‘Usos do Passado’ — XII Encontro Regional de História ANPUH-RJ 2006:
Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro – APERJ
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O SAARA E A PRAÇA ONZE, NO CENTRO DA CIDADE DO RIO DE JANEIRO, SÉCULO XX: UM ESTUDO SOBRE ETNICIDADE E CULTURA URBANA (2)
Paula Ribeiro
(Continuação)
“ (...) Era verão. Verão aqui no Brasil. Nós chegamos aqui em março de 1922. Fomos para a casa da minha avó, na Praça XI . Rua Visconde de Itaúna, n. 111. Isso eu me lembro. É o famoso 111. Porque tinha o 111 e tinha a avenida 111, que era uma avenida cheia de casas e lá tinham muitos imigrantes. No 111 tinha uma vila e nessa vila moravam umas cinco ou seis famílias judias. É ali perto da rua Santana, onde tem a Igreja de Santana. A casa era simples. Mas a verdadeira Praça XI era um universo.” 13
“ (...) Era verão. Verão aqui no Brasil. Nós chegamos aqui em março de 1922. Fomos para a casa da minha avó, na Praça XI . Rua Visconde de Itaúna, n. 111. Isso eu me lembro. É o famoso 111. Porque tinha o 111 e tinha a avenida 111, que era uma avenida cheia de casas e lá tinham muitos imigrantes. No 111 tinha uma vila e nessa vila moravam umas cinco ou seis famílias judias. É ali perto da rua Santana, onde tem a Igreja de Santana. A casa era simples. Mas a verdadeira Praça XI era um universo.” 13
“(...) Na Praça Onze [tinham muitos judeus] mas a maioria era de brasileiros. Eu me lembro que chegava de noite – nem era de noite, era a tardinha – e as crianças brincavam de roda. Esse foi o meu primeiro contato com a língua, porque elas cantavam músicas de roda. Essas rodinhas eu nunca esqueci! Formavam uma roda enorme na avenida – no que a gente chama de avenida, que era a rua de vilas, no número –- e nós todos brincávamos. Eu me lembro que quase todas as noites a gente brincava. Eu me lembro que eram noites bonitas, estreladas, e a gentebrincava de roda. Era sempre assim.”
Esse trecho do depoimento de Lucia nos permite correlacioná-lo com diversas formas pelas quais os imigrantes se inserem na Praça Onze e na cidade do Rio de Janeiro. E o inicio da aproximação com manifestações típicas brasileiras como as brincadeiras de roda, os jogos nas ruas ao entardecer. As ruas e calçadas brasileiras, bem diferentes da Rússia, têm uma multiplicidade de usos. E as comunidades do bairro delas se apropriam. E este é um espaço que possibilita relações sociais diferenciadas, e colocam em contato diferentes grupos. Lucia rememora, ao longo de sua narrativa, as formas de viver própria ao lugar e o começo do aprendizado da língua portuguesa:
“(...) Ali tinha a minha escola. Escola Benjamim Constant, que ficava na Praça Onze e foi demolida para a construção da avenida Presidente Vargas. Bem em frente à praça. Na frente tinha o jardim, os jardins da Praça.Ali foi a aprendizagem. Eu então ainda não falava português, mas tinha lá uma professora que falava alemão. Aí eu entendia o que ela dizia e ela entendia o que eu dizia, e explicava para a minha professora de português. Porque nós , em casa, só falávamos ídiche.
Mas era uma convivência, na escola. Muito boa. Nunca, nem uma só vez, eu senti qualquer coisa que me desgostasse. E criança é sensível, não é? Nunca! Eu sempre fui bem tratada, bem recebida. Eu acho que isso foi muito bom na minha vida .”
A percepção de Lucia sobre a rede de convivências no espaço da escola na Praça Onze também é relevante. E aponta para uma rede de relações mais ampla. Este fato assumia uma dimensão social importante no lugar e esse contato na escola entre imigrantes judeus e brasileiros é um tema que desenvolverei em minha pesquisa. Outros elementos na narrativa de Lucia podem ser analisados, como quando relembra a vida judaica na Praça Onze:
“(...) A minha avó mantinha uma pensão ídiche em casa. Quem freqüentava eram aqueles senhores que tinham deixado a família lá na Rússia, que ainda não tinham trazido a família para o Brasil, e que sentiam saudades da comida judaica. Então eles vinham lá almoçar. Era só almoço, não tinha jantar. Eles vinham, almoçavam e iam embora. Eu me lembro que ela cozinhava feijão branco, galinha, carne, essas coisas. (...)
A minha avó era rigorosa nessa coisa de religião. A minha mãe nem tanto, mas a minha avó era muito religiosa. A pensão era casher. casher. Ih! Era 100% casher! O shoichet [ magarefe] ia lá toda semana matar galinhas. E feijão preto, em casa, não se comia”
“(...) Na pensão não tinha empregada. Minha mãe e minha avó trabalhavam muito. Elas trabalhavam duramente. De empregados, como lavadeira, por exemplo, tinha uma Filomena, uma senhora de idade. É um tipo assim que eu nunca esqueço. A minha avó acendia as velas nas sextas-feiras para o Shabat, e a Filomena dizia que se lembrava que na família dela a avó também acendia as velas. Que coincidência, não é?”
Os depoimentos nos permitem analisar a forma como se configurava este espaço social judaico da casa, da rua, do grupo. E como diz Raphael Samuel no belíssimo artigo História Local Historia Oral: “a evidência oral também ajuda a trazer os resíduos da cultura material”.
Em alguns depoimentos já coletados com imigrantes judeus que foram viver na Praça Onze quando chegaram ao Brasil nas décadas de 1920 e 1930, muitos se referem às pensões judaicas que havia na região como um espaço importante para as relações e práticas sociais naquele momento e naquele espaço. Poder comer a comida de origem, que seguia os princípios da religião (ser casher), poder falar o ídiche (dialeto falado por uma grande parte dos imigrantes que vieram da Rússia, da Polônia e da Bessarábia ( Romênia) e que hoje quase não é mais falado) , eram fatores importantes naquele momento de adaptação. A lembrança de que não comiam feijão preto – muito típico da alimentação carioca – assim como a lembrança da lavadeira que ajudava na pensão são dados interessantes que nos permitem analisar, através de um depoimento, de uma narrativa, aspectos não apenas de uma vivência individual mas também do grupo do qual fazia parte.
Isto nos remete à vida no novo país, e à luta cotidiana destes imigrantes que vai sendo “amenizada”, com a constituição de certas estruturas e formas instituídas que dão suporte – afetivo, social e cultural – ao processo de inserção na cidade do Rio de Janeiro. Estas talvez possam ser compreendidas como “estruturas de sentimento”, para usar um termo proposto por R. Williams.14
Nas diversas dimensões da vida social e econômica Lucia Aizim, através de sua narrativa, nos dá uma dica para compreender que os diferentes grupos sociais que ocupavam a Praça Onze vão tendo experiências sociais diferenciadas, mas sempre diálogo com os outros habitantes do lugar. Isto não impede de estarem sempre defendendo o seu “pedaço” na cidade e nele imprimindo as suas marcas:15
“(...)Havia loja de móveis, armarinho e cinema. Eu até cito em um poema meu, [ que ali tinha ] uma espécie de um enorme café. Café Jeremias. O Café Jeremias era cheio de espelhos. Era um luxo naquela época. Nós não freqüentávamos, mas às vezes íamos lá para comprar alguma coisa. Vendia doces, vendiam balas, vendiam coisas de confeitaria. E tinha um cinema na Praça XI. Eu não me lembro do nome, mas me lembro que tinha. E, é claro, tinha sinagoga(...)”.
O depoimento do sambista Ismael Silva (1905-1978), publicado por Oswaldo Martins em seu sitio sobre samba disponível na internet, nos remete a uma outra forma de viver o espaço da Praça Onze e a cidade do Rio de Janeiro:
“(...) Eu nasci em 1905, em Jurujuba, Niterói. Aos três anos vim para o Estácio, com minha mãe. O Estácio fazia parte da Pequena África Carioca, que se estendia da Saúde, Gamboa à Praça Onze, da Praça Onze ao Estácio, Catumbi. Era um reduto de costumes africanos trazidos da Bahia, quando nós imigramos para cá. Convivi com essa cultura. Cultivei e fui cultivado por ela. Sou sambista. Um dos bambas do Estácio.”
“(...) Sou negro e como negro devo achar meu caminho na vida. A libertação muito recente não modificou em nada nossa situação. Somos postos de lado nas escolas, nos serviços. A identidade que nos envolve é penosa e devemos lutar para preservá-la..)”
Ao rememorar sobre a ”pequena África” Ismael Silva alia a importância do espaço à manutenção da cultura negra e incorpora elementos subjetivos (emoções, cotidianos, sensibilidades)16 à sua memória narrada. A utilização da história oral como método de pesquisa me permite neste sentido conhecer aspectos da então “pequena África” sob um ponto de vista do vivido e do individual, “incorporando assim elementos e perspectivas às vezes ausentes de outras práticas históricas (...)”.
O sujeito que vivencia e atua diretamente na realidade por nós estudada, bem como permite que as memórias individuais nosdigam muito sobre as possibilidades presentes na realidade social mais ampla.17
“(...) Então, os negros se empregavam no cais do porto. Toda aquela zona era o nosso domínio. Não, o trabalho não nos integrou à sociedade. O contato acabou por se fazer naturalmente; embora marginalizados, participávamos da vida social – minha mãe mesmo lavava roupa para o Flamengo, as Laranjeiras e acho que São Cristóvão.”
“(...) Bem, fundei, no Estácio, com os bambas de lá, a primeira escola de samba, a Deixa Falar. Era costume, no carnaval carioca, a disputa, que sempre degenerava em briga. A polícia batia, nós revidávamos – não era bom para ninguém, não é? A Deixa Falar nasceu do desejo de não apanhar da polícia. Alguns dizem que o samba se modifica, se adapta ao mundo social por isso. E podia ser diferente? Samba não é folclore, tem de se modificar. É a parte viva da nação. O sambista interage, anda nas brechas do permitido e vai se afirmando, se aprimorando...”.
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Amanhã, sexta-feira, última postagem da série
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