NELSON RODRIGUES 100 ANOS (2)
[fonte : ANTARES, n°2, jul-dez 2009, pp 153.-166]
O urbano ululante: imprensa e cidade na tragédia de Nelson Rodrigues
Douglas Ceccagno
Mestre em Letras e Cultura Regional (UCS). Doutorando em Letras (PUC-RS) e bolsista da CAPES. Docente no Departamento de Letras e Filosofia da Universidade de Caxias do Sul – Rio Grande do Sul – Brasil.
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(continua amanhã, quinta-feira)
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O Diário, no entanto, não e um jornal que aceita cumprir essa função; não interessa a sua proposta a veiculação da insatisfação popular, mas apenas a função informativa. Dir-se-ia que o Diário e um jornal dedicado a causar repercussão através do discurso, e não a publicar a repercussão que a noticia causou. Dessa maneira, ele se torna mediador entre o acontecimento e o público, garantindo sua primazia sobre os leitores no conhecimento dos fatos e estabelecendo sua importância social na divulgação dos mesmos.
Assim, a imprensa representada por Nelson Rodrigues em Vestido de noiva tem legitimado pela população seu poder de instaurar verdades no grupo social, pois, por seu conhecimento prévio (ou pressuposto) dos acontecimentos, e a ela que a sociedade recorre para informar-se. Por outro lado, e paradoxalmente, ao tentar antecipar os fatos e ao deixar que a imparcialidade seja prejudicada por opiniões particulares, a noticia que se lê no jornal não poderia, a priori, ser considerada verdadeira. Sua veracidade só se realiza a partir do momento em que o grupo social toma uma representação criada pela imprensa como uma narrativa fiel dos fatos. Em Vestido de noiva, portanto, a cidade depende do poder de enunciação da imprensa para distinguir verdades e mentiras no grupo social, mesmo que essa distinção seja baseada apenas na crença. Conforme Pesavento, “o imaginário, como sistema de idéias e imagens de representação coletiva, teria a capacidade de criar o real” (2002, p. 8). Através da representação da sociedade no discurso jornalístico, a imprensa cumpre esse papel. Além disso, o jornal confere distinção a quem toma parte nas reportagens, como se observa no dialogo entre Madame Clessi, ja morta, e Alaide, no qual as personagens se referem ao noticiário do assassinato da primeira:
ALAIDE (abstrata) – Fui a Biblioteca ler todos os jornais do tempo.
Li tudo!
CLESSI (transportada) – Botaram cada anuncio sobre o crime!
Houve um repórter que escreveu uma coisa muito bonita! (RODRIGUES, 2004, p. 95)
Observa-se na fala de Clessi um indisfarçável orgulho por ter sido parte da noticia, mesmo como vitima de um crime. Por conseguinte, da mesma forma que a sociedade legitima o poder de enunciação do veiculo jornalístico, por meio da credibilidade que lhe atribui, também promove a distinção daquele que toma parte no discurso veiculado por ele. Logo, o jornal não apenas distingue o que e verdade e o que e especulação, mas também, através da fama adquirida pelos indivíduos nomeados nas noticias, estabelece um critério de diferença social, que não se relaciona com o critério moral que separa as noticias boas das ruins. A fama se institui a margem da moralidade, de maneira que ate a vitima de um crime pode se orgulhar da distinção recebida através do jornal.
No entanto, o critério de moralidade e o que pode suscitar uma outra faceta do
poder da imprensa no meio urbano, o qual se confunde com o poder de policia. Assim, o sensacionalismo em torno de uma possível imoralidade faz com que a investigação jornalística acerca de um acontecimento venha a antecipar-se a investigação policial.
Em O beijo no asfalto, o repórter Amado Ribeiro instiga o Delegado Cunha a efetuar a prisão de Arandir e a explorar o fato no jornal como publicidade em favor dos dois. O caso se da logo no inicio da peca, e o poder de influencia do repórter fica implícito já na primeira ação do delegado, quando o detetive Aruba anuncia a chegada do repórter à delegacia:
ARUBA (sôfrego e exultante) – O Amado Ribeiro esta la embaixo!
(Cunha, que estava sentado, dá um pulo. Faz a volta da mesa.)
CUNHA – La embaixo? (RODRIGUES, 2004, p. 59)
O desconcerto de Cunha e explicado quando o texto revela que Amado – descrito tendo a aparência de um “cafajeste dionisíaco” – havia antes escrito sobre uma violência cometida pelo policial contra uma mulher grávida:
CUNHA (triunfante) – Um tapa. Ela abortou, não sei por que. Azar. Agora o que eu nao admito. Não admito, fica sabendo. Que eu seja esculachado, que receba um esculacho por causa de um moleque, deum patife como voce! Patife!
AMADO (com triunfal descaro) – Eu não me ofendo! (RODRIGUES, 2004, p. 60)
Existem, subentendidos nesse dialogo, alguns pressupostos para o entendimento da relação entre a policia, a imprensa e o papel desempenhado por essas duas instituições, de forma que se pode verificar uma determinada visão do espaço urbano no teatro rodrigueano. A representação que se lê no texto, tanto da policia quanto da imprensa, e negativa, pois os profissionais que nelas atuam descumprem as leis que as regem: o delegado fere a lei ao agredir uma mulher grávida e provocar-lhe o aborto, enquanto o repórter, com seu “triunfal descaro”, mostra-se inescrupuloso ao querer induzir o delegado à corrupção.
O assunto da conversa que se segue e a repressão a um individuo (Arandir) que beijou um desconhecido quando este estava a hora da morte. Isso possibilita a conclusão de que a atuação repressora da policia e legitimada pelo grupo social, pois esta de acordo com a defesa de valores morais que dogmatizam a homossexualidade. E esse fator que permite a presença de Amado na delegacia e a sua tentativa de convencer o delegado a participar de seu plano para promover um escândalo jornalístico; um escândalo que, por sua vez, e condicionado a crença, por parte da sociedade, em uma moralidade que foi transgredida pelo acusado. A policia, a partir dessa crença, e o agente repressor da imoralidade, embora o delegado mesmo comporte-se de forma
imoral. Por outro lado, a imprensa assume novamente as características analisadas em Vestido de noiva, isto e, a instituição da verdade no grupo social e a defesa dos interesses populares; porem, em O beijo no asfalto, o repórter e um promotor de escândalos, que detém o poder do discurso legitimo, mas o utiliza em beneficio de sua carreira. Dessa forma, as verdades que o veiculo jornalístico institui tomam como base a moralidade para contrariá-la, de forma a lucrar com a venda de jornais. Assim, a imprensa tece um discurso sobre a imoralidade, em favor da moral.
No interrogatório a Arandir, o delegado Cunha e o repórter Amado quase se
confundem no papel de agente repressor. Amado ordena que o interrogado sente, reitera as perguntas do delegado e ate se utiliza de falas intimidadoras: “Com medo, rapaz?” (RODRIGUES, 2004, p. 67) A certa altura da conversa, o repórter passa a ser o principal perguntador, enquanto a voz do delegado quase desaparece do texto:
AMADO – Ha quanto tempo voce conhecia o cara?
ARANDIR – Que cara?
AMADO – O morto.
ARANDIR – Não conhecia.
CUNHA – Que piada e essa?
AMADO (para o delegado) – Cunha, um momento. Um instante. O rapaz! Olha pra mim! No local, eu lhe perguntei se você era parente da vitima.
ARANDIR – Não sou.
AMADO – Vamos por partes. Não e parente. Amigo? (RODRIGUES, 2004, p. 68)
O repórter, assim, pode assumir a função inquiridora do delegado, ainda que na presenãa do mesmo. Amado, entao, pede licença ao policial (“Cunha, um momento”) e, em seguida, deixa-o fora do dialogo, de tal maneira que ate sistematiza seu método de obter informações: “Vamos por partes.” Depois disso, o jornalista monopoliza o questionamento ao acusado, enquanto o delegado Cunha se limita a comentar as respostas de Arandir. Desse modo, ao mesmo tempo em que a tragédia de Nelson Rodrigues representa a precedência da imprensa sobre a policia em apurar os fatos de ordem policial, também por em cena um contexto social urbano, em que a informação impressa nos jornais pode preceder o conhecimento dos fatos pelas instituições a quem cabe apurá-los.
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(continua amanhã, quinta-feira)
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