sexta-feira, 23 de março de 2012

NELSON RODRIGUES 100 ANOS (4 - FINAL)


NELSON RODRIGUES 100 ANOS (4 - FINAL)







[fonte : ANTARES, n°2, jul-dez 2009, pp 153.-166]

O urbano ululante: imprensa e cidade na tragédia de Nelson Rodrigues

Douglas Ceccagno
Mestre em Letras e Cultura Regional (UCS). Doutorando em Letras (PUC-RS) e bolsista da CAPES. Docente no Departamento de Letras e Filosofia da Universidade de Caxias do Sul  Rio Grande do Sul  Brasil.

(FINAL)




Depois disso, Boca de Ouro passa a ser apenas um conjunto de relatos sobre seus crimes, ou seja, a personagem não participa de cena alguma, senão a partir das historias contadas por outras personagens. Nesse contexto, a imprensa assume a função investigadora, procurando as pessoas que presenciaram os crimes ou participaram das historias envolvendo o bandido; porem, os acontecimentos são duplamente filtrados: primeiro, pela memória e pelos interesses das testemunhas e, depois, pelas intenções do jornal. Assim, antes de designar o repórter Caveirinha para entrevistar Guigui, a ex-amante de Boca de Ouro, o secretário telefona para o diretor do periódico, a fim de saber qual e a posição ideológica do veiculo sobre a morte do criminoso, ainda que um repórter tenha lembrado que o jornal elogiara o bicheiro no dia anterior. O diretor, por sua vez, adotando posição oposta, indica ao secretario ate mesmo algumas  expressões a serem usadas para estabelecer um discurso contrario a Boca de Ouro, como e possível observar pela fala do secretario ao telefone: Dr. Pontual, O Sol e contra ou a favor do Boca de Ouro? Não ouvi! Sim, sim, contra, perfeitamente. Contraventor, claro, entendo. Cancro social. Boa noite, Dr. Pontual. (RODRIGUES, 2004, p. 198) Fica subentendido, portanto, que essa imprensa não tem compromisso com a imparcialidade, mas toma o partido que lhe for conveniente em cada situação, podendo mudar de idéia diante de qualquer novo fato que se apresente. Por ter, de antemão, tomado informações com o secretario sobre a posição do jornal quanto à figura de Boca de Ouro, o repórter Caveirinha, ao entrevistar Guigui, permite que ela emita sua opinião sobre o bandido, sabendo que seu ponto de vista será adequado ao discurso que o jornal quer veicular:

D. GUIGUI (numa brusca alegria Posso espinafrar?
CAVEIRINHA  Mas lógico! natural!  (RODRIGUES, 2004, p. 201)

Porém, ele provavelmente não teria o mesmo interesse, e a entrevista seria conduzida de outra forma, se fosse diferente a opinião do jornal, como e possível ler neste trecho do mesmo dialogo, quando a ex-amante do bicheiro ainda ignora sua morte:

D. GUIGUI  (...) e vocês publicam tudo o que eu disser?
(...)
CAVEIRINHA  Sob minha palavra de honra!
D. GUIGUI  Duvido! Ele [Boca de Ouro] dá dinheiro a jornalista, a políticos! Nãé? (RODRIGUES, 2004, p. 201)

O compromisso com a moralidade e, então, subvertido em função de interesses financeiros escusos de alguns profissionais da imprensa. Desse modo, o escândalo provocado pelos crimes que se noticiam no jornal encobre um jogo de interesses que acaba por favorecer os corruptores, os quais pagam a quem detém o poder de decidir o que e noticiado, a fim de que os mesmos publiquem noticias que lhes sejam favoráveis.

No texto rodrigueano, isso explica por que a morte de Boca de Ouro (que, conforme D. Guigui, dava dinheiro a jornalistas) faz com que o jornal passe a representá-lo de forma negativa.

No que tange aos interesses políticos, o segundo ato deixa ver como um acontecimento que não foi devidamente investigado fez com que a sociedade, em seu imaginário, escolhesse culpados para o crime. Depois de Guigui relatar a Caveirinha o assassinato de Leleco por Boca de Ouro, o repórter percebe que se trata de um fato conhecido, mas não apurado, nem pela policia, nem pela imprensa:

CAVEIRINHA  Espera la! (para o fotógrafo) Escuta, esse crime nãé aquele?
FOTOGRAFO  Qual?
CAVEIRINHA (para d. Guigui E sim! (para o fotógrafo) Oh animal, aquele! Ate você tirou fotografia, tirou, sim! (para d. Guigui). Descobriram um cadaver nas matas da Tijuca e puseram a culpa nos comunistas.
D. GUIGUI  Isso! Os comunistas levaram a fama (RODRIGUES, 2004, p. 216-217)

Desse diálogo, depreende-se que os comunistas, para o imaginário urbano, representam uma ameaçà moralidade. Por isso, eles são considerados responsáveis pelo assassinato de Leleco, mesmo sem uma investigação que o comprove. Nesse aspecto, a imprensa cabe uma parcela de responsabilidade, na medida em que ela é instituída do poder de estabelecer verdades e mentiras no grupo social e, seja por confirmar as suspeitas não apuradas da opinião publica, seja por omitir-se a considerar o assassinato sem solução nas paginas do jornal, estimulou para que se formasse no  imaginário da cidade uma imagem negativa dos comunistas, o que acabou favorecendo os interesses políticos de grupos adversários.

Comprometer-se politicamente e poder mudar de opinião facilmente, sem prejuízo de sua credibilidade, fazem de O Sol um jornal com características urbanas, pois a cidade e o local onde as disputas políticas se acirram, e a rapidez com que se conhecem novos fatos exige tomadas de posição urgentes por parte dos meios de comunicação, a fim de que consigam veicular celeremente seu discurso ideológico e angariar a adesão de seus leitores as opiniões que defendem.  Uma  outra  característica atribuída à imprensa na peçé o sensacionalismo. Corroborando o intento de defender a moralidade por meio de uma superexposição do imoral (assim como a imprensa de O beijo no asfalto), na ultima cena de Boca de Ouroquando e revelada a identidade da assassina do criminoso, tem-se um dialogo entre o repórter Caveirinha e um locutor da radio Continental. Os dois estão ao vivo em um programa radiofônico que, naquela hora, noticia as visitas que o povo faz ao necrotério, a fim de ver o cadáver de Boca de Ouro. Caveirinha, que há pouco chegara de sua  entrevista com Guigui, e muito mais informado pelo locutor sobre os detalhes do assassinato que propriamente entrevistado. Na referida cena, o sensacionalismo do locutor é construído a partir de um discurso repleto de uma pomposa subliteratura, como indica a rubrica (RODRIGUES, 2004, p. 256). Nesse discurso, ha lugar para vícios de linguagem (por que não dizer?), epítetos ao defunto (o Al Capone, o Dracula de Madureira, o d. Quixote do jogo do bicho), antíteses (o homem que matava com uma mao e dava esmola com a outra) e gradações (uma fila dupla que se alonga, que serpenteia, que ondula) (RODRIGUES, 2004, p. 256), tudo visando ao enfeite da fala. Além disso, o locutor emite sua opinião sobre o crime e tenta persuadir Caveirinha a concordar com ela:

É um paradoxo! Um homem existe, um homem vive por causa de uma dentadura de ouro. Matam esse homem e ainda levam, ainda roubam a dentadura da vitima! (quase agressivo) Paradoxo, Caveirinha! Acho isso um requinte  e um requinte!  pior do que as 29 facadas. (RODRIGUES, 2004, p. 256). Esse discurso, portanto, não tem pretensão de aparentar imparcialidade; ao contrário, sua intenção e conquistar a adesão do publico por meio da opinião explicita, da linguagem pomposa e, ate mesmo, da intimidação do entrevistado em decorrência da crescente agressividade do entrevistador. O objetivo do discurso e o mesmo do jornal O Sol: o reconhecimento público de sua autoridade na enunciação, de maneira que o julgamento emitido pelo locutor sobre os fatos se torne também a opinião dos ouvintes, e ele seja tomado como uma voz de acordo com os interesses populares, embora seja a sua fala que, por influir no imaginário, acabe determinando esses interesses na coletividade.

A partir da análise da presença dos jornais Diário e A Noite, em Vestido de noiva, do repórter Amado Ribeiro, em O beijo no asfalto, e do periódico O Sol e da rádio Continental, em Boca de Ouro, pode-se vislumbrar uma caracterização da imprensa que lhe atribui praticas que incluem, alem da sua função informativa, a propagação de idéias vinculadas a determinados interesses econômicos e políticos. E uma imprensa que investiga os fatos quando os mesmos podem corroborar seu discurso ideológico, mas que se abstém da investigação quando ela ameaça prejudicar seus interesses (como o crime de Boca de Ouro atribuído aos comunistas). Então, sob uma aparente intenção de dar voz as causas publicas, a imprensa expressa sua própria ideologia, de maneira que os leitores passam a ser influenciados por seu discurso. Paradoxalmente, porem, o público crê nos meios de comunicação como representantes de seus interesses. Desse modo, a imprensa tem legitimada sua autoridade de instaurar verdades no grupo social, assim como de conferir distinção social a seus profissionais e a quem faz parte da noticia.

Na cidade que se vislumbra a partir dessa representação, a imprensa cria mitologias a partir dos fatos e opiniões que enuncia, de forma que interfere no
imaginário social e, consequentemente, nas praticas do cotidiano coletivo. Configura-se, assim, um espaço urbano moralmente conservador, porque espantado com as imoralidades noticiadas diariamente. Por sua vez, a sociedade que o constitui, ao prestar credibilidade e legitimação as praticas da imprensa, e também vitima dessas práticas, visto que ela não distingue de maneira eficaz os poderes das instituições, permitindo que os meios de comunicação interfiram nas funções policiais a fim de corroborar seus discursos ideológicos. Assim, a legitimação que a cidade confere ao poder da imprensa, nas tragédias de Nelson Rodrigues, vai muito alem da credibilidade a informação; ao legitimar suas praticas, o grupo social acaba legitimando sua própria dominação ideológica.

Referências

BACZKO, Bronislaw. Imaginacao social. In: Einaudi, n. 5. Lisboa, volume Anthropos- Homem, 1986. p. 296-332.
___. Los imaginarios sociales: memorias y esperanzas colectivas. Buenos Aires: Ediciones Nueva Vision, 1991.
BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Lisboa: Difel; Rio de Janeiro: Bertrand, 1989.
MAFFESOLI, Michel. O imaginario e uma realidade. In: Revista Famecos. n. 15, p. 74- 82. Porto Alegre, agosto/2001.
PESAVENTO, Sandra J. O imaginário da cidade: visoes literarias do urbano  Paris, Rio de Janeiro, Porto Alegre. 2.ed. Porto Alegre: Ed. Universidade/UFRGS, 2002.
RODRIGUES, Nelson. Teatro completo. 2.ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2004.




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