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A presença de práticas violentas na sociedade brasileira assumiu um grau de profusão e gravidade que pode tornar as pessoas menos sensíveis às “pequenas” formas de violência ou de violações de regras de convívio necessárias à vida em sociedade.
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O “tom social” do momento está mais para a indiferença, o individualismo e alguma reserva de substância gregária a ser gasta com “os merecedores” de atenção. Como a coletividade excede a esta escassa matéria, os indivíduos tendem a não cultivar a formação dos mais tênues laços de aproximação entre os seus outros-permanentes. Muitos não sabem sobre seus vizinhos, sobre as pessoas que encontram no ambiente de trabalho e assim por diante.
Talvez a falta destas práticas possa comprometer a nossa capacidade de atuar na espécie de caminho que a gente supõe ser o nosso, o próprio caminho, o exclusivo. No dia 17 de julho de 2013, o apresentador Varela veiculou em seu programa, Balanço Geral, a história de um suicídio de uma senhora de 56 anos, moradora do bairro de Itacaranha, situado no Subúrbio Ferroviário de Salvador. Pelas informações coletadas, ela teria recebido, bem cedo, um telefonema que informava da morte do seu único filho. Posteriormente, saiu de casa e, na rua, derramou álcool no corpo e ateou fogo. Depois de morta, o seu filho, que se encontrava no trabalho, fora informado da tragédia e gritava desesperadamente diante das câmeras de televisão, já sabendo que a sua mãe foi vítima de um trote.
Os vizinhos da vítima informaram que ela era uma boa pessoa, morava ali fazia muito tempo e não tinha qualquer problema de relacionamento com os moradores. Diante disso, o apresentador classificou o caso como assassinato, cuja arma foi o telefonema. O caráter insólito dessa classificação é característico de uma linguagem que busca acionar uma representação já consolidada em torno dos casos noticiados. E, infelizmente, nada mais consolidado do que as mortes por homicídio em programas como o aqui referido. Desse modo, o homicídio assume o lugar genérico de morte violenta, uma matriz de interpretação de outros tipos de mortes, tal como a veiculada.
Esta sorte de esclarecimento para o caso contribui para amenizar a possível inquietação do público diante de uma história tão incomum. Entretanto, este alívio pode custar a suspensão da possibilidade de uma reflexão sobre a nossa irresponsabilidade para com os outros, os estranhos.
Ao mesmo tempo em que adotamos comportamentos de recusa em presença do outro, em nossa intimidade e resguardados de riscos, nós somos capazes de perturbar a quem nem conhecemos. Esta disposição talvez seja resultado da crença de que sejamos o próprio bem e que nada do que fazemos atinja ao outro de modo devastador, afinal, o violento é o outro e nós somos os inofensivos.
Cabe, também, acrescentar, ainda que hipotética, uma justificativa para o autor do trote, relacionada com a postura inconsequente, aquela na qual a pessoa considera que “apenas faz”, isto no caso em tela poderia ser assim representado: “afinal, telefonar é crime? Eu não fiz nada, só dei um trote! Sabia lá que a mulher que atendeu só tinha um filho? Como é que eu ia saber!?”
No contexto atual, é, praticamente, impossível que os brincalhões de mau gosto ocupem o banco dos réus por um trote. Cabe, entretanto, ter ao menos na fértil imaginação, que o outro que evitamos é humano-sensível. Ele ama, sofre, tem limites e motivos específicos para se manter vivo. Pode parecer de mau gosto, mas ele é igualzinho a nós.
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