‘Usos do Passado’ — XII Encontro Regional de História ANPUH-RJ 2006:
Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro – APERJ
Praia de Botafogo, 480 – 2º andar - Rio de Janeiro – RJ
CEP 22250-040 Tel.: (21) 9317-5380
O SAARA E A PRAÇA ONZE, NO CENTRO DA CIDADE DO RIO DE JANEIRO, SÉCULO XX: UM ESTUDO SOBRE ETNICIDADE E CULTURA URBANA (3 - FINAL)
Paula Ribeiro
(Final)
“(...) Foi através das escolas de samba que a preocupação política se estendeu a uma faixa maior de cidadãos, que nós pudemos soltar a nossa voz e criar algum respeito.”
(Final)
“(...) Um amigo meu, o Cartola, fez um samba belíssimo sobre isso... “Os tempos idos/nunca esquecidos/trazem saudade/ao recordar/uma escola na Praça Onze/ testemunha ocular... Então vinha: é exemplar: “Depois aos poucos o nosso samba/ sem sentirmos se aprimorou/ pelos salões da sociedade ele entrou/ já não pertence mais à praça/ já não é samba de terreiro...” A escola de samba foi um ato programático que serviria de impulso social à integraçãonegra. Estamos aí – o samba é o retrato da nação, nossas histórias são contadas pelos versos, sentidas pelo levar dos instrumentos...”
E encerra seu depoimento com a seguinte mensagem:
“(...) Anote ainda duas coisinhas mais aí: (...) Há casos que acontecem com a gente que ficam gravados na memória. Nem tudo é glória ou desgraça na vida de um sujeito, malandro ou não. Eu apenas mantenho o charme da malandragem. A vida pesa sobre nós. Ela é implacável. Nunca a vida das pessoas pobres foi satisfatória. A escola de samba foi feita para a diversão dessas pessoas, não é? Pois, então, como nós podemos pagar os ingressos? O samba, desde que passou para a jurisdição da administração, foi perdendo essa participação popular de irmos ver o desfile e torcermos para a nossa agremiação. Eu mesmo não posso ir à avenida ver o desfile...(...)”
É importante observar como, e o quê, cada depoente valoriza em sua experiência e elabora como memória e notar que as lembranças e vivências do passado não são revividas mas sim, reconstruídas no momento que evocadas, pois as memórias são elaboradas e trazidas a nós no tempo presente da narrativa, carregadas de significados e representações atuais, que queremos, justamente, apreender e explicar. Para nós, a memória – que considero uma elaboração multifacetada, multidirecionada, tensa e conflituosa acerca dos acontecimentos – significa essa narrativa que articula passado e presente, e que se “molda” pela experiência do indivíduo.18
O importante é que as trajetórias desses indivíduos tornaram-se parte do contexto histórico da cidade, assim como a cidade tornou-se parte da vida desses habitantes do Rio de Janeiro. Nesse sentido, a história social da Praça Onze entrecruza-se com a história da cidade, e faz parte dela.
__________
1 - HOLLANDA, Heloísa B. de. “Prefácio”. In: LIMA, E.F.W. Avenida Presidente Vargas: uma drástica cirurgia. Rio de Janeiro: Secr. Mun. de Cultura, Turismo e Esportes, Departamento Geral de Documentação e Informação Cultural, 1990, p. 10.
2 - BENCHIMOL, J. L. Pereira Passos: um Haussmann tropical. A renovação urbana da cidade do Rio de Janeiro no início do século XX. Rio de Janeiro: Secr. Mun. de Cultura, Turismo e Esportes, Departamento Geral de Documentação e Informação Cultural, 1992, p. 17-19. ‘Usos do Passado’ — XII Encontro Regional de História ANPUH-RJ 2006: 2
3 - RONCAYOLO, Marcel. “Verbete: Cidade”. In: Região, Enciclopédia Einaudi. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, v. 8, 1986, p. 396-487.
4 - A sigla S.A.A.R.A corresponde à Sociedade de Amigos das Adjacências da Rua da Alfândega, criada em 1962 por um grupo de comerciantes estabelecidos entre o quadrilátero formado pela avenida Presidente Vargas (seu lado ímpar), pela praça da República (Campo de Santana), pela rua Buenos Aires e pela avenida Passos. No texto consideraremos como o Saara o espaço geográfico que respeita os limites atuais da administração da S.A.A.R.A e a forma pela qual, popularmente, esse trecho da área central do Rio de Janeiro ficou conhecido, a partir de 1962.
5 - Na minha opinião o Rio de Janeiro é uma cidade que não teve e não tem bairros étnicos, a exemplo de São Paulo que temo bairro da Liberdade, ocupado pelos japoneses, e o Bom Retiro, que concentrava os judeus de origem européia. Talvez ofato de o Rio ter sido Capital Federal, e por isso mais cosmopolita, tenha integrado mais seus imigrantes, de forma apermitir uma maior assimilação, sociabilidade, e adaptação à cidade. O bairro da Tijuca, apesar de ter uma colônia árabe e judaica expressiva, assim como em Santa Teresa ser representativo o número de suíços, na Saúde e Santo Cristo serrelevante o número de portugueses e os bairros de Laranjeiras e Santa Cruz terem uma presença significativa de japoneses,não se configuram como bairros étnicos. O bairro do Catumbi se diferencia um pouco, caracterizando-se como um bairromarcado pelos pequenos núcleos de portugueses, italianos, espanhóis e ciganos que ali se estabeleceram. O Saara – espaçocomercial no centro do Rio de Janeiro, marcado pela presença síria e libanesa, judaica e cristã – não é um bairro, mascaracterizou-se como um espaço de etnias, o que já configura sua singularidade dentro do contexto da cidade. Assim como a Praça Onze, notadamente uma área reconhecida pela presença negra mas, na minha opinião, não pode ser considerada um“bairro negro”, “ um bairro judaico” , portanto um bairro étnico, porque foi ocupada e (de) marcada por diferentes gruposculturais como pretendemos mostrar adiante. (Cf. RIBEIRO, P. “Saara, uma paisagem singular na cidade do Rio de Janeiro. (1960-1990)”. Dissertação de Mestrado, PUC/SP, 2000. 2v.
6 - A Praça Onze (que foi parcialmente demolida) e um conjunto enorme de quadras residenciais e comerciais foram destruídas no bairro Cidade Nova para a construção da avenida Presidente Vargas, pelo prefeito Henrique Dodsworth na década de 1940. Esta obra transformou não apenas urbanisticamente o local, mas subverteu socialmente a paisagem urbana ao “desapropriar” milhares de habitantes. Sobre a construção da avenida Presidente Vargas ver: LIMA, Evelyn Furkin Werneck. Avenida Presidente Vargas: uma drástica cirurgia. Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de Cultura, Turismo e Esportes, Departamento Geral de Documentação e Informação Cultural, Biblioteca Carioca, 1990. Lima é uma das poucas autoras que cita a presença dos judeus na região. Chama, inclusive, a Praça Onze de “bairro judeu”. ‘Usos do Passado’ — XII Encontro Regional de História ANPUH-RJ 2006: 4
7 - Conferir: SOARES, Marisa de Carvalho. “Nos atalhos da memória: monumento ao Zumbi”. In. KNAUSS, Paulo et alli. Cidade vaidosa: imagens urbanas do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, Sette Letras, 1999, p. 117 - 135.
8 - Figura marcante e tradicional da cultura negra carioca, Tia Ciata ficou famosa pela sua casa, na rua Visconde de Itaúna, na Praça Onze, onde mantinha rodas de samba freqüentadas por Donga, Pixinguinha, Sinhô, João da Baiana e tantos outros importantes sambistas do inicio do século XX. A mais famosa das baianas tem sua história de vida contada belamente por: MOURA, Roberto, op. cit. Este, que já é um livro “clássico” sobre este tema, é uma das nossas leituras de referência para compreensão da que era chamada de Pequena África, na Praça Onze, no inicio do século XX.
9 - Depoimento prestado à Paula Ribeiro no ano de 2004 e está depositado no acervo do Museu Judaico do Rio de Janeiro.
10 - Texto introdutório dos projetos de pesquisa desenvolvidos pelo Laboratório de História Oral e Imagem da Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2003. ‘Usos do Passado’ — XII Encontro Regional de História ANPUH-RJ 2006: 5 que devem ser compreendidos como pluralidades de “versões” sobre o passado – e o presente – da Praça Onze.
11 - PORTELLI, A . “Tentando aprender um pouquinho. Algumas reflexões sobre a ética na história oral”. In: Projeto História: revista do Programa de Estudos Pós-Graduados em História e do Departamento de História da PUC-SP. São Paulo: Educ, n. 15, abril 1997, p. 17.
12 - Id., ibid.
]13 Sobre as avenidas – tipos de habitação que dão origem às atuais vilas, consultar: ALBERNAZ, Maria Paula G.L. de. As vilas: uma contribuição à historia da arquitetura popular no Rio de Janeiro através do estudo no espaço urbano. Dissertação de mestrado. Rio de Janeiro: Ippur/UFRJ, 1985. Um estudo mais aprofundado nos censos populacionais da cidade nos ajudará a entender a ocupação demográfica no local, no período estudado.‘
14 - In: WILLIAMS, R. Marxismo e literatura. Rio de Janeiro: Zahar, 1979., p. 130-137. ”.
15 - Cf. VELLOSO, M.P. “As tias baianas tomam conta do pedaço – espaço e identidade cultural no Rio de Janeiro”. In: Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 3, n. 6., 1990.
16 - Cf. D’ALESSIO, Marcia M. “Intervenções da memória na historiografia: identidades, subjetividades , fragmentos, poderes.” In: Projeto História: revista do Programa de Estudos Pós-Graduados em História e do Departamento de História da PUC-SP. São Paulo: Educ, n. 17, novembro de 1998. ‘Usos do Passado’ — XII Encontro Regional de História ANPUH-RJ 2006: 8 depoimento oral, como instrumento metodológico, permite o contato direto com o
17 - AMADO, J. e FERREIRA, M.M.(coords.). Usos & abusos da história oral. Rio de Janeiro: Ed. da Fundação Getúlio Vargas, 1996, p. xi-xii. ‘Usos do Passado’ — XII Encontro Regional de História ANPUH-RJ 2006: 9
18 - WILLIAMS, Raymond., op.cit, p. 130-137.
Nenhum comentário:
Postar um comentário