O LIVRO DO DESASSOSSEGO - Fragmentos do urbano/4
Fernando Pessoa (Composto por Bernardo Soares, ajudante de guarda-livros na cidade de Lisboa)
Este domingo me trouxe à memória uma série de postagens deste Blogue que publicava crônicas dominicais sobre (sic) o domingo e sua especifidade existencial. Não nego que penso em reeditá-las
Hoje, trascrevo trecho de O LIVRO DO DESASSOSSEGO (Op. cit., p. 161) que traduz, do lugar da subjetividade e da memorialística do narrador, uma expressão urbana comum, ordinária, de uma manhã de domingo.
Na grande praça dominical há um movimento solene de outra espécie de dia. Em São Domingos há a saída de uma missa, e vai principiar outra. Vejo uns que saem e os que ainda não entraram, esperando por alguns que não estão vendo quem sai.
Todas estas coisas não têm importância. São, como tudo no comum da vida, um sono dos mistérios e das ameias, e eu olho, como um arauto chegado, a planície da minha meditação.
Outrora, criança, eu ia a esta mesma missa, ou porventura à outra, mas devia ser a esta. Punha, com a devida consciência, o meu único fato melhor, e gozava tudo - até o que não tinha razão de gozar. Vivia por fora e o fato era limpo e novo. Que mais quer quem tem quem morrer e o não sabe pela mão da mãe?
Outrora gozava tudo isto, por isso é só agora, talvez, que compreendo quanto o gozava. Entrava para a missa como para um grande mistério, e saía da missa como para uma clareira. E assim é que verdadeiramente era, e ainda verdadeiramente é. Só o ser que não crê e é adulto, com alma que recorda e chora, são a ficção e o transtorno, o desalinho e a lajem fria.
Sim o que eu sou fora insuportável, se eu não pudesse lembrar-me do que fui. E esta multidão alheia que continua ainda a sair da missa, e o princípio da multidão possível que começa a chegra para entrar para a outra - tudo isto são como barcos que passam por mim, rio lento, sob as janelas abertas do meu lar erguido sobre a margem.
Memórias, domingos, missas, prazer de haver sido, milagre do tempo que ficou por ter passado, e não esquece nunca porque foi meu ... Diagonal absurda das sensações normais, som súbito de carruagem de praça que soa todas no fundo dos silêncios ruidosos dos automóveis, e de qualquer modo, por um paradoxo maternal do tempo, subsiste hoje, aqui mesmo, entre o que sou e o que perdí, no antero olhar de mim que sou ... eu
Este domingo me trouxe à memória uma série de postagens deste Blogue que publicava crônicas dominicais sobre (sic) o domingo e sua especifidade existencial. Não nego que penso em reeditá-las
Hoje, trascrevo trecho de O LIVRO DO DESASSOSSEGO (Op. cit., p. 161) que traduz, do lugar da subjetividade e da memorialística do narrador, uma expressão urbana comum, ordinária, de uma manhã de domingo.
Na grande praça dominical há um movimento solene de outra espécie de dia. Em São Domingos há a saída de uma missa, e vai principiar outra. Vejo uns que saem e os que ainda não entraram, esperando por alguns que não estão vendo quem sai.
Todas estas coisas não têm importância. São, como tudo no comum da vida, um sono dos mistérios e das ameias, e eu olho, como um arauto chegado, a planície da minha meditação.
Outrora, criança, eu ia a esta mesma missa, ou porventura à outra, mas devia ser a esta. Punha, com a devida consciência, o meu único fato melhor, e gozava tudo - até o que não tinha razão de gozar. Vivia por fora e o fato era limpo e novo. Que mais quer quem tem quem morrer e o não sabe pela mão da mãe?
Outrora gozava tudo isto, por isso é só agora, talvez, que compreendo quanto o gozava. Entrava para a missa como para um grande mistério, e saía da missa como para uma clareira. E assim é que verdadeiramente era, e ainda verdadeiramente é. Só o ser que não crê e é adulto, com alma que recorda e chora, são a ficção e o transtorno, o desalinho e a lajem fria.
Sim o que eu sou fora insuportável, se eu não pudesse lembrar-me do que fui. E esta multidão alheia que continua ainda a sair da missa, e o princípio da multidão possível que começa a chegra para entrar para a outra - tudo isto são como barcos que passam por mim, rio lento, sob as janelas abertas do meu lar erguido sobre a margem.
Memórias, domingos, missas, prazer de haver sido, milagre do tempo que ficou por ter passado, e não esquece nunca porque foi meu ... Diagonal absurda das sensações normais, som súbito de carruagem de praça que soa todas no fundo dos silêncios ruidosos dos automóveis, e de qualquer modo, por um paradoxo maternal do tempo, subsiste hoje, aqui mesmo, entre o que sou e o que perdí, no antero olhar de mim que sou ... eu
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