[fonte - jornal Folha de São Paulo, São Paulo (SP - Brasil), 29 de abril de 2012, p. #12]
O VELHO NO NOVO
Ferreira Gullar
Não estava ausente do projeto de
Não me canso de me surpreender com o óbvio.
Desta vez foi a comemoração do 52º aniversário de Brasília.
Foi um susto constatar que faz 51 anos que morei ali,
quando a cidade completava seu primeiro aninho de vida,
e que eu não só morei como fui um dos responsáveis
pela festa de comemoração.
Brasília a promessa utópica de uma cidade justa
Não me canso de me surpreender com o óbvio.
Desta vez foi a comemoração do 52º aniversário de Brasília.
Foi um susto constatar que faz 51 anos que morei ali,
quando a cidade completava seu primeiro aninho de vida,
e que eu não só morei como fui um dos responsáveis
pela festa de comemoração.
É que eu era presidente da Fundação Cultural
de Brasília, o primeiro, porque a instituição
ainda não existia, era apenas um estatuto
publicado no "Diário Oficial". Tive então que
inventá-la.
Certo ou errado, entendi que Brasília era
o produto do que havia de mais moderno no
Brasil -a arquitetura de Oscar Niemeyer- e
do que havia de mais arcaico -a mão de obra
do homem sertanejo, que veio trabalhar na
construção dos edifícios e palácios.
E daí concluí que a fundação devia
voltar-se para a arte de vanguarda e para
o artesanato. Assim, logo promovemos uma
exposição de obras do Museu de Arte de São
Paulo, um espetáculo do Teatro de Arena,
criamos o Museu de Arte Popular e levamos,
para a festa de aniversário da cidade, a escola
de samba Mangueira.
Contratamos gente para sair país afora
comprando arte popular e artesanato.
Esses objetos causaram sensação no gabinete
do prefeito Paulo de Tarso, que não pôde
resistir ao assédio de altos funcionários e
amigos do Planalto: levaram tudo. Meu projeto
era criar, junto ao aeroporto, uma loja para
vender essa produção artística do interior
do país. Não deu em nada, mesmo porque
o aeroporto mudaria de lugar.
Não era fácil viver naquela Brasília recém-nascida.
A cidade ainda estava em obras, a maior parte
das ruas não tinha calçamento e, com a secura
do clima, vivíamos todos cobertos de um talco
vermelho. Nossa diversão, ali, era ir para o
aeroporto ver avião descer e levantar voo.
A certa altura, comecei a me perguntar se Brasília
deveria ter sido traçada daquele jeito mesmo,
se o Plano Piloto estava certo. Isso me ocorreu
certa noite, à janela do apartamento de Betinho,
quando me lembrei que, àquela hora, a Esplanada
dos Ministérios estava totalmente deserta, já que
de noite era hora de morar, e morar era ali onde
eu estava.
Naquele momento, na parte residencial,
estavam todos morando. Noutro ponto da cidade,
havia o local para fazer compras, e noutro, o
setor de diversões. Isso tornava difícil viver ali.
Mas é que planejar uma cidade a partir do zero
é muito difícil. O urbanista começa de algum modo,
e depois a vida corrige o plano. Foi o que aconteceu
em Brasília.
Já naquela época, começaram a surgir lojas
comerciais onde não estava previsto. E assim,
pouco a pouco, a necessidade corrigiu o
planejamento, até humanizá-lo. Hoje, os
moradores de Brasília enfrentam muitos problemas,
mas são outros, nascidos do próprio crescimento de sua população e das cidades-satélites em redor.
Nada que Lúcio Costa pudesse prever. Isso sem falar nos problemas decorrentes da política, por ter Brasília se tornado uma espécie de sede imperial, ocupada em boa parte por uma elite que usufrui de privilégios impensáveis quando a nova capital foi concebida. Muito pelo contrário, não estava ausente do projeto de Brasília a promessa utópica de uma cidade justa, organizada de modo a superar as desigualdades sociais.
Na visão de Lúcio e de Oscar, pelo menos ali
haveria igualdade entre os cidadãos. Mal sabiam
eles o que iria acontecer. Ao contrário disso,
o nível de desigualdade entre pobres e ricos só
tem aumentado, num movimento inverso ao que
ocorre no resto do país.
Não obstante, sua renda domiciliar per capita é
mais do que o dobro da média brasileira,
embora Brasília quase nada produza, já que
é sustentada pelo dinheiro público. Eu, de minha
parte, por linhas tortas, acertei num ponto,
pois Brasília iria tornar-se a expressão do que
há de mais arcaico no Brasil: a apropriação da
coisa pública pelos políticos corruptos.
E causa estranheza, sendo ela a sede
dos Três Poderes da República, que tenha
se tornado uma cidade provinciana,
dominada por políticos medíocres. A esperança
é que, no dia de seu aniversário, muitos cidadãos
foram à praça dos Três Poderes protestar contra
a corrupção.
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