[fonte - jornal Folha de São Paulo. São Paulo (SP - Brasil), 25 de janeiro de 2012, p. C2]
QUERIDA E HORROROSA CIDADE
Antonio Prata
Uma Virada Cultural por ano não pode competir com um motoboy morto por dia em São Paulo
Às vezes acontece de criticarem um amigo e eu não poder discordar: é verdade, ele tem mesmo tais e tais defeitos. Nada do que disserem, contudo, mudará meus sentimentos ou a nossa relação. Afinal, laços de amizade não são criados a partir de uma planilha do Excel, onde analisamos os prós e os contras da pessoa para, então, decidir nos aproximar; nascem de acasos e necessidades mais difusas que, geralmente, já se perderam no passado. O sujeito pode ter mais falhas que a defesa do Íbis, mas há dez anos vocês jogam pôquer semanalmente, já passaram alguns Réveillons juntos e quando aquela "stronza" te deu um pé na bunda, na madrugada de uma remota terça-feira, ele apareceu no seu apartamento meia hora mais tarde, com uma garrafa de Seleta numa mão e um disco do Tom Waits na outra.
Tais ruminações me acompanham desde domingo, quando participei de um programa de rádio sobre o aniversário de SP e me dei conta de que viver aqui é como amar o amigo calhorda. Claro, a cidade tem muitas qualidades, que tentei enumerar no bate-papo, mas quanto mais falava em "programação cultural", "vida noturna" e "restaurantes", mais hipócrita me sentia: é impossível negar que nossos defeitos superam, em muito, nossas virtudes.
Uma Virada Cultural por ano não pode competir com um motoboy morto por dia nem todos os impressionistas reunidos no Masp serviriam de tapume para nossa feiura. Aqui, a falência do urbanismo está tanto na pobreza -os mares de lajes batidas- quanto na riqueza -os espigões com colunas jônicas -homenagem ao glorioso império-românico-ultramarino que, como todos sabem, precedeu a chegada dos tupis-guaranis?
São Paulo é violenta, arisca, injusta. O único momento em que vislumbramos uma sociedade igualitária é na hora do rush: todo mundo parado, respirando o mesmo monóxido de carbono. A cidade não existe como um espaço comum: é a distância que nos separa, uma ausência ou, então, um obstáculo. No entanto, gostamos dela. Por quê?
Só entendi o óbvio ululante quando minha colega Barbara Gancia, que também participava do programa de rádio, tomou o microfone e, fugindo do meu clichê de "vida noturna & programação cultural", foi direto ao ponto: "São Paulo é onde estão as pessoas que eu amo: minha família, meus amigos, meus colegas de trabalho". Simples assim.
Falemos o que for sobre esta metrópole banguela, mas é aqui que nascemos ou para cá nos mudamos, aqui nos apaixonamos, levamos pés na bunda e somos consolados. É o contrário daquela piada em que Deus termina de fazer o Brasil, irretocável em suas belezas naturais e diz: "Agora espera só pra ver o povinho que eu vou botar lá". Não somos o paraíso mal frequentado, mas um inferno cheio de pessoas queridas.
Caetano talvez tenha acertado ao nos chamar de "túmulo do samba", mas foi ainda mais feliz no final do mesmo verso, ao apontar o "possível novo quilombo de Zumbi". Falta muito, claro, para fazer desse quilombo uma cidade, mas somos jovens, temos só 458 anos (quase nada comparado à Roma, Istambul, Bombaim) e muita gente boa, disposta a trabalhar. Há que ser otimista -afinal, pior do que tá, não fica.
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