Semeadora de poesia
Amélia Pais

Amélia Pais


Irina Rosenfeldt

TRÍPTICO           (à maneira popular...)

I

desamada
desarmada
vem o vento
vai-se o tempo
nem o tempo
nem o vento
dá o tempo
de sarar
de repente
vem o dia
chega a hora
borda fora
a acostar

volta atrás ó cavaleiro
volta atrás se quer's teu bem
tua amada
tua armada
com o tempo
desarmada
traz também


II

o que se sente
entre o que se pensa e diz .
o que se pensa
entre o que se sente e cala
o que se cala
entre o sentir e o ser
o que se diz
entre o que se ama e sonha

nós
no mais fundo de nós
nós perdidos
nós vazios
nós à margem


III

Quem vai responder
o que não tem resposta
Quem vai falar
o que não tem palavra
Quem vai achar
o que em nós esquece
Quem vai roer
o que em nós sufoca

Vem noite ou pranto ou dia ou vento
Quem quer que sejas que seja o novo
Abrindo o canto na carne clara


Irina Rosenfeldt
VERÃO

O que há de novo na tarde
Verdadeiramente tarde
Verdadeiramente terna
É este gosto novo de cantar
É esta fome absurda de verão

(2005)

[BELO E DIFÍCIL ESTE PAÍS DE NÃO]

Belo e difícil este país de não
Ternura e sol de meu amor
Reino de fantasmas de navios
Dedos gigantes abarcando o mar

Ah pudesse eu agarrar no meu país
E dá-lo todo todinho a esta esperança nova

(06/08/1969)

[ROSA]

Colhe a rosa
esquecida
no caminho

beija-a depois

Suave
a luz te é
reservada.


ESPELHO

és
quem te vês
nos olhos de quem amas

esse o momento
do esplendor
e da verdade
— só teu

(2005)


Irina Rosenfeldt
INEXORÁVEL A LUA

Leve
(inexorável)
a lua
se
eleva
breve


Caminho
do infinito

UNA FURTIVA LACRIMA

Desliza
suave
furtiva
uma lágrima

abre em ti
a flor
oculta
e breve
 
OUTONAL

Cai uma folha no poente destes dias
O que era nítido torna-se difuso
Babel renasce em cinzas de um deserto próprio
E o vento busca em vão uma harmonia

A solidão é em mim um oásis às avessas
Lutando em vão contra a miragem certa

(2005)

ALGAS

Vi
No fundo do mar
Algas salgadas
Grandes e tristes

Dói
Saber
Que há algas
Grandes e tristes
Dentro do mar
        (Segundo Amélia Pais, este foi o primeiro poema que ela escreveu)

[SÓ NO SONHO OS MEUS DIAS SE CONSENTEM]

Só no sonho os meus dias se consentem
A um nome se reduz
esta ânsia de ser
presença viva do meu gesto outrora

Eu não sei de outro nome para a ternura.

[TRANSPARÊNCIA LÍMPIDA DE INFÂNCIA NÃO VIVIDA]

Transparência límpida de infância não vivida
a fonte as casas o mar
a alga o sol a flor o búzio
a rocha a busca
a ânsia

Ergue-te coração
Na tarde limpa 

[E DE NOVO A SENSAÇÃO DO MOLE E INDEFINIDO]

E de novo a sensação do mole e indefinido
Vago rumor que envolve as coisas e a solidão nocturna
Ecos longínquos trazem-me a distância
Algo agita o vento e levanta a areia
O deserto é mais vasto e o mar
É proa erguida do navio austero
Em que navega há séculos a sombra — e a miragem
PAPOILAS GRITO ABERTO NA MANHÃ DO ESPANTO

VERSOS DISPERSOS OU QUASE POEMAS

..............................

Poeta, eu? Nasceu-me no meu verso
A beleza da vida pressentida
Nasceu-me o sonho — e com ele
Minha verdade ficou — assim vivida

......................................
(variante ou outro)

Poeta, eu? saciasse-me de novo
a pureza do que não aconteceu
e este sol seria mar imenso
de ternura criada entre meus dedos

[COMO A AREIA]

Como a areia
a inconsistência
desliza
nos meus dedos

Assim
o sonho se esvai
— alado —
no meu peito

Irina Rosenfeldt

[MEU SOL ORIENTAL COMIGO À BEIRA-MÁGOA]

Meu sol oriental comigo à beira-mágoa
sonho alado canção ave nocturna
cotovia sem voz erguida no espaço
(quase grito de espanto)
gaivota em mim mesmo já cansada


[SÓ A TRISTEZA TEM HISTÓRIA]

Só a tristeza tem história
por isso nós vivemos a cantar

enrolados em nós esperamos dos outros
a alegria de não estarmos sós
com a história triste do nosso fracasso.

OUTONAL

Cai uma folha no poente destes dias
O que era nítido torna-se difuso
Babel renasce em cinzas de um deserto próprio
E o vento busca em vão uma harmonia

A solidão é em mim um oásis às avessas
Lutando em vão contra a miragem certa


[PLÁCIDA A SOMBRA ATRAVESSA O]


plácida a sombra atravessa o

limiar do dia
nos interstícios do olhar

a luz espreita
limpa e serena

e nos convida 


poesia.netwww.algumapoesia.com.br
Carlos Machado, 2013

Amélia Pais

Caros,

Em vários aspectos, este é um boletim diferente dos habituais. Mas, no fundamental, ele homenageia uma poeta que nunca publicou um livro de poemas. Trata-se também de uma escritora que na juventude cometeu alguns versos, mas logo abandonou as musas, embora nunca tenha aberto mão de divulgar poesia.

Estou falando de Amélia Pinto Pais, nascida em 1943 em Forno de Algodres, no nordeste de Portugal, professora de francês e português no ensino secundário durante 36 anos. Apaixonada por literatura, difundiu de várias formas a apreciação da palavra poética. Escreveu ensaios sobre Camões e Fernando Pessoa (seus poetas preferidos) e Gil Vicente, assimo uma história da literatura portuguesa.

Além de ensinar e escrever livros de divulgação literária, Amélia manteve durante anos um boletim chamado A Companhia do Poeta, de circulação diária. Simples e direto, trazia um poema e alguma informação sobre o autor, como nascimento, morte e nacionalidade. Aos sábados, o mesmo boletim passava a chamar-se A Prosa da Semana, com trechos de autores internacionais.

                      •o•

Em paralelo com o boletim, Amélia manteve o blog Ao Longe os Barcos de Flores, de janeiro de 2005 a maio de 2012, quando faleceu em Leiria, cidade onde morava, na região central de Portugal. Nesse blog pode-se ter uma pequena amostra do universo literário de Amélia, que passeia com desenvoltura, em prosa e verso, entre clássicos e contemporâneos. O blog ainda está disponível a quem deseje visitá-lo.

Na pesquisa que fiz para escrever este boletim, descobri que Amélia Pais, além de tudo isso, era coordenadora de um clube de leitura em Leiria. Diz uma pessoa que se identifica como Rosa dos Ventos: “Graças a esse clube tenho conhecido autores e autoras que sozinha não descobriria, tenho encontrado novos sentidos em obras já lidas, enfim tenho passado, uma vez por mês, uma tarde de agradável e proveitosa cavaqueira!”

Alguns dos livros de Amélia Pinto Pais atravessaram o Atlântico e foram editados também no Brasil. São dois sobre o autor de Ficções do Interlúdio(Para Compreender Fernando Pessoa eFernando Pessoa, o Menino da Sua Mãe) e Padre Antônio Vieira – O Imperador da Língua Portuguesa. Os três volumes saíram pela Companhia das Letras.

                      •o•

Quanto à Amélia poeta, ela mesma tratava de esquivar-se da classificação. “Só fui poeta há muitos anos (ou seja, poeta sazonal...) — e desse tempo guardo cerca de 20 poemas que intitulei 'Intervalos do Sentir'. Têm sido publicados na net (...). Não me levo muito a sério como poeta. Então é preferível dizer: estive poeta, em vez de fui (e muito menos sou) poeta”. (De um depoimento a Maria José Limeira, publicado no Portal Entretextos). Todos os poemas reproduzidos ao lado foram extraídos do blog de Amélia. Eles certamente pertencem a essas duas dezenas citadas pela autora.

Mas embora não se assumisse poeta, ela abraçava com orgulho o epíteto que um aluno lhe dera, “semeadora de poemas”. Aliás, isso está dito claramente na mensagem inaugural do blog Ao Longe Os Barcos de Flores: “Um dia chamaram-me assim: e eu gostei. Claro que gostaria mais de ser ‘indisciplinadora de almas’, como Pessoa... ou como qualquer professor deveria ser...”

Mais adiante, na apresentação, ela explica que o título do blog — ou blogue, como escrevia, de forma mais adequada ao nosso idioma — foi “roubado” de um verso do poeta simbolista português Camilo Pessanha. Mas ela não abria mão do Pessoa, seu preferido (depois de Camões). O lema do blog, estampado logo abaixo do título, é “À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo — Álvaro de Campos”.

                      •o•

Ao navegar nos Barcos de Flores também se vai descobrir que Amélia Pais apreciava a música e a literatura brasileira. Nomes como Drummond, Bandeira, Cassiano Ricardo e Vinicius de Moraes aparecem a bordo. Do mesmo modo, Maria Bethânia, Chico Buarque, Caetano Veloso e Antonio Carlos Jobim. No cinema, ela preferia o neorrealismo italiano. Mas estava atenta aos grandes mestres. Em 31 de julho de 2007, registrou: “Deixaram-nos ontem dois que nos ensinaram a ver e amar o cinema: Antonioni (1912-2007) e Ingmar Bergman (1918-2007)”.

Quando diz que gostaria de ser uma “indisciplinadora de almas”, Amélia revela um pouco de sua inclinação para o civismo e a política. Tendo sido professora durante a ditadura de Salazar, ela sempre comemorava o 25 de abril de 1974, a data da Revolução dos Cravos, que restaurou a democracia em Portugal. Numa entrevista, chegou a declarar que essa data representava sua maior “alegria cívica”. E volta e meia ela publicava um poema, uma letra de canção ou um texto relembrando os malfadados anos de opressão, sob a etiqueta de “crônicas contra o esquecimento”. Crônicas para que os jovens não se esquecessem dos "tempos salazarentos". Brava Amélia.

                      •o•

Conheci Amélia Pinto Pais por causa do poesia.net. Existe uma revista de poesia internacional, a Isla Negra — com textos em espanhol, português e italiano — e a Amélia  integrava a equipe de editores. Passei, depois, a receber o boletim A Companhia dos Poetas. Ela, por sua vez, recebia opoesia.net. De vez em quando, trocávamos alguns e-mails. Enviei-lhe um livro meu, ao que ela retribuiu com dois dela, da série Para Compreender:Camões e Fernando Pessoa.

De repente, os boletins de Amélia pararam de vir. A princípio, acreditei que ela estivesse em viagem, uma atividade que ela confessadamente adorava. Depois, achei que talvez  estivesse recolhida, dedicando-se à produção de algum livro mais absorvente. Desafortunadamente, só este ano descobri que a Amélia tinha viajado para sempre em 2012.

Resolvi então fazer este boletim-homenagem à semeadora de poesia. Entrei em contato com algumas pessoas que  recebiam o boletim dela e talvez a tivessem conhecido pessoalmente. Obtive então dois pequenos depoimentos. Um da poeta portuguesa Soledade Santos, também professora, que de fato a conheceu. O outro, da poeta e prosadora paulista Sônia Barros, a quem eu havia apresentado o boletim A Companhia do Poeta.

Quando este boletim já estava pronto, recebi nova edição da revista eletrônica Isla Negra. Comentei sobre Amélia com o editor, Gabriel Impaglione, poeta argentino residente na Sardenha. Ele também enviou-me um depoimento.

Encontrei também na web dois elogios póstumos de pessoas que conheceram Amélia. Um do poeta português Sérgio Lavos, que foi aluno dela no curso secundário. E o outro de Orlando Cardoso, publicado no Jornal de Leiria. Deles roubei trechos que, assim como os depoimentos de Soledade Santos, Sônia Barros e Gabriel Impaglione, estão mais abaixo.

Assim que pensei em organizar este boletim, acreditei que o título seria o mesmo de uma canção popular brasileira. Depois, convenci-me de que “semeadora de poesia” seria mais adequado. De todo modo, registro aqui a ideia inicial: “Ai que saudades da Amélia”.

Um abraço, e até a próxima,



                      •o•


O QUE SE DIZ SOBRE AMÉLIA

Vocação para a alegria

A Amélia foi minha amiga muito próxima durante mais de 12 anos. Bem antes disso, já o seu nome e o seu trabalho me eram familiares, através dos cursos de formação de professores, dos livros que publicara — e dos quais destacoOs Lusíadas em Prosa, versão juvenil da epopeia que continua insuperável — e do seu infatigável e pioneiro trabalho na didáctica de Camões e de Fernando Pessoa.

"Semeadora de poesia", chamou-lhe um dos seus antigos alunos. E ela tinha orgulho no título. É assim que a quero recordar — a mulher generosa, com uma rara vocação para a alegria, a grande professora que partilhou com os seus alunos e com quantos quiseram aprender aquilo que considerava uma das mais maravilhosas realizações humanas: a poesia.

SOLEDADE SANTOS
professora e poeta portuguesa, é autora da coletânea Sob os teus pés a terra (Artefacto, 2010) e mantém o blogMetade do Mundo

***
Lúdica e cativante

Meu primeiro contato com Amélia Pais foi em março de 2007. Cheguei a ela através do amigo Carlos Machado, a quem agradeço por esse precioso presente. Porque foi, sim, um presente conhecer Amélia. Nunca nos encontramos pessoalmente, mas trocávamos e-mails, eu visitava com frequência seu site Ao Longe os Barcos de Flores e também recebia o boletim A Companhia do Poeta.

Admirava-me sua paixão pela poesia, seu empenho em semeá-la. E não apenas para adultos, como prova o belíssimo livro Fernando Pessoa, o menino da sua mãe, em que Amélia apresenta aos jovens, de maneira lúdica e cativante, o grande poeta português. Que falta fará Amélia! À poesia e a nós, leitores e amigos.

SÔNIA BARROS
paulista, poeta e autora de ficção infantil, publicou títulos como Coisa boa (Moderna); Asas de dentro(Scipione); e Onde o céu acontece(Atual)
***
“Doença benigna” 

Apanhei-a como professora no 12º ano, na Escola Francisco Rodrigues Lobo, em Leiria. "Apanhei-a" parece-me um termo adequado — ela foi como uma doença benigna que me deixou imunizado a uma série de ideias feitas da adolescência. (...) Ela era a professora que incentivou esforços literários a quem pouco ou nada tinha a oferecer ao mundo.

SÉRGIO LAVOS
poeta, ex-aluno de Amélia, no blogAuto-retrato

***
Órfãos de poesia

Amava profundamente as palavras e divulgou com uma enorme ternura milhares de versos que se espalhavam na sua mesa, naquela ordem desordenada própria dos grandes vultos. (...) A sua perseverança na busca poética trouxe-nos versos de todo o mundo, provando que a poesia e as suas linguagens são universais. (...)
A Amélia deixou-nos. Estamos órfãos de poesia.

ORLANDO CARDOSO
no Jornal de Leiria

***
Amelia-poesía

Porque debía ser así, nuestros caminos confluyeron en el país de la poesía hace tantos años que me es dificil precisar cuando. Tampoco sé cómo fue. El recuerdo me sorprende enviándonos poesía intensamente, con una alegría tan pura, que esa es la sensación que me gana ahora, cuando el hermano poeta Carlos Machado me da la triste noticia de su fallecimiento. Amelia-poesía, Amelia-multiplicadora de horizontes, Amelia-educadora, toda ella una personita profunda como el cielo constelado.

Tuve el honor de compartir la tarea de editar una versión de la revista 
Isla Negra en portugués, que ella producía y dirigía libremente desde Portugal, Ilha Negra: salió un año, y fue un tiempo riquísimo de descubrimientos gracias al trabajo inmenso, sin límites de Amelia. Se preocupaba por los autores clásicos, pero ponía especial interés en los buenos nuevos poetas que descubría  ese don  en su inquieta travesía por el mundo poético lusófono.

Cómo amó la poesía, la literatura, la cultura lusófona, la educación nuestra Amelia! Exigente y generosa, fraterna, su sensibilidad florece en todos aquellos que han sido sus alumnos y sus lectores. Entre nosotros, sus amigos poetas, queda la apasionada ternura de su nombre estrellado.
                   Sardegna, 2013


GABRIEL IMPAGLIONE
poeta argentino, editor da revista Isla Negra


                      •o•
LANÇAMENTOS
Vera Lúcia de Oliveira• Vida de Boneca

Else R. P. Vieira• Poetas à Deriva / Poets Adrift
Dois lançamentos para quem está em São Paulo. Primeiro, o livro Vida de Boneca, da poeta Vera Lúcia de Oliveira, publicado pela SM Edições. Na mesma hora e local também se lança o volume bilíngue coordenado por Else R. P. Vieira, Poetas à Deriva/Poets Adrift - Primeira Antologia da Poesia da Diáspora Brasileira, que sai pela Maza Edições. Essa coletânea reúne poemas de seis autores: Alessandra P. Rebello, Antônio Massa, Natan Barreto, Ricardo Sternberg, Vera Lúcia de Oliveira e Vilmara Bello.

Data: 29/08, quinta-feira
Hora: 10h00
Local: Sala 110 – Prédio de Letras - FFLCH–USP
Av. Prof. Luciano Gualberto 403, Cidade Universitária
São Paulo, SP





•  Amélia Pais
    Poemas extraídos do blog Ao Longe os Barcos de Flores,
    da autora
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* Ricardo Reis (Fernando Pessoa), em Odes de Ricardo Reis

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Todas as imagens são pinturas de Irina Rosenfeldt, argentina:
- Imagem 1: Swim at night
- Imagem 2: Croquis de desplante
- Imagem 3: Nap at a shade of a trauma

- Imagem 4: Nevesta (Bridemaid) 




•  Amélia Pais
    Poemas extraídos do blog Ao Longe os Barcos de Flores,
    da autora
______________
* Ricardo Reis (Fernando Pessoa), em Odes de Ricardo Reis 
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