quinta-feira, 15 de março de 2012

LUIZ GONZAGA 100 ANOS - MATOS /'. 5 - FINAL




AS REPRESENTAÇÕES DO NORDESTE EM “A TRISTE PARTIDA” DE LUIZ GONZAGA

THE REPRESENTATIONS NORTHEAST IN “THE SAD DEPARTURE” OF LUIZ GONZAGA

Marcos Paulo Santa Rosa Matos

((Final)



Essa é a parte da composição que, de fato, nos fala de uma unidade real e concreta, a situação social que gerou a idealização expressa em todos os versos antecedentes: o nordestino, “nordestinado” nas regiões ricas do país, passa a cantar a saudade de sua terra, evadindo-se no tempo e no espaço; contudo, no Nordeste nada lhe era diferente, senão a aridez do clima e a posse de um nome próprio, para além das designações massificantes de “nordestino”, “nortista”, “baiano” ou “paraíba”, como é conhecido “nas bandas do Su”..O discurso de Nordeste, tal como encarnado em Luiz  Gonzaga, é, ao mesmo tempo, o discurso das elites sulistas e o discurso dos retirantes nortistas. E sobre isso, alerta-nos Patativa: [Leal; Farias] – Ele chegou a deturpar a sua obra?


Patativa – Ele deturpou porque eu estava me referindo ao nordestino subordinado lá em São Paulo. Ele disse: viver como escravo no Norte e no Sul. Não é assim. Ele fez isso para agradar aos paulistas (LEAL, 2009) . O Rei do Baião, lançando mão dos amplos holofotes midiáticos que teve a seu favor, fez de sua carreira uma afirmação categórica da identidade nordestina, baseada no discurso da unidade cultural e da resistência obstinada. Não obstante, se por um lado, essa identidade engrandecia seu povo e sua cultura materna, por outro, constituía entrave ideológico à libertação político-cultural, enquanto ruptura histórica com a exploração do nordestino.


Essa identidade é inventada e não expressa a totalidade e a realidade da cultura e das experiências históricas nordestinas. Além de reforçar os estereótipos e o preconceito, redunda numa apologia à fortaleza do nordestino, motivadora da luta pela
sobrevivência, mas inútil à luta pela transformação social. Acerca disso, afirma Albuquerque Jr.: [...] as músicas de Gonzaga também foram responsáveis pela veiculação daqueles temas que iriam servir para reforçar o preconceito contra o
nordestino, como a percepção deste como sendo um matuto, que teria o jumento como irmão, homem atrapalhado com o mundo da cidade, homem simplório, desconectado com as transformações que se passam no mundo, que não sabe se automóvel é homem ou mulher, homem reativo às transformações trazidas pela história, pela modernidade, homem moralista, machista, para quem cabeludo não tinha vez, embora suas músicas também tenham servido para questionar a própria forma como o nordestino era visto e para denunciar as condições de vida que a maioria da população sertaneja vivia (ALBUQUERQUE JR, 2007, p. 120-121).

Nos versos finais, o poema fala-nos de um nordestino deslocado e infeliz, saudoso, eternamente saudoso de sua terra, um sujeito que não assumiu o novo espaço social em que se encontra, que não se abriu à novidade e refugia-se num passado cada vez mais distante. Um nordestino neurótico: vive em função de um possível retorno  mas uma mera utopia que não o ajuda a viver melhor e cada vez mais o oprime. O herói de Luiz Gonzaga participa apenas da Ilíada, desconhece a Odisséia. Na verdade, o heroísmo nordestino é um anti-heroísmo: o que se canta é a grandeza do oprimido não-liberto, de um sujeito ainda preso aos grilhões que sempre o acompanharam, do habitante da caverna que muda de endereço, mas nunca sobe a dura e íngreme inclinação que leva para fora dela. Para não ter o ônus de inverter essa situação, o nordestino naturaliza a seca, a opressão, a desventura. A solução vem sempre do alto: a providência de Deus, as benesses das autoridades civis ... Cabem ao nordestino a esperança e a submissão a esse poder maior. Essa é a descrição da própria vida de Luiz: um nordestino “arretado”, mas cuja denúncia social é arte que agrada aos homens que oprimem o seu povo. Ele mesmo se senta à mesa e agrada aqueles que são a causa de tanto horror e dor incutida aos nordestinos.

Saudade, opressão e passividade são as categorias que definem a situação desse nordestino deslocado, e a forma viril e forte com que ele é retratado é mero subterfúgio discursivo, pois sua virilidade e força são moedas de troca no mercado de trabalho, não  armas de luta social e política. A indústria política do Nordeste consolida a pequenez e a escassez como identificações concretas do ser nordestino nesse novo espaço, embora dissimuladas através de discursos apologéticos.

Assim se explica até essa condição subalterna do ser nordestino: ele é um bicho do mato, que está “acuado” no espaço das grandes cidades, obrigado a viver ali contra sua vontade. Na verdade, essa imagem de inadaptação assumida pelos nordestinos foi produzida pelos seus concorrentes no mercado de trabalho, isto é, os migrantes estrangeiros e as populações locais, conforme nos informa Albuquerque Jr.: O nordestino seria o produto da natureza hostil em que vivia. O nordestino seria um homem telúrico, figurando em seu corpo e mente a paisagem desolada e rude em que tinha de viver. Era quase um homem-cacto, um homem caatinga, por isso mesmo um ser seco, espinhento, agressivo, inóspito, hostil, pouco acolhedor, sofrido, torturado, de natureza imprevisível. Esta visão de que o nordestino é um homem próximo da natureza, também o estigmatizou como sendo um homem incapaz de conviver com o fenômeno urbano (ALBUQUERQUE JR, 2007, p. 115).


Diante dessas evidências, deixando de lado juízos sociológicos acerca do discurso sobre o Nordeste, no tocante ao seu valor positivo ou negativo, podemos afirmar como inegável o fato de que a produção musical de Luiz Gonzaga tem como
temática salutar a defesa do Nordeste e de seu povo, seja por meio de emblemas ou estigmas. Entretanto, apesar de Gonzagão ter sido um dos principais veiculadores de um discurso artificial da nordestinidade, profundamente deletério às identidades concretas de seu povo, não há razão alguma para que seja alvo de censura moral. É preciso reconhecer que O Rei do Baião é vítima da mesma mentalidade que fez os nordestinos assumirem os estereótipos e engrandecerem mais seu passado que lutar por melhores condições de vida no presente; além do mais, Luiz Gonzaga foi um grande defensor de
seu povo e lutou bastante para desenvolver a sua terra natal.


O povo nordestino foi um grande responsável pelo preconceito de que é alvo. No entanto, trata-se de uma responsabilidade histórico-causal, não de uma responsabilidade moral. Destituído do protagonismo histórico e de sua força produtiva, vulnerável à hostilidade da natureza e à violência da sociedade, o nordestino tornou-se refém de seus próprios passos, tal como foi difícil decidir entre morrer de fome no sertão, ou penar nas “bandas do Sul”: assumir o preconceito, e mesmo produzi-lo, é mera imperatividade das condições existenciais. A própria acriticidade do nordestino a que nos reportamos anteriormente não é imputável a ele mesmo, por ser fruto de seu analfabetismo cultural e político. O certo, porém, é que Luiz Gonzaga cantou o Nordeste, proclamou o ser nordestino gestado pelos poderosos e assumido pelos humildes, mas, não obstante suas conotações pejorativas, um ser que dava orgulho aos pequeninos, bem como força e sentido para continuar a luta interminável de seus dias. A imagética do Nordeste é a da necessidade, em que a escassez é a própria vida, e o retirante é o sujeito que, embora eternamente em busca de um lugar para viver, está, paradoxalmente, preso à sua terra natal.

CONCLUSÃO
A triste partida torna-se, portanto, uma bandeira que acena para a direção de um Nordeste eternamente curvado sobre si mesmo e de um nordestino que, apesar dadistância e da impossibilidade do retorno à sua “terra ideal”, encontra nas  cacimbas da infância a água doce que renova as veias da vida. Por isso, Luiz Gonzaga, em seu último show, no dia 6 de junho de 1989, no Teatro Guararapes do Centro de Convenções de Recife, em que recebeu homenagens de vários artistas do país, proferiu as seguintes palavras, antes de finalizá-lo


aBoa Noite minha gente! (...) Minha gente, não preciso dizer que estou enfermo. Venho receber essa Homenagem. Estou feliz, graças a Deus, por ter conseguido chegar aqui. E estou até melhor um pouquinho. Quem sabe, né?


“Quero ser lembrado como o sanfoneiro que amou e cantou muito seu povo, o sertão; que cantou as aves, os animais, os padres, os cangaceiros, os retirantes, os valentes, os covardes, o amor. Este sanfoneiro viveu feliz por ver o seu nome reconhecido por outros poetas, como Gonzaguinha, Gilberto Gil, Caetano Veloso e Alceu Valença. Quero ser lembrado como o sanfoneiro que cantou muito o seu povo, que foi honesto, que criou filhos, que amou a vida, deixando um exemplo de trabalho, de paz e amor.


Quero ser lembrado como o sanfoneiro que amou e cantou muito seu povo, o sertão; que cantou as aves, os animais, os padres, os cangaceiros, os retirantes, os valentes, os covardes, o amor. Gostaria que lembrassem que sou filho de Januário e dona Santana. Gostaria que lembrassem muito de mim; que esse sanfoneiro amou muito seu povo, o Sertão. Decantou as aves, os animais, os padres, os cangaceiros, os retirantes. Decantou os valentes, os covardes e também o amor. (...) Muito obrigado (MOTA, 2007).



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