sábado, 11 de janeiro de 2014

A MÁQUINA DE FAZER ESPANHÓIS - VALTER HUGO MÃE



Por José Leonardo Ribeiro Nascimento
há bastante tempo desejava ler este livro. fã que sou da cosac naify, a máquina de fazer espanhóis é um dos trabalhos gráficos mais belos da editora. lembro de ter lido, quando pesquisei sobre valter hugo mãe, que josé saramago derramara-se em elogios sobre o escritor angolano. quando vi que ele não só escrevia seu nome em minúsculas, como também escrevera todo este romance sem uma letra maiúscula sequer, não pude deixar de achar algo presunçoso, um desejo exagerado de ser diferente, ao menos na forma.
fui deixando a compra do livro para depois e esperei até meu aniversário, na última semana. minha querida esposa, andréa, me deu não um, mas dois livros de valter hugo mãe. comecei por este, e adianto que achei… esperem! é melhor eu falar a minha opinião no final, correto? vamos tentar manter um pouquinho de suspense, para variar só um pouco.
a priori, a máquina de fazer espanhóis conta a história de um silva, antonio jorge da silva, um barbeiro de 84 anos que perde a sua esposa, por quem ainda nutria um intenso e tocante amor. ele tem dois filhos, um dos quais considera deserdado, morto, por não ter vindo da grécia para o enterro da mãe. a outra filha, casada e com seus próprios filhos, decide colocar seu pai num asilo. ele a odeia de todas as formas por isso. odeia o mundo, odeia tudo por causa disso. odeia porque sua esposa morreu e sente falta dela. odeia porque sentiu-se traído pela filha. de início, decide transferir seu ódio para aquele asilo e todos que nele residem. mas as amizades acabam aparecendo, e ele descobre, para seu grande espanto, que o esteves sem metafísica vive naquele asilo.
aqui é bem conveniente fazer uma pausa. sou um completo ignorante quando o assunto é poesia. conheço o nome de fernando pessoa, mas não lembro de ter ouvido falar de tabacaria, que é considerada a sua grande realização poética. a máquina de fazer espanhóis dialoga muito com este poema. o esteves sem metafísica é um personagem citado no poema, um jovem a quem nada que não fosse o simples da vida importava – ao menos a partir da ótica que o poeta português tinha dele.
fiz a pausa porque eu também a fiz enquanto lia o livro. meio a contragosto fui conferir o poema e não pude acreditar no que li. tabacaria é isso mesmo. inacreditável. as suas linhas são a prova do gênio humano. reli. e reli.
o poema começa assim:
“não sou nada.
nunca serei nada.
não posso querer ser nada.
à parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.”
o que dizer disso?
em determinado momento, o poeta filosofa:
“tenho sonhado mais que o que napoleão fez.
tenho apertado ao peito hipotético mais humanidades do que cristo,
tenho feito filosofias em segredo que nenhum kant escreveu.
mas sou, e talvez serei sempre, o da mansarda,
ainda que não more nela;
serei sempre o que não nasceu para isso;
serei sempre só o que tinha qualidades;
serei sempre o que esperou que lhe abrissem a porta ao pé de uma parede sem porta,
e cantou a cantiga do infinito numa capoeira,
e ouviu a voz de deus num poço tapado.”
(para o poema na íntegra – leia somente depois de terminar de ler esta resenha!!!!!!! – acessehttp://www.insite.com.br/art/pessoa/ficcoes/acampos/456.php)
não é de se estranhar que os habitantes do asilo sintam-se sortudos de terem ao seu lado uma figura tão emblemática da poesia portuguesa. esteves, o jovem que o poeta via, da sua janela, ir todos os dias à tabacaria, a antítese de fernando pessoa, um homem sem metafísica, sem preocupações transcendentais.
essa ausência de metafísica é um dos temas fortes do livro, que analisa, por meio da decadência daqueles velhos, partes fundamentais da história recente de portugal, em especial a ditadura de salazar. é um livro político? o silva, o protagonista, nunca quis falar de política, passou a vida se esquivando de discussões desse tipo. queria ficar ao lado de sua esposa, zelava pela segurança dela e de sua família. era, à sua maneira, um homem também sem metafísica.
ele não acredita em deus e não consegue entender como alguém pode crer no divino.
“o ser humano é só carne e osso e uma tremenda vontade de complicar as coisas”.
em meio à revolta, ao ódio, à ausência de deus e de metafísica, o velho redescobre alguns valores. revisita a sua história e, num ritmo lento, próprio da velhice, aprende coisas novas, o que ele julgava impossível.
a passagem a seguir ilustra a força da prosa de valter hugo mãe. vemos um silva no auge da sua revolta, quando lhe informam que ele irá ao asilo, ainda amargando a dor da morte da sua amada esposa:
“e só não nos tornamos perigosos porque envelhecer é tornarmo-nos vulneráveis e nada valentes, pelo que enlouquecemos um bocado e somos só como feras muito grandes sem ossos, metidas dentro de sacos de pele imprestáveis que já não servem para nos impor verticalidade nem nas mais pequenas batalhas. como faria falta ferrarmos toda a gente e vingarmo-nos do mundo por manter as primaveras e a subitamente estúpida variedade das espécies e as manifestações do mar e a expectativa do calor e a extensão dos campos e as putas das flores e das arvorezinhas cheias de passarinhos cantantes aos quais devíamos torcer o pescoço para nunca mais interferirem com as nossas feridas profundas. que se fodam. que se fodam os discursos de falsa preocupação dessa gente que sorri diante de nós mas que pensa que é assim mesmo, afinal, estamos velhos e temos de morrer, um primeiro e o outro depois e está tudo muito bem, sorriem, umas palmadinhas nas costas, devagar que é um velhinho, e depois vão-se embora para casa a esquecerem as coisas mais aborrecidas dos dias. onde ficamos nós, os velhinhos, uma gelatina de carne a amargar como para lá dos prazos. que ódio tão profundo nos nasce.”
apesar de parecer um livro sobre o ódio ou o remorso, este é um livro sobre o amor. sobre um homem de 84 anos que estava perdidamente apaixonado pela sua esposa, mesmo depois de cinquenta anos de casado. um homem profundamente magoado com sua filha, mas que dá um pequeno passo rumo ao perdão, descrito de uma maneira simplesmente genial:
“levantei-me. fui ao gabinete do doutor bernardo e vi a minha elisa aterrada como ficava desde pequenina quando as situações eram maiores do que o seu pensamento e o seu coração não sabia como parar de sofrer. abracei-a e beijei-a. precisava ainda de mim aquela mulher de quarenta e nove anos. era ainda pequena, como acho que somos todos nós para as coisas mais tristes. o doutor bernardo deixou-nos sozinhos mas eu não quis mais conversar. quis só que ela ficasse com aquela espécie de breve perdão, o único que eu conseguia dar-lhe, era um perdão rápido e pequeno. como se também eu pudesse, num momento, usar um coração para sentir menos as coisas ou ser uma espécie qualquer de sovina. fazia-me lembrar de quando a Elisa andava de balouço e pedia que a empurrássemos para ir mais veloz e mais alto. e eu fazia-o também divertido com ela. pois, naquele dia, aquele abraço e aquele beijo eram um só único empurrão. significava que queria que ainda vivesse com alguma alegria e fosse ainda mais alto. mas as forças não me permitiam continuar naquilo a tarde inteira.”
não sei se a história de um velho rancoroso rumo à senilidade parece imediatamente interessante. o autor, contudo, é como um mágico, e empresta tanta vida aos personagens que é como se fossem nossos parentes, como se nós mesmos os tivéssemos encerrado naquele lugar. ao mesmo tempo em que investe nos personagens, valter hugo mãe conta uma história repleta de “aventuras”, que envolve desde memórias a respeito de um jogador de futebol lendário, passando por assombrações e chegando a suspeitas de assassinato.
este romance da terceira idade (ou quarta, como alguém no próprio livro diz) lembrou-me diversas vezes do genial amor, de michael haneke. ambos tratam da velhice, ambos falam de um amor indiscutivelmente verdadeiro.
chega de falar. é hora de dar a minha opinião.
valter hugo mãe pode ter-me parecido presunçoso ao escrever todo um livro – e seu próprio nome – em minúsculas. vocês perceberam que fiz o mesmo, uma espécie de reparação ao meu tolo preconceito. a máquina de fazer espanhóis é literatura de alta qualidade sob qualquer ângulo. é um livro sobre amor, velhice, poesia, metafísica, política e sobre a própria literatura. é rico. não tenho dúvidas de que não explorei toda a riqueza do livro, mas o que consegui captar foi suficiente para convencer-me do talento deste escritor angolano.
leiam a máquina de fazer espanhóis. é um direito seu usufruir do melhor que a literatura pode entregar.
para não encerrar com as minhas palavras, o silva teme pela saúde da sua esposa, quando a leva ao hospital. nega-se a deixá-la passar a noite sozinha. um empregado do hospital insiste que ela não estaria sozinha:
“mas não posso voltar pra casa sem ela. não a posso deixar aqui sozinha. não estaria sozinha. estaria sozinha de mim, que é a solidão que me interessa e a de que tenho medo. e isso nunca aconteceu
5

Nenhum comentário:

Postar um comentário