quarta-feira, 14 de março de 2012

LUIZ GONZAGA 100 ANOS - MATOS /'TRISTE PARTIDA' (4)



AS REPRESENTAÇÕES DO NORDESTE EM “A TRISTE PARTIDA” DE LUIZ GONZAGA

THE REPRESENTATIONS NORTHEAST IN “THE SAD DEPARTURE” OF LUIZ GONZAGA

Marcos Paulo Santa Rosa Matos

(continuação)


Parece que as pessoas preferiam morrer ali, no seu lugar, no seu berço, no seu lar. Uma só coisa justifica a saída: é preciso garantir a vida aos filhos, por isso “a família não sobe no caminhão, mas é jogada” (GUERRA, 2002, p. 4). No embate entre o amor à terra e o amor à família, vence este último, mas aquele permanece como um peso nos ombros dos que partem: para onde forem os nordestinos, levam consigo o Nordeste, ainda que tenha sido, há tempos, deixado para trás. O terceiro elemento completa o quadro: é preciso trabalhar; se não há como trabalhar no Nordeste, então que seja noutro lugar.

Percebe-se como é clara a construção imagética desse lugar abandonado: o que é deixado tem pouco valor econômico, mas é de incomensurável valor para os que vão embora. A poesia agora ocupa-se da vida do nordestino em São Paulo:

Chegaro em São Paulo / Sem cobre quebrado / 
E o pobre acanhado /
Percura um patrão / Meu Deus, meu Deus /
 Só vê cara estranha / De estranha gente / 
Tudo é diferente / Do caro torrão / Ai, ai, ai, ai
Trabaia dois ano, / Três ano e mais ano / 
 E sempre nos prano / De um dia
vortar / Meu Deus, meu Deus /
 Mas nunca ele pode / Só vive devendo / 
Eassim vai sofrendo / É sofrer sem parar / Ai, ai, ai, ai

A diáspora nordestina conhece apenas uma mudança espacial, pois no fundo permanece a mesma situação de opressão e de pobreza: se agora não falta água, continua a escassez de vida e de esperança. A situação parece ainda mais grave: o nordestino continua espoliado, mas em terra estrangeira: “A perda definitiva da terra e da identidade se materializa na impossibilidade de  voltar. Materializa-se também na consciência da perda da liberdade, do domínio sobre o próprio tempo” (GUERRA, 2002, p. 6)

O nordestino sublima sua revolta e transforma-a em saudade de sua terra, ao invés de contestar radicalmente as relações de trabalho que na verdade são as responsáveis por sua infelicidade. Ao fazê-lo, escolhe, inconscientemente, permanecer no atraso cultural e na subserviência social e política. Estrangeiro na terra alheia, esse sujeito enclausura-se na sua própria cultura para encontrar nela coragem para a resistência, mas essa resistência transforma-se quase sempre em labuta e nunca em luta por dignidade, igualdade e justiça.

Essa mudança de espaço só faz  consolidar a imagética do Nordeste. Para compreensão dessa imagética, retomemos o conceito do Nordeste caracterizado por Albuquerque Jr. (2007) nos seguintes eixos:. O discurso da seca e a indústria da seca – após a grande seca de 1877-1879, o Brasil, que só conhecia duas divisões regionais – Norte e Sul – vê emergir o conceito de Nordeste, criado estrategicamente pelas elites políticas da região, falidas em decorrência da crise de seu sistema de produção agrícola, também atingidas pela seca, para captar recursos do governo federal e sanar os prejuízos advindos dela. Na verdade, porém, os projetos governamentais nunca atingiam os verdadeiros fins, pois eram só oportunidades de corrupção: os investimentos eram desviados e distribuídos entre as elites estaduais e locais. Esse discurso da seca, bem como seu modelo de corrupção, acompanhará o Nordeste até os dias atuais, e será, inclusive, motivo de oposição e de preconceito nas regiões Sul e Sudeste, para as quais o nordestino é “aquele que vive às custas dos  impostos pagos pelos contribuintes de outras regiões do país, sanguessuga dos cofres públicos, que retorno nenhum daria ao país” (ALBUQUERQUE JR., 2007, p. 95).

O tradicionalismo – a elite nordestina foi perdendo gradualmente seu poder  sobre a política nacional, e o golpe fatal foi dado com a proclamação da República e a política do Café-com-leite. A cultura dessa região viveu, por isso, um apego ao passado, uma idealização exagerada da tradição e uma resistência ao progresso e ao desenvolvimento, pois  via neles uma ameaça ao poder e uma descaracterização do modo de produção material e cultural ali praticado.

A religiosidade – o  beato e o  romeiro marcam também o imaginário nordestino, emoldurados pelo fanatismo religioso. As figuras messiânicas  – em particular, Antônio Conselheiro  – o devocionismo, a guerra entre os seguidores de Padre Cícero e as tropas de Franco Rabelo (em 1914), a transferência do poder histórico-transformador da esfera humana para a divina, solidificaram a imagem de um Nordeste intrinsecamente relacionado a uma mística extremada e capaz de levar homens e mulheres a uma espécie de insânia em nome de suas crenças, constituídas de um sincretismo entre o catolicismo popular e o animismo e fetichismo africanos e indígenas.

A violência – os arquétipos do  coronel e do  cangaceiro representam, respectivamente, o poder reacionário e a força revolucionária da região. Amplamente divulgadas e exploradas pelo movimento cultural tradicionalista e regionalista da iteratura, do Cinema e das Ciências Sociais, essas figuras passaram a definir a identidade nordestina a partir das relações de violência: aquele que manda estabelece seu poder porque tem uma tropa de capangas e não perdoa desobediência e traição; aquele que contesta o poder o faz pela via da ameaça, do roubo, do banditismo.

Ao homem mediano não resta outra saída senão submeter-se a essas relações de poder, que, nesse contexto arquetípico, identificam-se com o império da violência e da opressão. Sobreviver significa não ser alvo da violência; no entanto, só há duas opções ao nordestino: ser vítima ou vetor do arbítrio da força – seja tornando-se um vassalo dos coronéis e cangaceiros (trocando favores por benevolência e proteção), seja por meio da autotutela. O custo da sobrevivência é o potencial uso da força: embora pacato  – e submisso  – o nordestino se apresenta como alguém que “embainha uma faca na cintura”, um assassino adormecido e na iminência de acordar.

O discurso da seca produz a figura do retirante, assim definida por Albuquerque Jr.: A migração crescente de nordestinos para os grandes centros urbanos do Sul [...] é atribuída e explicada pela ocorrência das secas, marcando todos os migrantes nordestinos com a pecha de retirantes ou flagelados, quando, na verdade, esta vinha apenas agravar as causas mais fundamentais deste processo migratório, que eram a concentração de propriedade da terra da região, as péssimas condições de trabalho oferecidas por uma economia em estágio ainda incipiente de capitalização e as modalidades de trabalho ali prevalecentes, que não privilegiavam o assalariamento nem respeitavam as lei trabalhistas [...]. A maior parte desses migrantes vêm da zona rural, a maioria não tem o mínimo domínio dos códigos que regem a vida numa grande cidade; seus hábitos, costumes, formas de pensar, de andar, de falar, estão marcados por sua vivência do campo e por sua condição social de homens pobres, analfabetos, submetidos a uma dura rotina de trabalho e a muitas privações, o que reforçará esta imagem, construída pelas próprias elites nordestinas, em seus discursos políticos, de que seríamos uma região presa ao passado, uma região que reagia, inclusive, aos padrões modernos da sociedade ocidental (ALBUQUERQUE JR, 2007, p. 107). Inferior e espoliado, a figura do retirante é acompanhada do cabra-macho, uma invenção do próprio migrante para fugir da humilhação insuportável de sua condição e subordinação, que de fato se concretizou em muitos episódios de violência..4 A falácia discursiva da nordestinidade verdade, a nordestinidade, além de ser inventada, é fruto de uma imposição histórica, é um discurso produzido pela elite política e intelectual, assumido pelos nordestinos quando homogeneizados num lugar distante de sua terra natal e até certo ponto ininteligível. O fato de serem  vítimas do preconceito, partilharem as mesmas condições de vida e participarem das mesmas manifestações culturais faz com que os
homens e mulheres, tão heterogêneos em suas regiões de origem, divididos pelas identidades estaduais e por suas rivalidades, se reconheçam como iguais.

A primeira falácia da nordestinidade é o nordestinês, pois não há nenhuma possibilidade de unidade linguística da região senão a idiomática. No entanto, esses homens tão diferentes unem-se, assumem o discurso do Nordeste e recompõem esse
Nordeste no estrangeiro, genericamente chamado de Sul, por intermédio de suas feiras, de suas músicas, festas e danças e de suas celebrações religiosas.

Para marcar a idiossincrasia dessa identidade, a imagem de nordestino é reduzida à figura do sertanejo, síntese de todas as imagens anteriormente mencionadas, mas assim definida no interior do próprio Nordeste: o sertanejo é o excluído, quando em sua terra natal; o nordestino é o excluído quando está fora do Nordeste. Essa unidade forçada é agora a temática das estrofes finais do poema de Patativa do Assaré e de Luiz Gonzaga:

Se arguma notíça / das banda do Norte / 
Tem ele por sorte /
 O gosto de ouvir
/ Meu Deus, meu Deus /
 Lhe bate no peito / 
Saudade de móio / 
E as água nos
óio / Começa a cair / 
Ai, ai, ai, ai
Do mundo afastado / 
Ali vive preso / 
Sofrendo desprezo / 
Devendo ao patrão
/ Meu Deus, meu Deus /
 O tempo rolando / 
Vai dia e vem dia /
 E aquela
famia / Não vorta mais não 
Ai, ai, ai, ai
Distante da terra / 
Tão seca mas boa /
 Exposto à garoa / 
A lama e o paú / 
Meu Deus, meu Deus / 
Faz pena o nortista / 
Tão forte, tão bravo / 
Viver como escravo / 
No Norte e no Su / 
Ai, ai, ai, ai

__________
 (Amanhã,  quinta-feira, quinta e última postagem )

Nenhum comentário:

Postar um comentário