Almir Satter:
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Sala das Canoas Com quantos paus se faz uma canoa? As canoas são embarcações monóxilas, ou seja, feitas a partir de um único tronco de madeira escavado. Junto com as balsas, são as mais antigas embarcações utilizada s pelo homem. Intimamente relacionadas à invenção da navegação, existiram em todos os continentes e foram utilizadas por praticamente todos os povos primitivos. Aparentemente toscas, sobrevivem há milênios graças à facilidade construtiva e ao seu poder de se moldar às necessidades. Hoje as canoas americanas (principalmente brasileiras), polinésias, africanas e asiáticas são as que mais se destacam. No Brasil, representam a adaptação de modelos de origem indígena ou de outros continentes, principalmente da África, adequados às necessidades de cada uma das baías, enseadas, praias, ilhas, estuários e cursos d’água do litoral e interior deste país continental. Origem e construção Para navegar, ou seja, atravessar uma superfície líquida sem se molhar, o homem pré-histórico provavelmente uniu vários pedaços de árvores, criando uma balsa. Depois, escavou um tronco, criando a canoa, primeiro barco verdadeiro. Dependendo do avanço tecnológico, das árvores disponíveis e das necessidades específicas, diferentes tipos de canoas foram sendo criados em todo o mundo. O homem construiu as primeiras canoas escavando troncos grossos com o auxílio de fogo e machados de pedras , em um penoso processo que trazia como recompensa sólidas embarcações. Onde a natureza proporcionava a ocorrência de grandes árvores dotadas de grossas cascas, o homem aprendeu, através do calor, a desprender a camada externa do caule, de modo a construir canoas como quem dobra uma folha de papel. Na Amazônia e nas florestas do Oriente, esta técnica até hoje é empregada. Descobertos os metais, tornou-se muito mais fácil a escavação de toras de madeira. Tal evolução permitiu que o homem aperfeiçoasse suas ferramentas e trabalhasse a madeira de modo a obter peças com seções esbeltas, o que era impossível de ser feito com fogo e pedras. Surgiram as ripas e as tábuas e, com elas, o desmembramento dos barcos em estruturas autônomas, como as cavernas cobertas e os cascos. Nesta nova configuração, os troncos reduziram-se às quilhas das modernas embarcações de madeira. Estavam criados os barcos propriamente ditos, dos quais derivam os modernos transatlânticos de aço, os imensos navios de transporte, de guerra ou de passageiros. Canoas do São Francisco No rio São Francisco, que atravessa Minas Gerais, Bahia, Pernambuco, Alagoas e Sergipe, ocorrem diversos tipos de canoas. Várias delas apresentam especificidades de casco e vela que as colocam entre as mais importantes do Brasil. Velas quadrangulares duplas ou mesmo triplas, dotadas de espichas, proporcionam a estes barcos muito leves ótima dirigibilidade e velocidade. Os cascos são esguios e muitos deles apresentam curiosa terminação na extremidade da proa. Próximo à foz, são chamadas de taparica, como a exposta aqui nesta sala. Derivam das canoas baianas, das quais herdaram o fundo chato, detalhes da posição e fixação dos bancos e o tosamento (recorte ou desbaste) do tronco. Enormes canoas foram utilizadas para transporte de passageiros e produtos diversos ao longo do São Francisco. Para melhorar as condições de conforto de tripulantes e passageiros, muitas foram dotadas de uma espécie de cabine junto à proa das embarcações. Nasceram assim as canoas de tolda do rio São Francisco, das quais restam, ainda pouquíssimos exemplares, um deles exposto na Sala dos Barcos do Rio São Francisco, no Museu Nacional do Mar. Chalana Embarcação típica da região do Pantanal Matogrossense, a chalana resulta de uma mescla de influências indígena, africana e portuguesa. Tem proa e popa levemente alteadas, arrematadas em linhas retas, e apresenta um profundo recorte longitudinal da madeira nessas extremidades. Navega pelos rios, pelas lagoas e áreas alagadas da região entre Brasil e Bolívia, carregando um ou dois pescadores. Com a proibição da pesca do jacaré, que era fisgado com lanças, e o controle da captura de certos peixes, a chalana está desaparecendo da paisagem pantaneira. No seu lugar surgem barcos simplificados feitos de tábuas ou embarcações industriais de alumínio, ambos utilizados principalmente no transporte de turistas. O Nome Os primeiros europeus a ouvirem a denominação canoa foram os membros da expedição pioneira de Cristóvão Colombo, que descobriu a América em 1492. Os tripulantes da frota mais famosa da história, formada pelas naus Santa Maria, Pinta e Nina, teriam registrado o nome ouvido dos nativos do Novo Mundo. Os índios – assim apelidados, porque os espanhóis acreditavam ter chegado às Índias Orientais – chamavam de canoas suas embarcações esculpidas em um só pau. O Almirante Antônio Alves Câmara, o primeiro estudioso a se interessar pelo fabuloso patrimônio naval dos rios, lagoas e mares do Brasil, escreveu no seu livro Ensaio sobre as Construções Navaes Indígenas do Brasil, de 1888, que a palavra tem origem americana, das caraíbas. Confirma que o nome foi citado por Colombo e os primeiros viajantes da América, e ensina que a palavra é semelhante na maioria das línguas: canoa em português, espanhol e italiano; canot em francês, canoe em inglês, kahn em alemão, kane em dinamarquês e kana em sueco. Canoas baianas O Almirante Alves Câmara considera as canoas baianas as “rainhas das canoas do Brasil”. A denominação não deixa de ser verdadeira. Derivadas de africanas, grandes troncos de mais de 11 metros, escavados com absoluta precisão, criam formas de extraordinária beleza estética, com fundos chatos e proas e popas lançadas bem avante do barco. No Recôncavo Baiano, estas maravilhosas embarcações são dotadas de grandes mastros e velas latinas (a mesma das caravelas) e de um tipo de bolina que foi muito utilizado pelos holandeses ao longo dos séculos XVII e XVIII. Tantos detalhes náuticos conferem às canoas baianas especiais condições de navegabilidade. Este tipo de barco ocorre do sul da Bahia até Alagoas e seu desenho influencia todas as canoas nordestinas. Quase sempre é pintado segundo um modelo padronizado característico, onde prevalece o preto (muitas vezes piche) cobrindo o fundo, as extremidades e o centro da embarcação. As áreas restantes permanecem sem pintura, ou são coloridas de amarelo, vermelho, azul e verde. Entre o Recôncavo Baiano e a região do Morro de São Paulo estão os exemplares mais sofisticados deste tipo de canoa. Canoas de borda lisa Do Rio Grande do Sul ao Rio de Janeiro ocorrem várias canoas chamadas de borda lisa, isto é, resultantes apenas da escavação dos troncos e da fixação dos bancos. Apresentam mais semelhanças do que diferenças, estando estas no tosamento (recorte ou desbaste) da proa e da popa e nos “ganchos”, acréscimos que elevam as extremidades das canoas do Rio de Janeiro. É o caso da Max, exposta na sala Amyr Klink. A Ilha de Santa Catarina (SC), a Baía de Paranaguá (PR), a região da Juréia (SP) e a Baía da Ilha Grande (SP) são os principais pontos de ocorrência das canoas de borda lisa. Encontro O padre Leonardo Nunes, jesuíta que chegou ao Brasil com Tomé de Souza e Manoel da Nóbrega, relatou o encontro com os índios brasileiros em suas canoas, próximo ao porto de São Vicente: “Eram sete e cada uma tinha trinta ou quarenta remeiros, às quaes correm tanto que não há navio por ligeiro que seja que se tenha com elas...”. Frei Vicente do Salvador, frade franciscano que foi o autor da primeira História do Brasil, editada ainda no século XVII, afirmou que as embarcações usadas pelos índios naturais da terra “...são canoas de um pau só, que lavram a forro e ferro; e há paus tão grandes que ficam depois de cavadas com dez palmos de bocas de bordo a bordo, e tão compridas que remam a vinte remos por banda”. Canoa na visão de Hans Staden “Existe lá um tipo de árvore a que chamam de Igá-Ibira. As cascas dessa árvore desprendem-se de cima até embaixo num único pedaço, e, para tanto, eles erigem uma proteção especial em torno da árvore, de forma a que se desprenda inteira. Em seguida pegam a casca e levam-na da montanha até o mar. Aquecem-na com fogo e curvam-na para cima na frente e atrás, mas antes disso amarram no centro pedaços de madeira no sentido transversal, para que não se deforme. Assim fazem canoas onde até trinta deles podem ir à guerra. As cascas têm uma polegada de espessura, cerca de quatro pés de largura e quarenta de comprimento. Remam com essas canoas rapidamente e viajam até onde quiserem. Quando o mar está revolto, puxam as canoas para a praia até que o tempo volte a ficar bom. Não vão mais do que duas milhas mar adentro, mas viajam por longas distâncias ao longo da costa.” Texto escrito em 1556 por Hans Staden, publicado no livro Portinari Devora Hans Staden, da Editora Terceiro Nome (1988). O alemão passou quase dez meses refém de índios no sul do Brasil, sob a ameaça constante de ser morto e devorado. Chacreiras As chacreiras chegam a ter mais de 12 metros de extensão e são dotadas de grandes porões onde as mercadorias eram transportadas nas lagoas do Rio Grande do Sul, em especial nas lagoas Mirim e dos Patos. Hoje estão, virtualmente extintas, reduzidas a pouquíssimos exemplares. Depois de escavados, os grandes troncos, a partir dos quais se construíam as chacreiras, eram cortados e recebiam tábuas no centro e na borda. Isto ampliava em muito as dimensões do casco da embarcação. Construída a partir de um tronco de cedro, a Biondina, chacreira exposta no Museu Nacional do Mar, tem mais de 11 metros de comprimento e grande capacidade de carga. Canoa bordada Nas regiões Sul e Sudeste, centralizadas por Santa Catarina, ocorrem diversos tipos das belas canoas bordadas, assim chamadas porque, nas bordas dos troncos escavados adicionam-se, com grande maestria, tábuas que ampliam a borda livre e aumentam a força e velocidade dos remos. Estas canoas são pintadas com cores vivas e inserem-se entre as embarcações plasticamente mais expressivas do mundo. Com algumas variações, ocorrem do Rio Grande do Sul até o Rio de Janeiro, mas praticamente deixaram de ser construídas, porque os órgãos ambientais proibiram a extração da madeira necessária à sua confecção. Com isso, corre-se o sério risco de se perder o “saber fazer” destas embarcações, conhecimento passado de pai para filho ao longo das gerações. Pesca da Tainha As tainhas são pescadas com redes de arrasto e tarrafas (redes individuais arremessadas com maestria por pescadores profissionais e amadores). No litoral catarinense, a pesca da tainha acontece no inverno, entre abril e junho, quando elas sobem o litoral em grandes cardumes, procurando os estuários para se reproduzir. Nessa época transformam-se em importante fonte de renda e alimento para as comunidades onde persiste a pesca artesanal, embora os cardumes estejam menores a cada ano, seja em função do crescente interesse da frota pesqueira industrial pela espécie, como pelo desconhecimento do ciclo de vida desses peixes. Marambaias ou vigias A pesca da tainha utilizando grandes redes de arrasto – os famosos arrastões – é uma das mais interessantes do Brasil. Nela o marambaia ou vigia, pescador que identifica a presença e os movimentos de grandes cardumes, desempenha papel vital. Com olhos treinados, avista as tainhas a distância e dá o sinal com o chapéu, um pano branco ou até no grito, para que seus companheiros efetuem o cerco. A partir daí, a luta é contra o tempo e a força do mar. O barco, a famosa canoa bordada, tem de fazer uma meia-lua para cercar o cardume. Os remadores e os lançadores da rede precisam ser rápidos, sem perder o rumo, nem deixar enrolar a rede. Feito o cerco, é hora de puxar a rede cheia de tainhas até a areia. No início do inverno, é possível acompanhar diariamente o espetáculo da pesca de arrastão na beira de diversas praias ao sul do Brasil, principalmente em Santa Catarina. As tainhas Esses peixes muito apreciados são, no entanto, pouco conhecidos. As tainhas (Mugil brasiliensis) vivem em costões rochosos, praias e manguezais em toda a região litorânea do Brasil e podem chegar a um metro de comprimento e pesar seis quilos. A fase conhecida das suas vidas é aquela da migração, que começa em março e pode se estender até agosto, quando buscam os estuários para se reproduzir. Desovam em rios e lagoas, próximas à costa, e podem viver nesses ambientes até alcançarem 30 centímetros. Reúnem-se em cardumes e seguem para o mar aberto, onde passam a viver, no fundo dos oceanos, a fase de suas vidas ainda pouco conhecida pelos homens. Variedade De uma maneira geral, pode-se afirmar que as canoas do interior do país guardaram mais as suas origens indígenas no formato dos cascos, nos remos, na ausência de velas e na falta de pinturas vivas. No litoral, de onde os índios foram quase que totalmente expulsos ainda no século XVI, prevaleceram modelos africanos, europeus ou asiáticos. Das praias do sul até as do norte, existem diversas variedades, como as canoas bordadas e as de borda lisa do sul/sudeste, as chacreiras do Rio Grande do Sul, a canoa baiana , considerada a “rainha das canoas brasileiras” pelo almirante Antônio Alves Câmara, as canoas costeiras e as montarias do Maranhão. Também no interior do Brasil é grande a variedade. Na Amazônia, destaque para as canoas indígenas construídas com cascas de árvores ou escavadas em troncos, estas, apresentadas na Sala da Amazônia, aqui no Museu Nacional do Mar. No Pantanal, as famosas chalanas são parte do cotidiano de milhares de pessoas. As do rio São Francisco, coloridas e velozes, estão entre as mais conhecidas do Brasil. Elas são apresentadas na Sala do rio São Francisco, espaço específico para estas canoas singulares. Maior diversidade de canoas está no Brasil Já utilizadas pelos indígenas no litoral, na Amazônia, no Pantanal e nos rios do interior brasileiro, muito antes do Descobrimento, as canoas brasileiras receberam novas influências e detalhes com a chegada dos portugueses e depois dos escravos africanos. As anteriores a 1500 eram impulsionadas por varejões e remos, já que as velas e os mastros foram as primeiras adaptações importantes nas canoa s brasileiras, trazendo os lemes e as bolinas em muitas delas, como conseqüência. Muitas adequações aconteceram ao longo dos tempos, em função de condições diferentes de mar, ventos, pesca, madeiras e cargas transportadas. Assim surgiu uma enorme variedade deste tipo de embarcação ainda encontrada em todo o Brasil. Podemos resumir essa diversidade em quatro famílias principais: canoas do litoral sul/sudeste, do nordeste, do norte e do interior, estas representadas principalmente pelos barcos da Amazônia e do Pantanal. O Brasil é o país com a maior variedade de canoas do mundo. Algumas das mais belas, imponentes e sofisticadas canoas do planeta são brasileiras. Muitas das canoas brasileiras ainda navegam a remo e a vela, mas uma grande parcela, de todos os tipos e dimensões, tem recebido motores, inclusive de popa. Em quase todas as regiões, as canoas tradicionais vêm sendo substituídas por barcos de alumínio ou fibra, perdendo-se assim técnicas e conhecimentos milenares, sintetizados em cada um dos barcos tradicionais, todos atualmente ameaçados de extinção. Canoa do Alagoas Nas lagoas que dão nome ao estado de Alagoas ainda existem exemplares de canoas específicas daquele complexo lagunar. Derivam, como todas as canoas do nordeste, das canoas baianas, com boa dosagem das do rio São Francisco. Como atuam em águas protegidas, são mais leves e delicadas. Sua principal característica é o profundo tosamento (recorte ou desbaste) longitudinal, que lhe confere uma forma suave e esguia. O fundo é chato e, a proa e a popa, bastante alteadas. A proa, trabalhada como a da canoa do rio São Francisco, sempre apresenta prolongamento curto e formato rústico. A coleção de canoas do Museu Nacional do Mar está em exposição em outros espaços do museu, como a Sala Amyr Klink, Sala da Amazônia, Sala da Bahia e Sala do Rio São Francisco. |
Muito interessante essa matéria!
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