato da vítima ser testemunha do duplo assassinato do casal de ambientalistas José Cláudio Ribeiro e Maria do Espírito Santo, executados na manhã de 24 de maio. Esta hipótese tem sido noticiada em vários meios de comunicação de massa. Erenilton “viu uma moto Bros vermelha sair do assentamento. A mesma moto foi flagrada por outra testemunha entrando no local, minutos antes do crime”, informa o portal Terra.

Outros veículos de comunicação noticiaram conteúdo condizente com esta mesma motivação para o crime, como se observa, por exemplo, em um título da Agência Estado: “Agricultor que viu assassinos de casal extrativista é morto no Pará”. Já a revista Veja emprega mensagem semelhante na manchete e no subtítulo informa que Erenilton “poderia reconhecer os pistoleiros que mataram casal que denunciou madeireiros”.

O motivo da morte de Erenilton já é praxe e a conduta se inclui como questão de segurança dentro das práticas criminosas. Depois da “morte original”, aquela considerada necessária para seu autor, é recomendado o silêncio que pode ser conseguido pelo medo provocador de aterrorizante mudez, mas na dúvida quanto à eficácia desta tática, faz-se uso da morte secundária. Do primeiro morto se pretende tirar a vida e do segundo quer-se, “apenas”, que a vida se cale, que aquela visão casual se apague. O alvo desta forma de morte se instala na dinâmica do crime sob a insígnia de sabedor. Ele morre porque sabe demais.

Esta espécie de demasiada sabedoria é, normalmente, contraída de modo involuntário e em flashes tão rápidos quanto a duração de um tiro visto quando da deflagração: é o instante em que se vê a moto Bros saindo do assentamento. Saber demais é um piscar de olhos que imprime na retina a cena de um delito capaz de condenar à morte aquele que piscou sobre o quadro funesto.

Esta espécie de “infração ótico-nervosa” já tem fama. Diz-se que o infrator é o indivíduo que se encontrava no lugar e hora errada. No discurso policial e midiático é uma vítima que ocupa uma posição secundária na representação da trama criminosa, ou seja, é coadjuvante, porém tem peso considerável para o enaltecimento da própria ação delituosa e dos seus delinqüentes. Isto evidencia que o emprego da violência fatal tendo em vista o silêncio do indivíduo é um recurso que, indiretamente, confere valor e complexidade ao objeto de tão protegido segredo.

Se Erenilton não estivesse ali quando a moto vermelha saiu do acampamento, certamente estaria vivo. E, assim como ele, muitas pessoas têm estado ali, quando a moto passa, quando o tiro acerta, quando a faca corta, quando a vida cessa. E têm sido tantas as vezes e em tantos cantos as repetições destas cenas, que a toda hora são revelados os mortos coadjuvantes. E junto à multiplicação destes corpos cresce o medo de cometer, involuntariamente, a “infração ótico-nervosa”.

Cresce o medo de ser visto enquanto está vendo o que se passa pela frente. A vontade de cegueira, de mudez, de insensibilidade como fatores de segurança aparece nas mensagens de arrependimento: “Ai, se ele não tivesse visto!” “Ai, se ele não tivesse ouvido, se ele não tivesse falado, se ele não tivesse sentido!” “Ai, se ele não tivesse vivo!”

Tantos destes “ais” lotam covas rasas idênticas aos seus segredos. Outros resistem e fazem das bocas túmulos em torno dos quais cresce a vigilância interna e receosa de soltar, sem querer e sem, à semelhança dos gases incontidos ante poder, uma palavra fatal à explosiva pressão.

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