FCCV - O ASSALTO E A VÍTIMA IDEALFORUM COMUNITÁRIO DE COMBATE À VIOLÊNCIASalvador - Bahia - BrasilLeitura de fatos violentos publicados na mídiaAno 11, nº 28, 01/08//11 | |
O ASSALTO E A VÍTIMA IDEAL |
Dirigindo um automóvel na tarde de 25 de julho de 2011, na Avenida Garibaldi, uma advogada de 27 anos foi baleada em uma tentativa de assalto. A ocorrência foi amplamente veiculada pelos órgãos de imprensa que dispensaram razoável atenção ao caso, dando informações nos dias seguintes à ocorrência sobre o estado de saúde da vítima, sua transferência do Hospital Geral do Estado para o Hospital São Rafael entre outras.
Imagens do carro da advogada Ludimila Carneiro, fotografia da mesma, entrevista com o seu pai integraram o conteúdo das notícias as quais tomaram o caso como lastro para a colocação de reflexões relativas à segurança pública. Um dos pontos enfatizados diz respeito ao local e horário da ocorrência. Chamou-se a atenção para a localização da via, situada em importante área da Cidade, cortando prestigiosos bairros e contando com um trânsito bastante adensado. Quanto ao horário, o acontecimento verificado no período da tarde motivou deduções relativas à ampliação da falta de proteção, realçando-se uma imagem de insegurança na cidade: não existe mais lugar nem hora seguros. Ao lado destas constatações, pela fala do pai da vítima fica a crítica quanto à falta de policiamento em comparação com o elogio ao socorro imediato prestado pelo Serviço Móvel de Urgência (SAMU).
O episódio assumiu a condição de âncora para a reativação de uma modalidade de “serviço à população” no que tange às reações a serem adotadas quando da situação de assalto tal qual aquela sofrida pela advogada Ludimila. Novamente aparece um rol de sugestões às próximas vítimas no que tange ao comportamento mais adequado a ser seguido durante a ação dos assaltantes de veículos quando o mesmo está em trânsito.
A TV Bahia entrevistou um policial militar o qual, entre outras sugestões aponta como necessário ao motorista vítima de assalto que, antes de fazer qualquer gesto, deve comunicar ao seu algoz o que irá fazer, para evitar que o assaltante interprete o movimento como uma reação de enfrentamento e responda a isto com violência. Conselhos dessa natureza já se converteram em script facilmente acessível em vários sites, grande parte deles relacionados com profissionais da área de segurança pública ou privada. A empresa carioca Securenet, por exemplo, considera que “bem orientada, a mulher pode reagir a um possível assalto de forma fria, sem se deixar levar pela emoção. Isto faz toda a diferença”.
Há dicas que só são praticáveis se as circunstâncias favorecerem, por exemplo: “Nos semáforos, vá reduzindo a velocidade devagar, tentando chegar ao cruzamento quando o sinal estiver abrindo, se necessário parar fique sempre com a primeira marcha engatada”. Essa sugestão de caráter preventivo leva em conta uma situação ideal na qual o indivíduo ainda dispõe de condição de evitar o assalto, entretanto, o referido conselho só pode ser aplicado diante da circunstância indicada. Pergunta-se: não seria o comportamento indicado uma praxe dos motoristas, independentemente do medo do assalto?
Conforme as indicações, as habilidades do assaltado são bastante restritas. Ele não deve reagir, não deve tentar fugir, só deve responder ao que for perguntado, deve demonstrar calma, obedecer às ordens do seu algoz etc. As regras de conduta sugeridas contam, também, com apelos vagos como: “Constatou-se que 40% dos automóveis furtados estavam próximos de hospitais, faculdades, estações de metrô, escolas e casas de shows, ou seja, em locais de grande concentração de pessoas e veículos. Redobre a atenção aos transeuntes e a outros veículos quando estacionar em um desses locais”. Pergunta-se: quando se redobra a atenção, o assaltante desiste do propósito de assaltar? Em que consiste a ação de redobrar?
Observando-se o teor das dicas, pode-se notar não apenas uma vítima ideal, mas um assaltante ideal. Ele poupará o assaltado se o mesmo atuar em conformidade com os comandos previstos nas dicas. Tem-se, assim, a idéia de um criminoso padrão que segue, nos minutos decisivos da ação criminosa, uma espécie de código diplomático, capaz de liberar a vítima de tormentos adicionais ao assalto. Trata-se de algo que envolve uma mútua colaboração.
Entretanto, a harmonia idealizada deve ser objeto de reflexão. Do lado da vítima, é esperado que a mesma responda a uma circunstância inusitada e perigosa com uma calma e frieza dificilmente verificáveis nas situações concretas, apesar das inúmeras histórias que narram assaltos diários. Do lado do agressor, não é conveniente tomar o modelo padrão proposto pelas dicas para interpretar aquele ou aqueles que se apresentam na cena do assalto real. Por exemplo, se o ladrão disser “cale a sua boca”, ainda assim, a vítima deveria dar o próximo passo e lhe dizer que vai retirar o cinto de segurança?
É interessante observar que as recomendações não demonstram o sucesso daqueles que as seguem, embora bem intencionadas, elas não podem ser consideradas técnicas de segurança eficazes. Não são apresentados estudos que comprovem que os agressores teriam diminuído a sua agressividade, caso a vítima se comportasse em conformidade com o propalado script, também não são conhecidas pesquisas que atestem a relação direta entre a obediência às sugestões e a diminuição dos danos. Um dos elementos que faltam para uma verificação condizente diz respeito aos porquês de cada ação dos assaltantes. Em vez de serem eles a dizer por que agiram de determinada maneira em dada situação, aparecem peritos que, por dedução, respondem à pergunta e a esta inferência é dado o status de explicação para o comportamento do criminoso, tornando negligenciável a interpretação do autor do crime a respeito da dinâmica da ocorrência.
Na situação do assalto à advogada Ludimila, ficou estabelecido, por fontes policiais e por algumas fontes midiáticas, que o agressor decidiu feri-la porque a mesma incorreu em nervosismo gerador do desligamento automático do carro – ela deixou “o carro morrer” – o que teria sido interpretado pelo assaltante como tentativa de reação, explicando-se, assim, o emprego da arma de fogo contra a vítima. Não foi necessário colher declarações do assaltante, que, por sua vez, fugiu depois dos disparos sem lograr êxito na sua intenção de roubar bens da vítima. A mera dedução sobre as razões dos atos do criminoso se configurou como esclarecimento da dinâmica do assalto e, assim, como “conseqüência óbvia”, chega-se ao retorno às bulas de orientação às vítimas deste tipo de crime.
Cabe lembrar que a solução para os problemas da violência urbana não deve ser colocada como competência dos cidadãos enquanto vítimas potenciais. As soluções caseiras que misturam bom senso com sangue frio não são facilmente executáveis e, mais que isto, não estão à altura da complexidade dos riscos enfrentados pelos cidadãos diariamente. É preciso evitar o jeitinho da “hora H” quando se espera da vítima a condução da ocorrência de modo eficaz a ponto de se diminuir o dano.
A participação da sociedade em relação a este problema deve ser estimulada, mas não no sentido de se dotar o cidadão de uma espécie de perícia que possa convertê-lo em vítima bem sucedida.
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