[fonte – revista Veja. São Paulo (SP – Brasil), 25 de janeiro de 2012, pp 92-96]
O ÁSPERO COLOSSO
Augusto Nunes
No 458º aniversário da fundação de São Paulo, a capital que o Brasil ama odiar continua a ampliar o portentoso mosaico étnico.
AUGUSTO NUNES
A visão da cordilheira de arranha-céus intimida os que acabam de chegar, e quem chega pensando em ficar descobre logo na entrada que o aviso do baiano Caetano Veloso num verso de Sampa vale para qualquer forasteiro: será um difícil começo. O áspero colosso provoca temores que a beleza hipnótica do Rio de Janeiro abranda, sugere perigos que o jeito oferecido de Salvador revoga. A sexta maior metrópole do planeta jamais sorri no primeiro encontro com desconhecidos (às vezes não sorri nunca) e não consegue ser efusiva com ninguém. Mas tem vagas (e algum tipo de emprego à espera dos aprovados) para todos os que topam submeter-se ao teste de sobrevivência na cidade que completa 458 anos neste 25 de janeiro.
A insegurança dos primeiros meses é acentuada pela sensação de que o perigo mora em cada esquina. Não é bem assim. Em 2000, a taxa de homicídios na cidade era de 64,8 para cada 100.000 habitantes. Em 2010, caiu para treze — uma redução de 80%. Nesse mesmo período, esse índice acusou um crescimento de 113% na aparentemente inofensiva Curitiba. Proporcionalmente, São Paulo é a capital com menos homicídios do país — a triste campeã é Maceió, com 110 assassinatos para cada grupo de 100.000 habitantes.
A penosa sensação deixa cicatrizes, e mesmo quem se entrega a São Paulo prefere namorar em segredo a cidade que os brasileiros amam odiar em público: Nelson Rodrigues repetiu em várias crônicas que a pior forma de solidão é a companhia de um paulista, Vinicius de Moraes enxergou o túmulo do samba no lugar repleto de bons sambistas. Entre os grandes compositores de outras paragens, só Caetano, o também baiano Tom Zé e o fluminense Martinho da Vila cantaram — com ressalvas — os encantos ocultos da metrópole.
Mas São Paulo continua atraindo gente disposta a enfrentar a muralha de concreto e abrir espaço nos 1.523.278 quilômetros quadrados do perímetro urbano. Nesse território se movem mais de 11,2 milhões de habitantes (11.253.503, no censo de 2010), 2,5 milhões de cães e 562.000 gatos com endereço fixo, outros milhares sem teto e mais de 7 milhões de veículos. Diariamente, são emplacados outros 1160, acentuando a sensação de que, algum dia, os 17.000 quilômetros de ruas e avenidas se transformarão num gigantesco beco congestionado — e sem saída.
Os nativos da capital paulista não atingem 60% da população. Os paulistanos adotivos que não param de chegar seguem ampliando o portentoso mosaico etnorracial forjado por imigrantes e brasileiros procedentes do país inteiro. Abstraído o quase 1 milhão de paulistas nascidos nos outros 644 municípios, mais de 900.000 baianos compõem a maior colônia regional. São Paulo fala português com todos os sotaques e acentos conhecidos e figura entre as cinco cidades mais poliglotas do mundo. O recenseamento anual da Polícia Federal informa que 306.077 estrangeiros com domicílio permanente e 1579 refugiados representam, somados aos nativos, 152 nacionalidades – quarenta abaixo das 192 agrupadas na Organização das Nações Unidas.
Baseado na documentação apresentada na chegada ao Brasil, o levantamento da Polícia Federal preserva espécies que a ONU considera desaparecidas ou perto da extinção. Sobrevivem em São Paulo, por exemplo, sessenta soviéticos e 136 alemães-orientais. A lista reúne um punhado de pungentes solidões: 25 nacionalidades têm só um representante na cidade. Enquanto católicos pertencentes a comunidades mais populosas frequentam igrejas que celebram missas em chinês ou esloveno, o único nepalês da metrópole só poderá matar a saudade da língua natal se falar sozinho.
Como só entra nas contas da PF quem não nasceu na cidade, em São Paulo o ranking das comunidades estrangeiras é liderado pelos 78.073 portugueses. Se fossem computados os descendentes, a maior coleção de sobrenomes italianos do mundo jamais cairia do primeiro lugar que ocupou por quase 100 anos. A longa supremacia contribuiu para transformar o paulistano num devorador de pizzas. Consome-se na cidade 1 milhão delas por dia, o que equivale a 732 por minuto. Colocadas lado a lado, as pizzas engolidas anualmente formariam uma linha reta cujo comprimento equivale a sete viagens de ida e volta a Roma.
Em São Paulo desde 1978, Lin Chung Long, o Mister Lin, é a metade da colônia formada por dois nativos de Taiwan e também o dono da mais requisitada relojoaria de São Paulo. Aos 58 anos, conserta qualquer tipo de relógio, mas só garante a pontualidade dos outros. Não tem hora certa para abrir a loja nem para encerrar o expediente. Quando baixa a porta de ferro, a inscrição numa placa — “Mister Lin dá um tempo” — identifica um náufrago feliz no oceano de gente aparentemente apressada. “As pessoas querem tudo muito rápido”, lamenta. Essa pressa é enganosa. “Se eu ficar batendo lata no Viaduto do Chá, junto 5000 pessoas em dez minutos”, garantia Jânio Quadros.
É provável que sim. Os habitantes da cidade que não pode parar vivem parando por qualquer motivo, ou sem motivo algum. Parariam para saber o que fazia aquele homem batendo lata os que param para não comprar o remédio que garante prodígios de virilidade oferecido por um camelô, para comprar uma caixa de Dorflex, o remédio favorito da capital da automedicação, ou para tomar cafezinho e comer pastel de feira. São Paulo bebe 30 milhões de xícaras por dia, 20.833 por minuto. E as barracas das 882 feiras, somadas, vendem 202.000 pastéis por dia, 140 por minuto.
Os turistas preferem parar diante das vitrines das 240.000 lojas da cidade. Gastam o que têm nas ruas comerciais do centro, gastam o que não deviam no templo consumista da Oscar Freire ou em alguma das 10.000 lojas entrincheiradas nos shoppings. A cada segundo, dez cartões de crédito e débito são utilizados. A cada dia, são consumadas 864.000 transações. Fazer compras em São Paulo é um item obrigatório na agenda dos 11,7 milhões de turistas — 10,1 milhões de brasileiros e 1,6 milhão de estrangeiros — que desembarcam anualmente em São Paulo.
Segundo o Observatório do Turismo de São Paulo, 43,7% viajam a negócio, 27,5% são participantes de feiras ou congressos e só 12,5% procuram atividades culturais ou outras formas de lazer. A maioria fica de três a quatro dias num dos 42.000 quartos disponíveis nos 410 hotéis. Seja qual for a razão da visita, todos os turistas aumentam os lucros da rede culinária formada por 12.500 restaurantes, que oferecem pratos de 52 tipos de cozinha. No campo da gastronomia, só Nova York rivaliza com São Paulo.
Em 2011, a Virada Cultural juntou 4 milhões de cabeças, a Parada LGBT atraiu 3 milhões e nem a chuva dispersou os 2,5 milhões de participantes do réveillon da Paulista, o principal cartão-postal da cidade e a avenida favorita de todos os manifestantes. Em dias normais, 1,5 milhão de pedestres e 90.000 carros circulam pelo antigo reduto dos palacetes dos barões do café que hoje, coerentemente, hospeda o prédio da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp). A entidade representa as 34.000 indústrias baseadas na capital. Essa cifra ajuda a entender por que um município ocupado por 6% da população brasileira concentra 15% do PIB nacional.
A revolução industrial que pariu a metrópole foi inclemente com a paisagem da cidade provinciana. O local escolhido para a construção do Colégio dos Jesuítas garantiu a São Paulo um berço bordado por três rios e mais de 100 córregos. O azul desse deslumbramento fluvial desbotou ou sumiu. O verde resiste como pode. O Parque Estadual da Cantareira disputa o título de maior floresta urbana do mundo. São Paulo tem 2 milhões de árvores. Colhe-se fruta no pé numa jabuticabeira da Avenida Brasil ou nas pitangueiras da Praça Panamericana. Esses pequenos milagres seriam menos raros se o metrô fosse mais antigo e extenso, e se São Paulo aprendesse que não precisa de tanto asfalto. Os paulistanos ignoram que é possível deslocar-se sem automóvel nem ônibus, e com mais rapidez.
Sabem disso os donos dos 400 helicópteros que compõem uma frota só inferior à de Nova York. Muitos voam orientados pelo Edifício Itália, que deixou de ser o mais alto da cidade com a inauguração do Mirante do Vale, e costumam passar rente à janela do restaurante de onde um homem saltou de paraquedas. Os clientes sempre acrescentam à sobremesa a contemplação da cidade que em 2010 registrou 62.989 casamentos, 8904 divórcios, 2063 separações judiciais, 186 119 nascimentos e 77.286 mortes.
Nasceram 510 por dia, morreram 211. Na metrópole superlativa que ameaça matar de susto quem chega, ninguém morre de tédio.
COM REPORTAGEM DE BRANCA NUNES, FERNANDA NASCIMENTO E JÚLIA RODRIGUES
UMA METRÓPOLE DE SUPERLATIVOS
São Paulo é a campeão de mundo em:
Iluminação pública
Número de lâmpadas
São Paulo: 570.000
Rio de Janeiro: 390.000
Cidade do México: 350.000
Nova York: 321.000
Tamanho do mercado central (em metros quadrados)
São Paulo - Mercado Municipal: 12.600
Toronto (Canadá) – St. Lawrence: 10.000
Barcelona (Espanha) – L Boqueria: 9000
Transplante de rim e fígado (Número de transplantes em 2010)
RIM
São Paulo: 1604
Nova York (EUA): 1176
Suíça: 298
FÍGADO
São Paulo: 598
Portugal: 249
Polônia: 239
Número de motoboys
São Paulo: 170.000
Londres: 10.000
A capital inglesa é a única grande cidade, além de São Paulo, que conta a trota de motoboys.
Fontes: SPTuris, livro mercado Municipal Paulistano – Setenta e Cinco Anos de Aromas, Cores e Sabores, de J.A. Tiradentes (Editora Supra), Associação Brasileira de Transplante de Órgãos (ABTO) e sindicato dos trabalhadores motociclistas da cidade de São Paulo (Sindimoto).
O POMAR DO JARDINEIRO
Não fossem os odores repulsivos e a moldura feita de arranha-céus, quem caminha pela viela de terra que margeia o Rio Pinheiros e topa com o Pomar Urbano pode achar que caiu numa fazenda do interior paulista: vacas pastando contracenam com famílias de capivaras ou bandos de lagartos no cenário suavizado por centenas de palmeiras-jerivá, biris-vermelhos e grama-amendoim. Responsável pela plantação e conservação do lugar, Daniel Sousa de Oliveira é um dos oitenta jardineiros do Pinheiros, “Sinto orgulho quando vejo alguma propaganda que mostra o pomar”, confessa. “Parece que sou eu que estou na televisão.” Se pudesse escolher o que é plantado ali, Daniel optaria por mais quaresmeiras e ipês. De que cor? “Todas”, responde. “Acho injusto achar uma cor mais bonita que a outra. Elas se completam.”
O VENDEDOR DE GUARDA-CHUVAS
“Boa chuva!”, deseja Rido Grecco aos que, minutos depois de entrar com roupas molhadas, saem prontos para enfrentar a tempestade. Integrante da terceira geração de uma família de fabricantes de guarda-chuvas, Aldo administra a loja que, aberta em 1971, é a mais antiga do gênero em São Paulo. “Antes, o guarda-chuva fazia parte do vestuário”, conta. “As pessoas procuravam qualidade. Hoje, querem algo pequeno e barato.” Apesar da invasão dos produtos chineses e do sumiço da garoa paulistana, Aldo não tem queixas a fazer. “Em São Paulo, o que você faz você vende”, garante. Um dos milhões de descendentes de italianos que vivem na cidade, ele avisa que não pretende suspender a fabricação de peças que custam mais de 300 reais. “Isso, sim, é um guarda-chuva de verdade.”
O DONO DA BICA
A cidade que matou mais de 100 córregos, sepultou um rio e mantém outros dois na UTI não conseguiu assassinar uma relíquia inverossímil: a única fonte de água mineral urbana do mundo. Localizada no bairro de Santo Amaro, fica a 500 metros abaixo da superfície e a menos de 5 quilômetros do agonizante Pinheiros. Nos anos 80, a Fonte Petrópolis Paulista foi comprada pelo pai de Amilcar Lopes Junior, atual proprietário. “Além de entregarmos em casa, as pessoas podem trazer recipientes e enchê-los com água”, explica. O litro é vendido a 0,27 real e cada um dos mais de 40.000 clientes mensais leva para casa 40 litros do líquido inacreditavelmente insípido, inodoro e incolor. Os paulistanos consomem mais de 3,5 bilhões de litros de água tratada pela Sabesp por dia, o equivalente a 1400 piscinas olímpicas. Os fregueses da Petrópolis bebem, literalmente, água na fonte.
UMA ITÁLIA COM SOTAQUE ESCOCÊS
Poderia ser Positano, na Itália, ou algum vilarejo francês na Provença, dois dos muitos lugares deslumbrantes onde Nick Johnston morou nos seus 43 anos de vida. Mas foi em São Paulo que esse escocês de Edimburgo decidiu abrir a Bacio di Latte, sorveteria — “gelateria”, ele faz questão de dizer — que se transformou num dos cases de sucesso de 2011. “Quando dois amigos italianos falaram na ideia da gelateria, topei na hora”, diz. São Paulo tem muita gente com um gosto tão refinado como o dos europeus. E tem também a mão de obra que trabalha de forma artesanal com muita competência.” Numa cidade onde, a cada ano, 30% dos bares e restaurantes abrem e fecham as portas, a Bacio festejou o primeiro aniversário com o recorde estabelecido num domingo de sol: um sorvete vendido a cada trinta segundos.
O PAULISTANO TÍPICO
São Paulo tem 11,2 milhões de habitantes, somados os paulistanos de nascimento, os brasileiros originários dos outros 26 estados e os imigrantes vindos de mais de 150 países
• É mulher (52,7% dos habitantes são do sexo feminino)
• Tem entre 25 e 29 anos (faixa de idade que abarca quase 10% da população)
• É branco (60,6% dos paulistanos declararam ter essa cor)
• Sabe escrever (96,9% dos moradores são alfabetizados)
• Concluiu o ensino médio (40,7% da população)
• Ganha até dois salários mínimos (faixa salarial que abarca 36,4% da população)
A FREADA DA POPULAÇÃO
A partir dos anos 80, São Paulo começou a crescer menos que o Brasil.
1872
CRESCIMENTO
São Paulo:
Brasil:
POPULAÇÃO
São Paulo: 31.385
Brasil: 9,9 milhões
1890
CRESCIMENTO
São Paulo: 107%
Brasil: 44%
POPULAÇÃO
São Paulo: 64.934
Brasil: 14,3 milhões
1900
CRESCIMENTO
São Paulo: 269%
Brasil: 22%
POPULAÇÃO
São Paulo: 239.820
Brasil: 917,4 milhões
1920
CRESCIMENTO
São Paulo: 141%
Brasil: 76%
POPULAÇÃO
São Paulo: 579.033
Brasil: 30,6 milhões
1940
CRESCIMENTO
São Paulo: 129%
Brasil: 35%
POPULAÇÃO
São Paulo: 1,3 milhão
Brasil: 41,2 milhões
1950
CRESCIMENTO
São Paulo: 65%
Brasil: 26%
POPULAÇÃO
São Paulo: 2,2 milhões
Brasil: 51,9 milhões
1960
CRESCIMENTO
São Paulo: 72%
Brasil: 36%
POPULAÇÃO
São Paulo: 3,8 milhões
Brasil: 70,9 milhões
1970
CRESCIMENTO
São Paulo: 55%
Brasil: 33%
POPULAÇÃO
São Paulo: 5,9 milhões
Brasil: 94,5 milhões
1980
CRESCIMENTO
São Paulo: 44%
Brasil: 28%
POPULAÇÃO
São Paulo: 8,5 milhões
Brasil: 121,1 milhões
1991
CRESCIMENTO (a melhora da economia brasileira fez cair o fluxo de migrantes para São Paulo)
São Paulo: 13%
Brasil: 21%
POPULAÇÃO
São Paulo: 9,6 milhões
Brasil: 146,9 milhões
2000
CRESCIMENTO
São Paulo: 8%
Brasil: 16%
POPULAÇÃO
São Paulo: 10,4 milhões
Brasil: 169,8 milhões
2010
CRESCIMENTO
São Paulo: 8%
Brasil: 12%
POPULAÇÃO
São Paulo: 11,2 milhões
Brasil: 190,8 milhões
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