domingo, 22 de janeiro de 2012

TEMPOESIA NAS CIDADES - JUDITH HERZBERG


TEMPOESIA NAS CIDADES  

POSTAGENS 
DE POESIAS QUE EXIBAM  
ALGUM DESTAQUE À  CIDADE


 JUDITH HERZBERG 
(poeta holandesa)





Poesia de Judith Herzberg 
lida por Jorge Silva Melo 
na presença da poeta.

CORAGEM


A noite deixou-me outra vez transtornada
lentamente a manhã se enche
de palavras que eu sei de certeza
que significavam alguma coisa, mas o quê?
que ontem significavam alguma coisa.

Andar é balançar sobre os pés,
vejo na rua os seres de sangue quente
que tiveram também a inexplicável coragem
de se levantarem
em vez de ficarem deitados.

Nunca ninguém tem a certeza de nada,
de ser amado, de ser abandonado
tudo é possível e tudo é permitido
tudo sucede em alternância.

Agora me lembro o que queria dizer:
enquanto isso não trouxer infelicidade
é uma sensação agradável. Mas no fundo
somos doces como Turkish Delight
numa lata cheia de pregos.


Descobri Judith Herzberg como autora de peças de teatro. Em 1999, terei lido, em traduçfrancesa, Os Casamentos de Lea (1982), peça complexa, grande peça, peça admirável onde ela, com dorida ironia, faz cruzar diálogos, invectivas, recordações de uma dúzia de personagens, adultos cuja infância decorreu durante a II Guerra, numa Holanda ocupada pelos nazis, gente que, tantos anos e casamentos depois, ainda não sabe viver, nem manter relações, nem crescer, destruída, desfeita que lhes anda a imparável vida sempre a recomeçar. É uma peça fascinante, simples e complexa, de uma complexidade musical, orquestral como raros autores conseguem, e lembramo-nos de Tchéckhov e da sua amplidão coral.

E pus-me a ler o seu teatro, em línguas que entendo, até estrearmos O Caracal, belíssima peça para uma actriz que o Alberto Seixas Santos dirigiu e a Sofia Aparício interpretou, no Teatro Taborda, em 2003. E até eu próprio conseguir, em 2005, dirigir a tão linda Fábrica de Nada, musical para todos, pais e filhos, adultos e amigos, invenção linguística e musical. Mas antes, um dia em que veio a Lisboa, ainda havia, no Bairro Alto, aquela A Capital que a ela tanto encantou, foi em 2000, Judith Herzberg ofereceu-me uma antologia dos seus versos, traduzidos em inglês. E duas ou três recolhas em alemão. Só então entendi que Judith Herzberg, que publica poesia desde 1963 (data do seu belíssimo Correio Marítimo), é um dos maiores poetas holandeses, devidamente premiada e louvada, com obra reconhecida por todo o lado, sobretudo na Alemanha.

E desatei a ler esta poesia leve, em que cai a sombra dos dias e os pesadelos da memória, a leveza das lembranças também, anotações que serão, para que nada esqueça, para que alguma coisa se salve, a poesia será “o que resta do dia”, na expressão tão pertinente que foi colher a Freud. Sucinta, a sua poesia curva-se perante a ironia e a melancolia, é ácida e estóica, brinca e indica, realista e fantasista, trazendo ao verso uma língua que oscila e vibra, sentidos, formas, infantilidades e pesadelos, temores e sorrisos, essa espuma. Gosto de a ler em inglês, que não sei neerlandês, gosto de a ler ao lado da grande poesia que, neste século, nos veio da Grã-Bretanha e da América, gosto de a ler, irónica e selvagem, com a rudeza delicada de um Dubuffet (a quem dedica uma poesia, das poucas com endereço), gosto de a reler. Durante estes anos, aqueles livros, a
antologia inglesa e as recolhas alemãs, não se sentaram na biblioteca, nesse quarto ao lado do esquecimento, andaram por aqui, no escritório de todos os dias, encontro-os no sofá, junto à cama, na mesa da cozinha, têm-me acompanhado, na inconstância dos dias.

E a ela, que tanto gosta da lentidão, do correio por via marítima (título da sua primeira recolha), tenho-a lido devagarinho, há sete anos que a vou lendo, afinal, sem atropelo, há poetas assim, a sua poesia é lenta, adagio molto.

Agora, ei-la aqui, à sua poesia, agora em português, com original ao lado, para vermos o jogo (onde tanto se perderá, tanto também se ganhará), para salvarmos a biblioteca. E o que são as poesias de Judith Herzberg, tão cantáveis, onde tantas vezes ecoam formas populares, cantilenas, adivinhas, músicas, gatos e lápis de cor, onde tantas vezes a iridescência das palavras corta, brutal, a melopeia, insere, crua, a realidade, incrusta o imponderável peso das coisas, de todas as coisas, e esse tacto, esse tacto que desde sempre me fez pensar que “esta é a poesia das coisas, a sua poeira”.

A poesia de Judith Herzberg será a recolha do ouro dos dias, poeira que pode ser, pólens de primavera, é leve e grave, inocente e vivida, sobra nela uma criança, a das rimas infantis, assoma nela a consciência grave da História, da vida tão brutalmente afirmada. Só muito mais tarde percebi que quem a convidou a escrever para o teatro, fê-lo porque reconheceu nos versos de Judith Herzberg a presença das vozes, a cor imanente das personagens, a impermanente mutação das formas, subtilmente passando, lentamente passando pelo corpo.

Eu também gosto de ler em voz alta as poesias de Judith Herzberg, em português, claro. É também como se anotasse a minha vida e a da minha gente.

Jorge Silva Melo, Lisboa (Portugal) novembro 2007

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