FCCVLeitura de fatosviolentos publicados na mídiaSalvador -Bahia - BrasilAno 12, nº 10, 30/07/2012 | |
POR UM FLASH,
FAZ DE CONTA |
Os
grandes feitos midiáticos têm o condão de mobilizar a atenção da
opinião pública durante um longo tempo de modo a contribuir,
decisivamente, para a construção do caráter grandioso do assunto
destacado. Enquanto estes eventos brilham, outras ocorrências têm
aparições-relâmpago, de forma a compor o espaço da mídia em posição
secundária como se fosse um caso-figurante em comparação com o
protagonismo das histórias principais.
A
espécie de fato dominante sugere ao público maior atenção a estes tipos
de ocorrências e, enquanto tal sugestão é acatada, são oferecidas as
possibilidades de se alimentar o convite à promessa de visibilidade
garantida em torno do caso predominante. Assim sendo, os noticiosos
portam produtos que ganham volumes que se expandem tanto sob a forma de
aprofundamento quanto ao nível dos detalhes pitorescos, a exemplo de
Rosane Collor revelando sutilezas de seu ex-marido ao Fantástico. E isso
acontece ao mesmo tempo em que certos assuntos, tratados como menores,
dispõem de reduzidos flashes de difícil sustentação na memória dos
receptores, seja em razão da multiplicidade de casos-figurantes quanto
em função da modestíssima aparição de cada caso.
No
dia 3 de março de 2012, na página 9 do primeiro caderno do jornal A
Tarde [Salvador - Bahia- Brasil] há uma curiosa manchete “Homem rouba caixão e assusta moradores”.
Registrado em Bom Jesus da Serra, no sudoeste da Bahia, o episódio
envolveu um homem chamado Gilberto Moreira Cunha, de 42 anos que se
dirigiu à capela do cemitério e dali saiu carregando um caixão entre os
que a prefeitura disponibiliza para famílias que não têm condições de
arcar com a compra para o sepultamento de parentes. Denunciado, Gilberto
“foi preso em flagrante [...] dormindo na urna, perto do cemitério”. Na
delegacia, ele confessou ter levado o caixão para se proteger das
muriçocas que o perturbavam na madrugada.
De
acordo com a matéria, Gilberto não foi preso e moradores da área não o
consideram perigoso, mas desta vez ele assustou as pessoas que à noite
viram um homem carregando um caixão pela rua.
Uma
situação como esta tem pouquíssimas possibilidades de superar a
barreira dos primeiros flashes. Trata-se de um acontecimento registrado
em local invisível, envolvendo sujeitos que têm como característica
social a pouca importância. O fator de midiaticidade está proporcionado
pelo aspecto inusitado da ocorrência, porém esta singularidade não se
combina com inovação ou comportamento arrojado. É uma novidade brejeira
que nasce com as muriçocas que vêm do brejo.
É
pela falta de sossego e de abrigo que o andarilho descobre a urna
funerária como fator de proteção do corpo vivo na noite de Bom Jesus da
Serra. Como quem improvisa a vida a cada dia, enquanto carrega a sua
guarida, ele inventa um leito que amedronta os transeuntes. A sua
invenção movimenta a polícia militar e a civil e ele informa que vai
devolver o caixão ao local de origem, como quem esclarece ter feito um
empréstimo ao leito dos mortos.
A ação sugere uma precariedade pouco notada no que tange
ao viver dos habitantes de rua, seus encontros com mosquitos, sua
praticidade diante das inconveniências noturnas e as inversões que muito
se parecem com lendas: faz de conta que este caixão é uma cama, é uma
casa, é um quarto. Faz de conta que a muriçoca é um ladrão que rouba o
sono e, faz, também de conta, que este morador é um cidadão.
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