sábado, 2 de julho de 2011

RUA URBANA, ESPAÇO MASCULINO; TRAD. E RUPTURA (1)

RUA URBANA, ESPAÇO MASCULINO; TRADIÇÃO  E RUPTURA (1)

Vicente  Deocleciano Moreira


Há diferenças socioeconômicas, ecológicas e simbólicas vitais entre ruas urbanas e ruas rurais. Mas há também similaridades, situações comuns, como por exemplo o   fato de que   tanto a rua urbana como a rural são espaços públicos (eco-dinâmicas exercidas ao 'ar livre', a 'céu aberto' ...), por oposição à casa que, seja no campo, seja na cidade, é um espaço privado, privativo.

A casa por oposição à rua é, tradicionalmente, um espaço feminino, embora essa tradição seja, com frequencia, afetada por rupturas de diversas fisionomias e conteúdos.

A ecodinâmica da casa é exercida na privacidade do  'entre quatro paredes' e sob um teto. Mesmo quando paredes e tetos, no caso, sejam imaginários, abstratos e apenas supostos e demarcativos. O fato de casas de uma comunidade não necessitarem de teto, de telhado, pelo fato de que - por uma razão climática - lá nunca chover, não nos autoriza afirmar que sua casas  não têm telhado, teto.


A rua por oposição à casa é, tradicionalmente, um espaço masculino. Entretanto a, por assim dizer, 'masculiniddade' da rua seja permeável a inúmeras e variadas rupturas.


Não são poucos os exemplos em que as rédeas da ruptura da 'masculinidade' da rua - rua urbana, no caso - são assumidas e agarradas, com força e vigor, pelas mãos nem sempre frágeis e finas, nem sempre calejadas e cicatrizadas das mulheres. Vale acentuar que o espaço onde transita essa ruptura, pelas mulheres praticada, ocorre nem sempre na solaridade da agregação ritualística que marca a rua urbana, mas há vez, engenho e arte para  o momento liminar (fronteiriço, impreciso) desse propcesso ritual. Vamos examinar os papéis exercidos em 2 de julho  de 1823 (há quase 180 anos), na cidade de Salvador (Bahia - Brasil), por três mulheres baianas que se juntaram à guerra vitoriosa contra militares portugueses que, defendendo os interesses de Portugal, não se conformavam com o grito de Independência (da corte portuguesa) liderado pelo imperador D. Pedro I que havia ecoado desde São Paulo há quase um ano - em 7 de setembro de 1822.   



MARIA FILIPA



MARIA FILIPA, negra, marisqueira (pescadora de mariscos) da Ilha de Itaparica, baía de Todos os Santos, defronte de Salvador. Ontem e hoje (2011), a cata (pesca manual) de mariscos é exercida, geralmente por mulheres, na areia da praia, no semimangue, (na 'rua'), às vezes próximo à casa. Os maridos pescadores exercem esta profissão em alto mar, "lá fora" - para utilizar limguagem dos próprios pescadores - numa "rua" também marítima mas longe da casa.

A areia onde acontece a ccata de mariscos não é o calçamento (o asfalto, diríamos hoje), porém não é o mar; trata-se de um espaço liminar, indefinido entre ser calçamento e ser água do mar. MARIA FILIPA lidera um grupo de marisqueiras, todas facas em punho, para combater os portugueses  no corpo-a-corpo como soldadas de Infantaria, na guerra (espaço e modus vivendi/modus operandi  tradicionalmente masculinos) pela Independência da Bahia.


MARIA QUITÉRIA




MARIA QUITÉRIA nasceu nos Campos da Caxoeira (então pertencente a  Cachoeira - Bahia - Brasil) depois região do município de Feira de Santana (Bahia - Brasil). Não é difícil imaginar o quantum  de dificuldades ela  teria, como mulher,  em entrar para a guerra (espaço e modo masculinos - já o dissemos). Corta os cabelos, camufla os seios, veste roupas militares folgadas e identifica-se como soldado Medeiros, recebe armas, munições e a confiança de seus superiores de patente ... e vai à guerra. Ao (tra)vestir-se de homem, MARIA QUITÉRIA  (ou soldado Medeiros) ocupa um espaço liminar, portanto sem identidade precisa ... como a meia noite ... que já não é mais noite que passou mas também ainda não é madrugada vindoura. MARIA QUITÉRIA não é mulher; ai dela (!) se os militares baianos descobrem sua identidade feminina ...; não é homem ... os leitores deste Blogue sabem disso! MARIA QUITÉRIA é um ente liminar/andrógino/indefinido identitariamente, mas só  assim ela/ele se juntaria ao combate aos inconformados militares portugueses.


SORROR JOANA ANGÉLICA





JOANA ANGÉLICA, freira, única a morrer em combate. Diante da ameaça de invasão do convento pelos soldados inimigos, ela se prosta no umbral do Convento da Lapa e teria gritado para os portugueses que só entrariam no convento depois de passarem sobre o seu cadáver. Uma baioneta rasga-lhe o peito e a transforma numa mártir  da Independência da Bahia. Vale observar que ela se instala, de modo desafiador, no umbral, na soleira, do portal do convento. das três heroinas, JOANA ANGÉLICA é a única que não pisa na rua, neste espaço tradicionalmente masculino. Mas temos que considerar dois aspectos:

- primeiramente, o fato de que  umbrais e soleiras de portas são espaços liminares: estando exatamente aí, ela não estava nem dentro do convento nem fora dele, ou seja, na rua (na rua que, em homenagem à freira, passou a chamar-se Avenida Joana Angélica - bairro Nazaré - Salvador);

- por outro lado, não se pode negar que a religiosa JOANA ANGÉLICA combateu no espaço/modus vivendi/modus operandi tradicionalmente  masculino chamado guerra, a exemplo das demais mulheres.

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MARIA FILIPA, MARIA QUITÉRIA e JOANA ANGÉLICA operaram profundas rupturas simbólicas e operativas na rua urbana como espaço tradicional masculino e, particularmente, na guerra ... outro espaço tradicionalmente masculino.   

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