terça-feira, 13 de março de 2012

LUIZ GONZAGA 100 ANOS - MATOS /'TRISTE PARTIDA' (3)




AS REPRESENTAÇÕES DO NORDESTE EM “A TRISTE PARTIDA” DE LUIZ GONZAGA

THE REPRESENTATIONS NORTHEAST IN “THE SAD DEPARTURE” OF LUIZ GONZAGA

Marcos Paulo Santa Rosa Matos

(continuação)





Mas o flagelo do nordestino não encontra na esperança e na fé o termo da agonia:

Sem chuva na terra / Descamba Janêro, / Depois feverêro / E o mesmo verão / Meu Deus, meu Deus / Entonce o nortista / Pensando consigo / Diz: “isso é castigo / não chove mais não” / Ai, ai, ai, ai Apela pra Março / Que é o mês preferido / Do santo querido / Sinhô São José / Meu Deus, meu Deus / Mas nada de chuva / Tá tudo sem jeito / Lhe foge do peito / O resto da fé / Ai, ai, ai, ai

A maior de todas as dores é, sem dúvida, a perda da crença em dias melhores, que rouba ao nordestino o fôlego da luta e o faz entregar-se à fatalidade da vida. Dessa forma, a seca é tida como um castigo (“isso é castigo/ não chove mais não”), que religiosamente representa um sofrimento imposto por uma falta cometida. Novamente a culpa social pela pobreza e pelo sofrimento passa das mãos dos poderes constituídos para a natureza e para o próprio sofredor: pensar a seca como castigo é pensar numa pena imposta por Deus em decorrência de um pecado cometido, como se fosse pecado ser nordestino.

A figura de São José, cuja festa é celebrada no dia 19 de março, é aqui emblemática. Diz-nos Patativa do Assaré:

MATOS, Marcos P. S. Rosa[Leal; Farias] – O que lhe inspirou a compor “A Triste Partida”? Patativa – Foi em 1958. A viagem a São Paulo era a coisa mais penosa do mundo. Não havia estrada naquele tempo. As famílias viajavam em caminhão, numa bancada rude com cobertas rudes e saíam por esse mundo. E vendo o movimento criei na minha imaginação uma família saindo do sertão com destino a São Paulo. Fiz o trabalho com muito cuidado, com muito carinho porque também sou sertanejo, sei das experiências dos caboclos. Sei que quando tudo dá errado, no dia 19 de março, dia da esperança para os sertanejos e não há melhora, eles vão embora com toda a família para São Paulo” (LEAL, 2009).

O “dia de São José” é a grande esperança do povo nordestino, como disse Patativa, pois todos desejam que nesse dia chova para assim iniciarem as plantações: “plantam milho em São José para colher em São João”. Três meses é o período normalmente suficiente para a maturação desse vegetal, usado como prato principal da festa de São João (24 de junho), no mês que marca o início do inverno propriamente dito. O dia de São João é, aliás, o grande natal nordestino. Quando não chove no dia de São José, o nordestino passa a desacreditar que sua safra venha a ser boa e cai em desesperança. Esse momento é de particular importância simbólica para a identidade nordestina: os sinais místicos apontam para uma direção
indesejada, e o nordestino não procura mudar o seu destino, mas se submete, procurando uma nova história para si, ao invés de procurar inverter o destino aparentemente inexorável que o vitimiza.  Zezito Guedes, em seu artigo  O folclore e a seca, registra alguns ditados populares que evidenciam essa crença:

- A seca é um castigo para o povo que não tem mais fé.
- A seca só aparece quando o povo está pecando demais.
- A falta de merecimento traz a seca para o sertão.
- A seca acontece de vez em quando para desconto dos pecados.
- A seca vem para que o povo se lembre de Deus.
- Pela desobediência do povo é que vem a seca para a terra.
- O povo profana a Deus e a seca vem com castigo (apud LINHARES, s/d).

Boa parte dos bens materiais e espirituais do nordestino é destruída pela seca: o conhecimento popular, a fé, os meios de produção, as posses mais íntimas e afetivas etc. Ela “assume o papel de flagelo, de bicho feroz, faminto (que tudo devora) e implacável, expulsando todo o grupo de seu local de origem. Reificada como animal voraz, a seca é representada ora como fenômeno natural, ora social” (GUERRA, 2002, p. 4). seca, ao invés de ser fundamento da identidade nordestina – embora seja esse seu significado discursivo – representa – em sua concretude fática – a morte da história  e da cultura do nordestino: a partir do momento em que a resistência humana sucumbe à hostilidade das condições naturais, torna-se vítima do oportunismo do poder social (“Pois logo aparece/ Feliz fazendêro/ Por pôco dinhêro/ Lhe compra o que tem”). Perde tudo, trocando a vida e a terra pelo mito da “cidade grande”, onde poderiam ser encontradas melhores condições de vida: Não havendo solução nos planos anteriores, o camponês é obrigado a uma estratégia forçada, vendendo seus meios de produção. A estratégia é de sobrevivência modificando a forma de ganhar a vida, ou a morte... São Paulo é, no  poema, representação da cidade grande, caudatária dos trabalhadores deserdados de seus fazeres nos seus locais de origem. A passagem do trabalho autônomo para trabalho assalariado é, aqui, bem representada pela criação do trabalhador que não terá senão a sua força de trabalho para vender. São Paulo, a cidade, é trocada pelo rural, pelo jegue, cavalo, galo... Na
impossibilidade de resolver o problema da vida no lugar, a saída é tomar outro caminho, outro rumo, outra trilha (tria) (GUERRA, 2002, p. 4).

A decisão de partir para São Paulo é um divisor de águas: o nordestino torna-se um estrangeiro e, embora permaneça profundamente ligado às suas raízes, são a distância e a saudade – a ausência, portanto – que o identificam com sua terra. 

Além das perdas materiais e espirituais, o viandante nordestino também perde o próprio Nordeste: desterritorializa-se, desloca-se e fica sem um lugar no espaço, no tempo, na história e na cultura; será sempre um transplante, um enxerto no lugar alheio em que sobrevive, mas eternamente identificado com a figura romântica do torrão materno.

3.3 O Nordeste viandante e oprimido

O momento em que o nordestino resolve migrar para São Paulo é o clímax de todo o enredo e dá nome à canção: “O dia da partida, triste dia, [...] Triste  partida” (GUERRA, 2002, p. 4). Ele dá início a um longo e detalhado relato dos acontecimentos (ocupando 10 das 19 estrofes que compõem a obra) até a chegada à megalópole: Agora pensando / Ele segue ôtra tria / Chamando a famia / Começa a dizer / Meu Deus, meu Deus / Eu vendo meu burro / Meu jegue e o cavalo / Nóis vamo a São Palo / Vivê ou morrê / Ai, ai, ai, ai

MATOS, Marcos P. S. RosaNóis vamo a São Palo / Que a coisa tá feia / Por terras aléia / Nós vamo vagar / Meu Deus, meu Deus / Se o nosso destino / Não for tão mesquinho / Ai pro mesmo cantinho / Nós torna a voltar / Ai, ai, ai, ai [...] Em um caminhão / Ele joga a famia / Chegou o triste dia / Já vai viajá / Meu Deus, meu Deus / A seca terrívi / Que tudo devora / Ai, lhe bota pra fora / Da terra natá / Ai, ai, ai, ai [...]

E assim vão dexando / Com choro e gemido / Do berço querido / Céu lindo e
azu / Meu Deus, meu Deus / O pai, pesaroso / Nos fio pensando / E o carro
rodando / Na estrada do Su / Ai, ai, ai, ai

É nesse momento que a canção assume um tom ao mesmo tempo lírico e épico e  se desenvolve numa conjunção de três elementos: terra, família e trabalho. Perceba-se como a noção de terra enquanto “lugar” confunde-se com o conceito de “casa”, donde advém a idéia de um Nordeste como casa, lugar familiar, espaço primordial de existência e de identidade, que não somente dá nome aos nordestinos, mas, sobretudo, representa o carinho familiar e vicinal, o Nordeste como um espaço de ser e de sentir.

Continua a identificação do nordestino com a natureza, que deixa de ser uma natureza distante e terrível – aquela que lhe fornece a certeza do destino em termos de seca e fartura – para tornar-se uma natureza doméstica: o galo, a flor, o gato, o cachorro

... Tudo ganha colorido e brilho, afetivamente marcado no imaginário, que irá constituir a memória comum do Nordeste. Acerca disso, acrescenta Guerra: O que representará a perda de uma planta querida, e uma boneca para uma menina de interior? A cultura camponesa não é – ou não era – a do consumo a do descarte, mas a da manutenção dos bens, do trato, da conservação. A representação é a do afeto mantido pelos objetos que significam as construções da cultura familiar, doméstica, estática ou de mobilidade espacial reduzida (GUERRA, 2002, p. 5).

Embora a terra seca e árida seja incapaz de fornecer aos seus habitantes o sustento, ela é vista como ideal e deixá-la é algo que surge por meio de forças externas: a saída da terra é uma verdadeira tragédia, pois, se morrer nela é algo terrível, abandoná-la parece ainda mais recheado de horror, mas é também imperativo.

A poesia marca esse momento como um corte de cordão umbilical: as coisas deixadas para trás, que ocupavam um lugar “de direito” na vida daquelas pessoas  – o que evidencia a naturalização que o nordestino faz de sua vida social e cultural,
impedindo-o inclusive de um olhar crítico mais apurado  – deixam um vazio que na verdade é ocupado pela idealização do ausente e pela saudade que faz sofrer mais que a fome.

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(continua amanhã, quarta-feira)

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