Salvador - Bahia
Brasil
Esta é a 500ª edição da série Leitura de Fatos Violentos publicados na mídia, produzida e difundida pelo Forum Comunitário de Combate à Violência – FCCV desde 2001. Escritas por Tânia Cordeiro, as Leituras
têm sido a forma mais constante com que o FCCV tem participado do
enfrentamento da violência na nossa sociedade. Os demais integrantes do
Grupo Dinamizador do Forum agradecem a Tânia pela persistência,
sensibilidade, clareza e firmeza com que tem permitido que o FCCV
provoque a reflexão e contribua para uma maior compreensão do fenômeno
da violência e para seu enfrentamento ao longo de desses onze anos e
meio.
Leitura de fatosviolentospublicados na mídiaAno 12, nº 09,23/07/2012 | |
MENDIGOS
EM CHAMA |
Mais uma vez um incêndio chama a atenção na Cidade. A
ocorrência se deu no Bairro de Nazaré [Salvador - Bahia - Brasil] onde se situa a Lapa, um terminal
de ônibus da capital da Bahia. Um espaço para onde convergem as pessoas
que procuram o centro de Salvador. Descuidado, sujo, abandonado pelos
entes públicos, foi ali, foi nas proximidades daquele lugar que tem por
nome terminal e parece ser um fim de linha da urbanidade e da cidadania
da gente que se submete ao serviço de transporte público diariamente.
Mas,
o bem atingido pelo fogo na madrugada de 7 de julho de 2012 não foi uma
instalação do precário fim de linha, e a origem da tragédia não foi um
curto-circuito. O ente incendiado, através de produto inflamável foi um
homem de 26 anos, morador de rua que teve 60% de seu corpo incinerado
pela ação de quatro homens que pararam um carro, jogaram o líquido sobre
a vítima, atearam fogo e partiram. Os jornais mostraram a figura de uma
bola de fogo correndo em direção ao terminal da Lapa.
Os meios de comunicação têm veiculado outros casos de incineração de mendigos em vários lugares do País. Pelas repetições fica evidente a existência de um ânimo agressivo que se difunde em nosso tecido social e se propaga como e com o fogo sobre corpos de moradores de rua.
Sobre
esta gente que tem as peles atraídas pela perversa combustão tem
cabido, ainda, outros motes para as notícias. Vez por outra surgem
manchetes que conclamam a opinião pública à reflexão, a exemplo do
ex-morador de rua que passou em um concurso do Banco do Brasil em
Recife, tornando-se motivo de exemplo de que é possível superar as
adversidades e alcançar objetivos que se mostram inviáveis, impossíveis.
Outro
tipo de situação que tem dado aos mendigos algum espaço nos meios de
comunicação diz respeito às circunstâncias nas quais um mendigo ou
mendigos específicos dão prova de incontestável honestidade. Nesse caso,
a exaltação do feito coloca seu feitor em posição diametralmente oposta
à sua condição corriqueira, fazendo-se notar que a sociedade considera
desonesto este tipo social, comovendo-se quando um deles demonstra o
contrário.
Os
dois últimos tipos referidos costumam funcionar como elementos de
comparação com aqueles que, em princípio, deveriam dar exemplo de garra e
honestidade, tal como os políticos e outros poderosos do País. Tal
relação repercute sobre o sentimento de impotência vivido pelos
cidadãos. Eles “ensaiam” uma tomada de posição na qual os “verdadeiros
honestos” (mendigos) tomam o lugar de seus representantes: é de gente
assim que a gente precisa!
No
dia 9 de julho de 2012, em São Paulo, foi localizado um casal de
moradores de rua com o perfil de gente necessária. Eles encontraram uma
sacola com 20 mil reais e, imediatamente, entraram em contato com a
polícia. O dinheiro era produto do roubo contra um restaurante. Os
proprietários foram apresentados ao casal e, mais que agradecidos, se
mostraram surpresos com a retidão dos mendigos num tempo em que eles
percebem que integridade é coisa rara. Em reconhecimento à ação, os
proprietários oferecerem curso para que os dois heróis passassem a
trabalhar no restaurante.
Os efeitos de histórias como esta se alastram sobre os autores dos bons feitos de tal modo que eles deixam de ser mendigos e passam a ocupar mais que um lugar, um valor, através de seu caso de honestidade constatado midiaticamente.
Estes exemplares de mendigo são socialmente idênticos aos que são incinerados nas ruas do País, entretanto, os feitos que motivaram a atenção midiática em relação a eles advêm de ânimos opostos. De um lado, os incineradores têm certeza de que eles não são gente, não são humanos, são nada e, de outro lado, as pessoas a eles agradecidas e a mídia se surpreendem com a humanidade e a integridade que habita em sujeitos tão descartáveis em nosso contexto.
Cabe refletir sobre a vulnerabilidade reservada aos
indivíduos que vivem em condições sociais precárias e a impossibilidade
que eles têm de demonstrar as suas aptidões cívicas e valores morais
muito defendidos pela retórica do poder. Enquanto eles não projetam
qualidades típicas da civilização através de ocorrências que assumem
status de notícia, estão expostas ao silêncio das queimaduras menores,
até que o fogo se alastre sobre pedaços de gente estendidos nas
calçadas.
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