Vicente Deocleciano Moreira
Pirulito, outro “capitão da areia”, vivia rezando para seus santos – uma vocação sacerdotal estranha e, talvez, deslocada no mundo dos pequenos ladrões. Sem pernas não entendia a vida piedosa de Pirulito e sua visão de mundo. Não entendia e era contra qualquer relacionamento com o “outro mundo” a que aspirava Pirulito em suas orações e contemplações. No entanto, embora distinto do sonho de Pirulito, Sem pernas aspirava também um mundo diferente daquele em que viva. Diferente do mundo que Pirulito sonhava porque teria que ser vivido, realizado, antes da morte; um mundo real, presente.
Queria alegria, uma mão que o acarinhasse, alguém que com muito amor o fizesse esquecer o defeito físico e os muitos anos (talvez tivesse sido apenas meses ou semanas, mas para ele seriam sempre longos anos) que vivera sozinho nas ruas da cidade, hostilizado pelos homens que passavam, empurrado pelos guardas, surrado pelos moleques maiores. (p. 34/35)
Finalmente, a ‘consciência política’ do grupo encontrara a mãe que jamais conhecera e que sempre buscara em sua angústia, em sua revolta: Dona Ester, cabelos grisalhos tal qul nos seus melhores e raros bons sonhos. Até o nome (falso) com que Sem pernas se apresentara a esta senhora, Augusto, era o mesmo do falecido filho do casal que o acolhera e que passara a tratá-lo como um filho (como o filho já morto), a ponto de vesti-lo com as roupas do falecido Augusto.
Dona Ester e Dr. Raul, famoso advogado, agora haviam encontrado o filho ressuscitado no Sem pernas ante o qual, mais e mais, se agigantava o dilema: ficar com o casal e trair os companheiros ou fugir para o grupo traindo os mimos de a confiança de Ester e Raul.
Roubar a mansão do casal não aliviaria os conflitos entre as elites e os “capitães da areia” de Salvador. Mas esta racionalização não tirava o Sem pernas do ensimesmamento em meio à estranheza dos pares. Pedro Bala, líder do grupo acabara de ser preso e enviado ao “reformatório”; Sem pernas, por indicação do Professor, assumira interinamente a chefia do grupo.
A morte do Sem pernas ocorre em circunstâncias dramáticas. Suicidou-se, atirando-se do Elevador Lacerda para não ser preso pelos soldados que o perseguiam.
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