sexta-feira, 10 de fevereiro de 2012

HERIVELTO MATRTINS (1) - "AVE MARIA NO MORRO"

HERIVELTO MARTINS, 100 ANOS

O RIO DE HERIVELTO (1)


Vicente Moreira








(Morro da Mangueira - Rio de Janeiro - Brasil)


AVE MARIA NO MORRO

Herivelto Martins

Barracão
De zinco
Sem telhado
Sem pintura lá no morro
Barracão é bangalô
Lá não existe
Felicidade
De arranha-céu
Pois quem mora lá no morro
Já vive pertinho do céu
Tem alvorada
Tem passarada
Ao alvorecer
Sinfonia de pardais
Anunciando o anoitecer
E o morro inteiro
No fim do dia
Reza uma prece
À ave maria
E o morro inteiro
No fim do dia
Reza uma prece
À ave maria
Ave maria
Ave


João Gilberto e Caetano Veloso
(en)cantam "Ave Maria no Morro"


A primeira gravação de "Ave Maria Morro" (Colúmbia, nº 55319), com o 'Trio de Ouro" e orquestra, sob a regência do maestro Fon-Fon (Otaviano Romeiro) completará 70 anos em 5 de junho próximo. 



(Morro do Pinto e a igrejinha - Rio de Janeiro - Brasil)

Segundo Herivelto a composição foi inspirada num "entardecer do morro, naquela igrejinha da favela, no Morro do Pinto" (foto).


"Considerada precursora de um estilo que envolveria e influenciaria o resto dos anos 40, constitui uma das músicas de Herivelto mais respeitada pelos críticos.


Esse samba-canção é um verdadeiro achado, surpreendente, inclusive, pela delicadeza da imagem sugerida, muito próxima à criada em Chão de estrelas. A composição, considerada a princípio muito dolente, receberia inúmeras gravações, inclusive no exterior, destacando-se a do cantor francês Jean Sablon."  (Herivelto Martins. Nova história da Música Popular Brasileira, São Paulo (SP - Brasil),  Abril, 2ª ed. rev. ampl.,  1977) 


Apesar de todo o seu destaque na história da MPB (Música Popular Brasileira), "Ave Maria no Morro" interessa especialmente a este Blogue pelo que ela apresenta de uma certa visão urbana do Rio de Janeiro que Herivelto nos oferece nesta e em outras composições. Não é apenas a "delicadeza da imagem" que aproxima "Ave Maria no Morro" de "Chão de Estrelas" de Silvio Caldas.



Minha vida era um palco iluminado
Eu vivia vestido de 'doirado'
Palhaço das perdidas ilusões
Cheio dos guizos falsos da alegria
Andei cantando a minha fantasia
Entre as palmas febris dos corações
Nosso barracão no morro do salgueiro
Tinha o cantar alegre de um viveiro
Foste a sonoridade que acabou
E hoje, quando do sol, a claridade
Forra o meu barracão, sinto saudade
Da mulher pomba-rola que voou
Nossas roupas comuns dependuradas
Na corda qual bandeiras agitadas
Pareciam um estranho festival
Festa dos nossos trapos coloridos
A mostrar que nos morros mal vestidos
É sempre feriado nacional
A porta do barraco era sem trinco
Mas a lua furando nosso zinco
Salpicava de estrelas nosso chão
Tu pisavas nos astros distraída
Sem saber que a alegria desta vida
É a cabrocha, o luar e o violão.

*****************

A porta do barraco era sem trinco
Mas a lua furando nosso zinco
Salpicava de estrelas nosso chão
Tu pisavas nos astros distraída



...   é, na minha opinião, um dos mais belos versos da MPB e, mesmo, da poesia brasileira. "Ave Maria no Morro" e "Chão de Estrelas", de compostores diferentes, exibem uma mesma visão - diríamos, talvez - 'romântica' ... mas certamente poética e alegre ...das favelas do Rio de Janeiro (e, claro, das demais cidades brasileiras e latinoamenricanas); mas há nas duas o reconhecimento de uma estética do morro:

Barracão
De zinco
Sem telhado
Sem pintura lá no morro
Barracão é bangalô
Lá não existe
(Ave Maria ...)

Nossas roupas comuns dependuradas
Na corda qual bandeiras agitadas
Pareciam um estranho festival
Festa dos nossos trapos coloridos
A mostrar que nos morros mal vestidos
É sempre feriado nacional
(Chão ...)

Ambas - embora de modo diferenciado - cobrem a dura e pobre vida das favelas com vestes de conformismo ou, ao menos, de resignação. A resignação de "Ave Maria ..." traz um viés religioso, místico da prece a Nossa Senhora ((Ave Maria),  do "viver pertinho do céu", apesar de não existir, lá, a "felicidade de aranha-ceu" (prédio alto).





(Morro do Salgueiro - Rio de Janeiro)

Porta sem trinco (fechadura), teto furado permitindo a entrada  da luz da lua (mas também do sol e da água da chuva) que, em pequenas "gotas' de luar "salpicava de estrelas nosso chão". 

"Ave Maria no Morro" e "Chão de Estrelas" são, sem dúvida,  duas formas líricas de denunciar (?) as precariedades habitacionais das favelas do Rio de Janeiro, no caso. 



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