terça-feira, 12 de julho de 2011

RUA URBANA, ESPAÇO MASCULINO: TRAD. E RUPTURA (8 - FINAL)

RUA URBANA, ESPAÇO MASCULINO: TRADIÇÃO E RUPTURA (8 - FINAL)





"Eu sou filha da rua
Eu sou cria da sua
Costela"
("Sob Medida", de Chico Buarqe de Hollanda)

Vicente Deocleciano Moreira
Diferentemente dos exemplos anteriores, agora o compositor exerce o papel de sujeito feminino; ele - Chico Buarque - 'se traveste' de mulher, fala do lugar da mulher ...  da mulher da rua que rompe com a tradição de domínio (da rua) pelo homem.  Chico Buarque, como compostor, cantor e escritor, é um bem sucedio transeunte entre o século XX e o XXI.  Porém, ela continua sendo - a exemplo das duas composições anteriores -  a mulher da rua .... a que se coloca como avesso da dona-de-casa, da 'rainha do lar.'

À luz e espelho simbólicos de que a rua é, tradidional e historicamente,  espaço masculino, uma mulher na rua em posição de desafio e de ruptura com essa tradição, seja in  Chico Buarque, seja in  caso dos outros  dois  artistas anteriores  ou - ainda - seja in  caso das mulheres ao volante na Arábia Saudita, elas são portadoras do falo simbólico ... esse objeto cuja posse o homem reivindica, 24 horas por dia, exclusivamente para si.

Querem  falo mais poderoso  que um automóvel?

Querem  falo mais poderoso e  ruptor de tradições masculinas  que mulheres dirigindo automóveis onde elas são proibido de fazê-lo?

Querem  falo mais poderoso e ruptor de tradições masculinas  que convidar sob o sol e em plena rua (e não, ser convidada) para o sexo?

Querem  falo mais poderoso e ruptor de tradições masculinas que mulheres andando, pelas ruas de vários países do Oriente Médio,  com os cabelos à mostra?

Querem  falo mais poderoso e ruptor de tradições masculinas que mulheres andando, pelas ruas de vários países europeus (e ocidentais em  geral) com o véu e a burca encondendo rosto,  cabelos e corpos?

Querem falo mais poderoso e ruptor de tradições masculinas que uma mulher militar, policial, delegada, presidente, gerente. governadora ...?

Em muitas cidades do Nordeste do Brasil, marcadas a ferro e fogo pela escravidão de negros originalmente vindos d'África, chamar uma mulher de nigrinha deixou de significar, há seculos, uma menina, adolescente negra .... uma pequena negra; nigrinha passou a significar prostituta, devassa, mulher altamente sexualizada que toma a iniciativa do convite, ao coito sexual. Mas pode adjetivar, também, uma mulher por quem se tem desapreço. Uma vez, em Salvador (Bahia - Brasil) ouví de uma negra "baiana" de acarajé (vendedora de acarajé) que o filho, também negro,  estava namorando com uma "nigrinha aí qualquer". Essa "nigrinha" era uma americana branca, loura de olhos azuis.

Também na Bahia, ouví queixa desta feita de uma diretora de colégio que fora procurada por um pai de aluna, pedindo-lhe  providências contra um rapaz, colega da filha, que a havia  elogiado assim: "tu é suma rapariga muito bonita". O jovem era gaúcho, filhos de migrantes gaúchos, para os quais, no estado sde origem (Rio Grande do Sul), rapariga quer dizer moça jovem.  Já na Bahia e em otros estados nordestinos, rapariga é o nome dados a 'mulheres da rua', a prstitutas.

Voltemos, já, a Chico Buarque.

SOB MEDIDA

Se você crê em Deus
Erga as mãos para o céu
E agradeça
Quando me  cobiçou
Sem querer acertou
Na cabeça
Eu sou sua alma gêmea
Sou sua fêmea
Seu par, sua irmã
Eu sou seu incesto
Sou igual a você
Eu nasci pra você
Eu não presto
Traiçoeira e vulgar
Sou sem nome e sem lar
Sou aquela
Eu sou filha da rua
Eu sou cria da sua
Costela
Sou bandida
Sou solta na vida
E sob medida
Pros carinhos  seus
Meu amigo
Se ajeita comigo
E dê graças a Deus
Se você crê em Deus
Encaminhe pros céus
Uma prece
E agradeça ao Senhor
Você tem o amor
Que merece

Antes, vamos ver e ouvir Chico Buarque e Fafá de Belém interpretando esta bela melodia:


Chico fala pelo e do lugar do e como sujeito lírico feminino. Talvez porisso ele, o compositor,  não assuma a condição de juiz como Silvinho ("Amor Fingido") e Wilson Batista/Ataulfo Alves ("Oh! Seu Oscar"). Chico é a ré e, invertendo tudo, ela é quem  julga o (possível) homem, porém tonus mais forte é o sentimento de cumplicidade;  no final, ambos são iguais, são cúmplices de intimidades e segredos: "eu sou seu incesto", "eu (mulher) sou cria da costela do homem". Querem referência bíblica  (Velho Testamento cristão, Torá judaico) mais explícita e, a um só tempo, mais irônica que essa?

Sou sem nome e sem lar

Ao menos nos contextos das culturas ocidentais, uma mulher quando se casa geralme nte ela adota o sobrenome do marido. É como se (simbolicamente falando claro!) ela não tivesse nome antes.

Também se dá  o nome a uma mulher quando um homem "tira" (essa mulher) da prostituição e com ela se casa ante o juiz e o padre, pastor (ou qualquer outro agente do sagrado).

O sujeito lírico de "Sob medida" além de não ter nome, também não tem lar. Tem apenas a rua. E, com isso, rompe simbolicamente com a tradição da rua como espaço masculino.  Ela é filha da rua, Na rua está sua mão, sua família, seu berço.

Sou aquela

Indiferente aos incomodados de plantão, ela se autodenomia aquela - sou aquela. Esta expressão ´"aquela" - é dita por alguém que aponta (com o dedo indicador ou  sem ele, co m ou sem metáfora) o(a) desafeto(a). Quando  diz sou aquela, o sujeito lírico aponta para sí próprio(a) e, soberbamente, dispensa o dedo, e o veredito dos juízes. No Brasil, costuma-se dizer "aquela zinha" para não precisar dizer mais nada sobre alguma mulher. Aqui também se aprende, desde amais tenra infância, que é falta de educação apontar - com o dedo - alguém na rua ... ainda que não seja para criticar, julgar. No Marrocos e em muitos outros países do Oriente, a maior vergonha pessoal (a ser evitada a todo o custo)  é ser apontado(a) na rua, no mercado, "na medina".

Aparentadas, na sofisticação do pejorativo,  com aquela são as  expressões  a outra e filhos(as) da rua. Vamos  a "Eu sou a outra", composição de Ricardo Galeno:


Ele é casado e eu sou a outra,
Na vida dele,
Que vive qual uma brasa,
Por lhe faltar
Tudo em casa.

Ele é casado e eu sou a outra,
Que o mundo difama,
Que a vida, ingrata, maltrata,
E, sem dó, cobre de lama.

Quem me condena,como se condena
Uma mulher perdida,
Só me vêem na vida dele,
Mas não o vêem, na minha vida.

Não tenho lar, trago o coração ferido,
Mas tenho muito mais classe
Do que quem não soube prender o marido.





A letra diz tudo sobre a condição da outra. E filhos(as) da rua?  São os filhos que ele ou ela tiveram respectivamente com outra mulher/com outro homem antes e - sobretudo - durante  uma relação estável e a ela externa, fora do casamento. A expressão rua, aí, é evidentemente uma metáfora que tenta dar conta do fora, do tangencial.













































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