quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

RIBEIRO - O SAARA E A PRAÇA ONZE ... (1)


 Anpuh Rio de Janeiro
‘Usos do Passado’ — XII Encontro Regional de História ANPUH-RJ 2006:
Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro – APERJ
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O SAARA E A PRAÇA ONZE, NO CENTRO DA CIDADE DO RIO DE JANEIRO, SÉCULO XX: UM ESTUDO SOBRE ETNICIDADE E CULTURA URBANA

Paula Ribeiro


A última década do século XX se mostrou frutífera em termos de estudos voltados para a história do Rio de Janeiro. A memória da cidade – que tanto se confunde com a memória de nosso país –, assim como a de seus bairros, vem sendo tema de diversos trabalhos acadêmicos (ou não) o que demonstra que há um maior interesse dos cariocas em relação à sua própria cidade. Muitos desses estudos privilegiam as transformações ocorridas no espaço urbano, mas, no entanto, deixam de levar em consideração aspectos importantes das relações sociais que nele se dão.

Em contrapartida, outros estudos vêm abrindo caminhos para uma maior compreensão da história social e da cultura da cidade, quando a observam a partir das práticas e das disputas cotidianas “dos que nela vivem e a recriam como experiência particular”.1 Estes são os estudos inovadores, pois levam em consideração e esclarecem sobre o “espaço social” da cidade, e incorporam os sujeitos, os “protagonistas”, os que verdadeiramente “desempenham a história”.2

Lidando com as categorias cultura e territorialidade, em minha apresentação no SimpósioTemático “Imigração e História Social – o caso particular do Rio de Janeiro” – no XII Encontro Regional de História Anpuh/Rio, pretendo, através de dois estudos de caso, discutir o que poderíamos chamar de ‘potencialidades de diálogos com diferentes evidências históricas’ tendo, como campo de estudo, a temática da imigração urbana. Destaco que dentro da perspectiva mais ampla da vida na cidade, compreendendo o termo cidade, como afirma Marcel Roncayolo, como um espaço onde “acumula-se uma grande soma de experiências históricas.” Esta noção que o autor nos traz, nos leva a entender que a cidade é, por fim, o ‘lugar de constituição dos sujeitos’. Um lugar de práticas sociais.3

Valorizando os imigrantes como “protagonistas” de nossa de cidade, neste trabalho – através de uma análise interdisciplinar – cito o espaço comercial no Centro do Rio de Janeiro, conhecido popularmente como Saara e por muitos identificado como o “ espaço árabe” da cidade, e apresento a conhecida Praça Onze, que é chamada por muitos cariocas de a “ Pequena África do Rio de Janeiro”. 








(cenas do comércio popular do Saara - Rio de Janeiro)

O espaço do Saara4, tema de minha dissertação de Mestrado intitulada Saara, uma paisagem singular na cidade do Rio de Janeiro ( PUC/SP, 2000) é marcado pela presença de imigrantes árabes (sírios e libaneses) e judeus e seus descendentes, e minha abordagem considera as experiências e práticas sociais que estes imigrantes desenvolveram no contexto do Saara, constituindo uma territorialidade própria, com marcas de sua cultura de origem.

No caso da Praça Onze, temática que orienta minha pesquisa de Doutorado que desenvolvo na PUC/SP, e da qual tratarei mais neste trabalho, procuro situá-la enquanto um espaço que adquire significado pela prática sócio-cultural e experiência cotidiana de um grupo de negros e imigrantes judeus, que ali se estabeleceram a partir da virada do século XIX para o XX. 

Considerando a Praça Onze como um elemento constitutivo de história e de memória para membros destes dois grupos, busco discutir as maneiras como criam modos de viver próprios, e estratégias e práticas de sobrevivência não apenas no espaço da Praça Onze mas também na cidade. Em função desta preocupação pretendo, através de memórias (orais e escritas) e outros documentos, analisar modos de viver de negros e imigrantes judeus e seus descendentes, nesse espaço, e como foram constituindo e (de) marcando essa territorialidade ao longo de quase meio século. E como expressam, através das experiências vividas na Praça Onze, o que para um grupo era a sua “pequena África” e para o outro o seu “bairro judeu”.

Em minha pesquisa de Doutorado dou continuidade a uma reflexão que venho desenvolvendo sobre a maneira como diferentes grupos étnicos, durante o século XX, imprimem marcas de suas culturas de origem na cidade do Rio de Janeiro (especificamente em alguns bairros da cidade)5 e como estas, reelaboradas, podem ser entendidas tanto como formas de luta de preservação de suas tradições, como também luta por ‘espaço’ na cidade. Verificamos que apesar destes dois diferentes grupos étnicos viverem no mesmo local, no mesmo período histórico, eles têm formas de percepção, de representação, de elaboração e organização diferenciada. O que quer dizer modos distintos de viver e praticar o lugar, o que em última instância significa modos distintos de viver e praticar a cidade do Rio de Janeiro. Mas isto, de forma nenhuma, implica em dizer que não havia experiências compartilhadas.

Negros e judeus foram se apropriando deste lugar, atribuindo significados a ele e constituindo um modo vida e práticas cotidianas diferenciadas, mas compartilhadas. Para além das formas de organização e da dimensão física do espaço, portanto, me interessam os processos que nele se desenvolveram e como ali se configurou uma rede de relações sociais e comerciais intensa. E que, apesar não existir mais fisicamente, membros destas comunidades ainda consideram e valorizam a Praça Onze como um espaço de memórias de experiências vividas. 6

A região que compreende o que é chamado de Praça Onze hoje não tem mais o traçado original e as formas de uso – residencial e comercial – anteriores. Suas casas, suas vilas, seus terreiros e rodas de samba, sua sinagoga, seus cafés e cinemas, suas alfaiatarias, oficinas e tipografias, seus armazéns e açougue casher, suas marcenarias e casas de móveis, são hoje “memórias”. Mas os membros das comunidades negra e judaica ainda hoje realimentam e reelaboram essa memória social do lugar que pode ser entendida como uma forma de luta, e luta pela significação e preservação deste espaço. Uma luta que tem visibilidade quando a comunidade negra tem, hoje, na atual Praça Onze, um marco muito forte de sua cultura: o carnaval carioca. Nas proximidades do que ficou conhecido como a “pequena África” do Rio de Janeiro, foi construído o sambódromo – a Passarela do Samba –. E é onde fica também o Monumento ao Zumbi – que é reverenciado, anualmente, no dia 20 de novembro, feriado na cidade do Rio de Janeiro, quando se comemora o Dia da Consciência Negra, Dia de Zumbi dos Palmares7.

Assim como, nos “escombros” da Praça Onze, foi construída uma escola municipal modelo chamada Tia Ciata, uma homenagem à mais famosa das baianas moradora da Praça Onze na virada do século XIX para o século XX. 8

Por outro lado, os judeus também expressam as experiências sociais vividas por eles na região e conferem significado e relevância à essa memória do local. Um grupo de judeus se reúne anualmente nos chamados “almoços da Praça Onze”, que são realizados em um clube judaico na zona sul da cidade, e rememoram os “tempos da Praça Onze”. Os judeus não freqüentam mais a Praça Onze, e não há traços desta cultura no local, mas realimentam e preservam sua memória. Neste sentido, poderíamos dizer que através da memória, negros e judeus atribuem e mantêm um significado do lugar. Significado este que é tanto pessoal quanto coletivo. Portanto, poderíamos afirmar que se fisicamente a Praça Onze não existe mais, é certo afirmar que ela ainda existe, e fortemente, na memória dos negros e judeus que ali viveram e de seus descendentes. Pois será este trabalho de e com a memória que me proponho a  realizar. A seguir, algumas tentativas de diálogo com (entre) minhas fontes orais. O depoimento deLucia Aizim, , imigrante russa, de origem judaica, ex-moradora da Praça Onze, aonde chegou em 1921,é bastante expressivo sobre a realidade vivida por ela na Praça Onze:

“(...) Olha, eu achei muito bom [dar um depoimento] porque são coisas às vezes que eu nem me lembro de falar com as pessoas. (...) e a gente puxando pela memória, então, palavra puxa palavra, não é? E então a gente chega a toda uma história da vida que ainda não é a verdadeira. Ainda não é a verdadeira porque a verdadeira ainda é outra. Mas enfim, eu acho muito bom..9

A relação entre memória e história tem sido objeto de reflexão e concordo com a afirmação de que o “conhecimento histórico produzido sobre o passado – categoria sempre definida e reconstruída como objeto – tem, na própria produção de memórias, uma de suas fontes e também um de seus objetos privilegiados”.10

 Neste sentido, problematizar as trajetórias de negros udeus na Praça Onze, durante os anos de 1920 a 1950, significa valorizar a memória como importante fonte de pesquisa. Os sujeitos sociais que vivenciaram o espaço da Praça Onze, assim como outros sujeitos históricos, têm a necessidade de elaborar um passado, uma memória, que dê sentido às suas experiências pessoais. Nesse sentido levamos em consideração as particularidades das memórias individuais e a pluralidade dos depoimentos (depoimentos orais), 11

O modo como cada um desses indivíduos constitui esse viver urbano é heterogêneo, e essas diferenças são manifestadas em seus depoimentos, pela forma que refletem sobre a sua experiência, e as relações sociais que se forjam nesse contexto. Essas narrativas nos permitem reconhecer e dimensionar possibilidades históricas diferenciadas, que devem ser problematizadas, visto quemembros da comunidade negra e da comunidade judaica constituíram trajetórias singulares nesse espaço. Conforme salientou A. Portelli, mesmo que a memória seja um processo individual e uma reflexão particular sobre os acontecimentos, os indivíduos são “moldados” pelo ambiente social em que vivem, e, portanto, trazem dimensões coletivas dessa experiência social vivenciada. O que esse trabalho com a memória nos ensina portanto, “não é a importância abstrata do indivíduo, (...) , mas a importância idêntica de todos os indivíduos” e que, desse modo, a memória, ainda que individual, aponta para uma experiência social da coletividade da Praça Onze.12

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amanhã, quinta, a segunda parte da série

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