NELSON RODRIGUES 100 ANOS (4 - FINAL)
[fonte : ANTARES, n°2, jul-dez 2009, pp 153.-166]
O urbano ululante: imprensa e cidade na tragédia de Nelson Rodrigues
Douglas Ceccagno
Mestre em Letras e Cultura Regional (UCS). Doutorando em Letras (PUC-RS) e bolsista da CAPES. Docente no Departamento de Letras e Filosofia da Universidade de Caxias do Sul – Rio Grande do Sul – Brasil.
D. GUIGUI (numa brusca alegria) – Posso espinafrar?
CAVEIRINHA – Mas lógico! natural! (RODRIGUES, 2004, p. 201)
Porém, ele provavelmente não teria o mesmo interesse, e a entrevista seria conduzida de outra forma, se fosse diferente a opinião do jornal, como e possível ler neste trecho do mesmo dialogo, quando a ex-amante do bicheiro ainda ignora sua morte:
D. GUIGUI – (...) e vocês publicam tudo o que eu disser?
(...)
CAVEIRINHA – Sob minha palavra de honra!
D. GUIGUI – Duvido! Ele [Boca de Ouro] dá dinheiro a jornalista, a políticos! Não é? (RODRIGUES, 2004, p. 201)
O compromisso com a moralidade e, então, subvertido em função de interesses financeiros escusos de alguns profissionais da imprensa. Desse modo, o escândalo provocado pelos crimes que se noticiam no jornal encobre um jogo de interesses que acaba por favorecer os corruptores, os quais pagam a quem detém o poder de decidir o que e noticiado, a fim de que os mesmos publiquem noticias que lhes sejam favoráveis.
No texto rodrigueano, isso explica por que a morte de Boca de Ouro (que, conforme D. Guigui, dava dinheiro a jornalistas) faz com que o jornal passe a representá-lo de forma negativa.
No que tange aos interesses políticos, o segundo ato deixa ver como um acontecimento que não foi devidamente investigado fez com que a sociedade, em seu imaginário, escolhesse culpados para o crime. Depois de Guigui relatar a Caveirinha o assassinato de Leleco por Boca de Ouro, o repórter percebe que se trata de um fato conhecido, mas não apurado, nem pela policia, nem pela imprensa:
CAVEIRINHA – Espera la! (para o fotógrafo) Escuta, esse crime não é aquele?
FOTOGRAFO – Qual?
CAVEIRINHA (para d. Guigui) – E sim! (para o fotógrafo) Oh animal, aquele! Ate você tirou fotografia, tirou, sim! (para d. Guigui). Descobriram um cadaver nas matas da Tijuca e puseram a culpa nos comunistas.
D. GUIGUI – Isso! Os comunistas levaram a fama (RODRIGUES, 2004, p. 216-217)
Desse diálogo, depreende-se que os comunistas, para o imaginário urbano, representam uma ameaça à moralidade. Por isso, eles são considerados responsáveis pelo assassinato de Leleco, mesmo sem uma investigação que o comprove. Nesse aspecto, a imprensa cabe uma parcela de responsabilidade, na medida em que ela é instituída do poder de estabelecer verdades e mentiras no grupo social e, seja por confirmar as suspeitas não apuradas da opinião publica, seja por omitir-se a considerar o assassinato sem solução nas paginas do jornal, estimulou para que se formasse no imaginário da cidade uma imagem negativa dos comunistas, o que acabou favorecendo os interesses políticos de grupos adversários.
Comprometer-se politicamente e poder mudar de opinião facilmente, sem prejuízo de sua credibilidade, fazem de O Sol um jornal com características urbanas, pois a cidade e o local onde as disputas políticas se acirram, e a rapidez com que se conhecem novos fatos exige tomadas de posição urgentes por parte dos meios de comunicação, a fim de que consigam veicular celeremente seu discurso ideológico e angariar a adesão de seus leitores as opiniões que defendem. Uma outra característica atribuída à imprensa na peça é o sensacionalismo. Corroborando o intento de defender a moralidade por meio de uma superexposição do imoral (assim como a imprensa de O beijo no asfalto), na ultima cena de Boca de Ouro, quando e revelada a identidade da assassina do criminoso, tem-se um dialogo entre o repórter Caveirinha e um locutor da radio Continental. Os dois estão ao vivo em um programa radiofônico que, naquela hora, noticia as visitas que o povo faz ao necrotério, a fim de ver o cadáver de Boca de Ouro. Caveirinha, que há pouco chegara de sua entrevista com Guigui, e muito mais informado pelo locutor sobre os detalhes do assassinato que propriamente entrevistado. Na referida cena, o sensacionalismo do locutor é construído a partir de um discurso repleto de uma “pomposa subliteratura”, como indica a rubrica (RODRIGUES, 2004, p. 256). Nesse discurso, ha lugar para vícios de linguagem (“por que não dizer?”), epítetos ao defunto (“o Al Capone, o Dracula de Madureira, o d. Quixote do jogo do bicho”), antíteses (“o homem que matava com uma mao e dava esmola com a outra”) e gradações (“uma fila dupla que se alonga, que serpenteia, que ondula”) (RODRIGUES, 2004, p. 256), tudo visando ao enfeite da fala. Além disso, o locutor emite sua opinião sobre o crime e tenta persuadir Caveirinha a concordar com ela:
É um paradoxo! Um homem existe, um homem vive por causa de uma dentadura de ouro. Matam esse homem e ainda levam, ainda roubam a dentadura da vitima! (quase agressivo) Paradoxo, ‘Caveirinha’! Acho isso um requinte – e um requinte! – pior do que as 29 facadas. (RODRIGUES, 2004, p. 256). Esse discurso, portanto, não tem pretensão de aparentar imparcialidade; ao contrário, sua intenção e conquistar a adesão do publico por meio da opinião explicita, da linguagem pomposa e, ate mesmo, da intimidação do entrevistado em decorrência da crescente agressividade do entrevistador. O objetivo do discurso e o mesmo do jornal O Sol: o reconhecimento público de sua autoridade na enunciação, de maneira que o julgamento emitido pelo locutor sobre os fatos se torne também a opinião dos ouvintes, e ele seja tomado como uma voz de acordo com os interesses populares, embora seja a sua fala que, por influir no imaginário, acabe determinando esses interesses na coletividade.
A partir da análise da presença dos jornais Diário e A Noite, em Vestido de noiva, do repórter Amado Ribeiro, em O beijo no asfalto, e do periódico O Sol e da rádio Continental, em Boca de Ouro, pode-se vislumbrar uma caracterização da imprensa que lhe atribui praticas que incluem, alem da sua função informativa, a propagação de idéias vinculadas a determinados interesses econômicos e políticos. E uma imprensa que investiga os fatos quando os mesmos podem corroborar seu discurso ideológico, mas que se abstém da investigação quando ela ameaça prejudicar seus interesses (como o crime de Boca de Ouro atribuído aos comunistas). Então, sob uma aparente intenção de dar voz as causas publicas, a imprensa expressa sua própria ideologia, de maneira que os leitores passam a ser influenciados por seu discurso. Paradoxalmente, porem, o público crê nos meios de comunicação como representantes de seus interesses. Desse modo, a imprensa tem legitimada sua autoridade de instaurar verdades no grupo social, assim como de conferir distinção social a seus profissionais e a quem faz parte da noticia.
Na cidade que se vislumbra a partir dessa representação, a imprensa cria mitologias a partir dos fatos e opiniões que enuncia, de forma que interfere no
imaginário social e, consequentemente, nas praticas do cotidiano coletivo. Configura-se, assim, um espaço urbano moralmente conservador, porque espantado com as imoralidades noticiadas diariamente. Por sua vez, a sociedade que o constitui, ao prestar credibilidade e legitimação as praticas da imprensa, e também vitima dessas práticas, visto que ela não distingue de maneira eficaz os poderes das instituições, permitindo que os meios de comunicação interfiram nas funções policiais a fim de corroborar seus discursos ideológicos. Assim, a legitimação que a cidade confere ao poder da imprensa, nas tragédias de Nelson Rodrigues, vai muito alem da credibilidade a informação; ao legitimar suas praticas, o grupo social acaba legitimando sua própria dominação ideológica.
Referências
BACZKO, Bronislaw. Imaginacao social. In: Einaudi, n. 5. Lisboa, volume Anthropos- Homem, 1986. p. 296-332.
___. Los imaginarios sociales: memorias y esperanzas colectivas. Buenos Aires: Ediciones Nueva Vision, 1991.
BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Lisboa: Difel; Rio de Janeiro: Bertrand, 1989.
MAFFESOLI, Michel. O imaginario e uma realidade. In: Revista Famecos. n. 15, p. 74- 82. Porto Alegre, agosto/2001.
PESAVENTO, Sandra J. O imaginário da cidade: visoes literarias do urbano – Paris, Rio de Janeiro, Porto Alegre. 2.ed. Porto Alegre: Ed. Universidade/UFRGS, 2002.
RODRIGUES, Nelson. Teatro completo. 2.ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2004.
Nenhum comentário:
Postar um comentário