quarta-feira, 21 de março de 2012

NELSON RODRIGUES 100 ANOS (2)

NELSON RODRIGUES 100 ANOS (2)






[fonte : ANTARES, n°2, jul-dez 2009, pp 153.-166]

O urbano ululante: imprensa e cidade na tragédia de Nelson Rodrigues

Douglas Ceccagno
Mestre em Letras e Cultura Regional (UCS). Doutorando em Letras (PUC-RS) e bolsista da CAPES. Docente no Departamento de Letras e Filosofia da Universidade de Caxias do Sul  Rio Grande do Sul  Brasil.


(continuação)



O Diário, no entanto, não e um jornal que aceita cumprir essa função; não interessa a sua proposta a veiculação da insatisfação popular, mas apenas a função informativa. Dir-se-ia que o Diário e um jornal dedicado a causar repercussão através do discurso, e não a publicar a repercussão que a noticia causou. Dessa maneira, ele se torna mediador entre o acontecimento e o público, garantindo sua primazia sobre os leitores no conhecimento dos fatos e estabelecendo sua importância social na divulgação dos mesmos.

Assim, a imprensa representada por Nelson Rodrigues em Vestido de noiva tem legitimado pela população seu poder de instaurar verdades no grupo social, pois, por seu conhecimento prévio (ou pressuposto) dos acontecimentos, e a ela que a sociedade recorre para informar-se. Por outro lado, e paradoxalmente, ao tentar antecipar os fatos e ao deixar que a imparcialidade seja prejudicada por opiniões particulares, a  noticia que se lê no jornal não poderia, a priori, ser considerada verdadeira. Sua veracidade só se realiza a partir do momento em que o grupo social toma uma representação criada pela imprensa como uma narrativa fiel dos fatos. Em Vestido de noiva, portanto, a cidade depende do poder de enunciação da imprensa para distinguir verdades e mentiras no grupo social, mesmo que essa distinção seja baseada apenas na crença. Conforme Pesavento, o imaginário, como sistema de idéias e imagens de representação coletiva, teria a capacidade de criar o real (2002, p. 8). Através da representação da sociedade no discurso jornalístico, a imprensa cumpre esse papel. Além disso, o jornal confere distinção a quem toma parte nas reportagens, como se observa no dialogo entre Madame Clessi, ja morta, e Alaide, no qual as personagens se referem ao noticiário do assassinato da primeira:

ALAIDE (abstrata) Fui a Biblioteca ler todos os jornais do tempo.
Li tudo!
CLESSI (transportada) Botaram cada anuncio sobre o crime!
Houve um repórter que escreveu uma coisa muito bonita! (RODRIGUES, 2004, p. 95)

Observa-se na fala de Clessi um indisfarçável orgulho por ter sido parte da noticia, mesmo como vitima de um crime. Por conseguinte, da mesma forma que a sociedade legitima o poder de enunciação do veiculo jornalístico, por meio da credibilidade que lhe atribui, também promove a distinção daquele que toma parte no discurso veiculado por ele. Logo, o jornal não apenas distingue o que e verdade e o que e especulação, mas também, através da fama adquirida pelos indivíduos nomeados nas noticias, estabelece um critério de diferença social, que não se relaciona com o critério moral que separa as noticias boas das ruins. A fama se institui a margem da moralidade, de maneira que ate a vitima de um crime pode se orgulhar da distinção recebida através do jornal.
No entanto, o critério de moralidade e o que pode suscitar uma outra faceta do
poder da imprensa no meio urbano, o qual se confunde com o poder de policia. Assim, o sensacionalismo em torno de uma possível imoralidade faz com que a investigação jornalística acerca de um acontecimento venha a antecipar-se a investigação policial.

Em O beijo no asfalto, o repórter Amado Ribeiro instiga o Delegado  Cunha a efetuar a prisão de Arandir e a explorar o fato no jornal como publicidade em favor dos dois. O caso se da logo no inicio da peca, e o poder de influencia do repórter fica implícito já na primeira ação do delegado, quando o detetive Aruba anuncia a chegada do repórter à delegacia:

ARUBA (sôfrego e exultante) O Amado Ribeiro esta la embaixo!
(Cunha, que estava sentado, dá um pulo. Faz a volta da mesa.)
CUNHA La embaixo? (RODRIGUES, 2004, p. 59)

O desconcerto de Cunha e explicado quando o texto revela que Amado descrito tendo a aparência de um cafajeste dionisíaco” – havia antes escrito sobre uma violência cometida pelo policial contra uma mulher grávida:

CUNHA (triunfante) Um  tapa. Ela abortou, não sei por que. Azar. Agora o que eu nao admito. Não admito, fica sabendo. Que eu seja esculachado, que receba um esculacho por causa de um moleque, deum patife como voce! Patife!
AMADO (com triunfal descaro) Eu não me ofendo! (RODRIGUES, 2004, p. 60)

Existem, subentendidos nesse dialogo, alguns pressupostos para o entendimento da relação entre a  policia, a imprensa e o papel desempenhado por essas duas instituições, de forma que se pode verificar uma determinada visão do espaço urbano no teatro rodrigueano. A representação que se lê no texto, tanto da policia quanto da  imprensa, e negativa, pois os profissionais que nelas atuam descumprem as leis que as regem: o delegado fere a lei ao agredir uma mulher grávida e provocar-lhe o aborto, enquanto o repórter, com seu triunfal descaro, mostra-se inescrupuloso ao querer induzir o delegado à corrupção.

O assunto da conversa que se segue e a repressão a um individuo (Arandir) que beijou um desconhecido quando este estava a hora da morte. Isso possibilita a conclusão de que a atuação repressora da policia e legitimada pelo grupo social, pois esta de acordo com a defesa de valores morais que dogmatizam a homossexualidade. E esse fator que permite a presença de Amado na delegacia e a sua tentativa de convencer o delegado a participar de seu plano para promover um escândalo jornalístico; um escândalo que, por sua vez, e condicionado a crença, por parte da sociedade, em uma moralidade que foi transgredida pelo acusado. A policia, a partir dessa crença, e o agente repressor da imoralidade, embora o delegado mesmo comporte-se de forma
imoral. Por outro lado, a imprensa assume novamente as características analisadas em Vestido de noiva, isto e, a instituição da verdade no grupo social e a defesa dos interesses populares; porem, em O beijo no asfalto, o repórter e um promotor de escândalos, que detém o poder do discurso legitimo, mas o utiliza em beneficio de sua carreira. Dessa forma, as verdades que o veiculo jornalístico institui tomam como base a moralidade para contrariá-la, de forma a lucrar com a venda de jornais. Assim, a imprensa tece um discurso sobre a imoralidade, em favor da moral.
No interrogatório a Arandir, o delegado Cunha e o repórter Amado quase se
confundem no papel de agente repressor. Amado ordena que o interrogado sente, reitera as perguntas do delegado e ate se utiliza de falas intimidadoras: Com medo, rapaz?(RODRIGUES, 2004, p. 67) A certa altura da conversa, o repórter passa a ser o principal perguntador, enquanto a voz do delegado quase desaparece do texto:

AMADO Ha quanto tempo voce conhecia o cara?
ARANDIR Que cara?
AMADO O morto.
ARANDIR Não conhecia.
CUNHA Que piada e essa?
AMADO (para o delegado) Cunha, um momento. Um instante. O rapaz! Olha pra mim! No local, eu lhe perguntei se você era parente da vitima.
ARANDIR Não sou.
AMADO Vamos por partes. Não e parente. Amigo? (RODRIGUES, 2004, p. 68)

O repórter, assim, pode assumir a função inquiridora do delegado, ainda que na presenãa do mesmo. Amado, entao, pede licença ao policial (Cunha, um momento) e, em seguida, deixa-o fora do dialogo, de tal maneira que ate sistematiza seu método de obter informações: Vamos por partes. Depois disso, o jornalista monopoliza o questionamento ao acusado, enquanto o delegado Cunha se limita a comentar as respostas de Arandir. Desse modo, ao mesmo tempo em que a tragédia de Nelson Rodrigues representa a precedência da imprensa sobre a policia em apurar os fatos de ordem policial, também por em cena um contexto social urbano, em que a informação impressa nos jornais pode preceder o conhecimento dos fatos pelas instituições a quem cabe apurá-los.


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(continua amanhã, quinta-feira)



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