sábado, 10 de março de 2012

LUIZ GONZAGA 100 ANOS - MATOS /'TRISTE PARTIDA' (2)




AS REPRESENTAÇÕES DO NORDESTE EM “A TRISTE PARTIDA” DE LUIZ GONZAGA

THE REPRESENTATIONS NORTHEAST IN “THE SAD DEPARTURE” OF LUIZ GONZAGA

Marcos Paulo Santa Rosa Matos

(continuação)



Comecei como hoje, terminei como amanhã, viu?” (ASSARÉ, 2004, p. 48) Para respondermos à nossa questão, lançaremos mão da estilística e do estruturalismo como métodos de análise da obra em foco. Nosso trabalho deter-se-á nas imagens que compõem a produção, numa tentativa de, lendo as entrelinhas do texto, enxergar o olhar atento e a voz firme de um cantador que fez de seu próprio corpo um estandarte do Nordeste e de suas canções um parlatório para seu povo. Um cantador que, partindo de um Nordeste como condição inexorável de existência, transformou-o num grande projeto de identificação, ao mesmo tempo discurso de esperança e edito de luta.

Toda a produção de Luiz Gonzaga se baseia na escolha de um espaço narrativo e poético primordial, que permanece inalterado em sua obra: uma região do Brasil assolada por uma série de hostilidades naturais e desigualdades  sociais, políticas e  econômicas, e que encontra na religiosidade um reduto de fé e de esperança na possibilidade de transformar a história. Quando temos acesso às canções de Luiz Gonzaga, o primeiro aspecto que nos chama a atenção é a adoção da “linguagem  do Nordeste” como a língua por meio da qual ele fala ao Brasil e ao mundo inteiro: ele não toma para si um português estrangeiro, para poder ser aceito e bem entendido; ao invés disso, submete seu interlocutor a uma língua muitas vezes estereotipada e desvalorizada, por representar a decadência e o subdesenvolvimento do povo que a produz e sustenta. Diz-nos Pimentel (2007): Oiei? Quá? Vortá? Prantação? Muita gente estranha, mas esses versos foram escritos e publicados assim mesmo, intencionalmente. Reproduzem a linguagem popular do homem da roça, mostram a diversidade lingüística da
região (PIMENTEL, 2007, p. 22)

Isso significa que Luiz Gonzaga lança mão de variáveis populares, tendo em mente o juízo social do prestígio linguístico e da estigmatização. Quando isso ocorre, segundo Tarallo (2004, pp. 50-54), o falante opta por usar a variação por ele mais valorizada, que  – em última análise  – refere-se à valorização do lugar social dessa valorização.

O uso motivado da variação linguística é observado, também, na obra de Patativa do Assaré, conforme afirma Brito(2009): A poesia de Patativa é híbrida, porque, entre outros fatores, o poeta interage com as linguagens ditas popular e erudita. Como defende Carvalho, “a emissão simultânea da fala cabocla e a observância da norma culta, em Patativa, não significa um antagonismo, mas registros adequados a diferentes enunciações e a um mesmo projeto poético.”

 [...] [Patativa:]  – [...] Quase todo o meu poema matuto é apresentado por um analfabeto, num é? Aquilo ali eu quero mostrar ao povo, quero mostrar ao leitor que não é a filosofia não é uma coisa que ele vai aprender lá no colégio, na escola ou coisa não! É uma coisa natural que o camarada recebe como uma herança da natureza. Saber filosofar, saber dar certeza e isso e aquilo outro, viu? E é por isso que eu apresento sempre o caboclo. [...] Faço do jeito que eu quero. Quando eu quero fazer clássico, eu faço [...] Olhe! Aquele, como eu fiz aquele, bem-feito, todo em decassílabos, porque foi um pedido de um latinista: “O purgatório, o inferno e o paraíso”. Aquele é em linguagem erudita.

Constata-se que o poeta parece ter consciência das dicotomias que o mundo dos estudiosos faz a respeito dos saberes. Ao mesmo tempo que afirma MATOS, Marcos P. S. Rosacompor do jeito que quer, deixa entrever que leva em conta cada público. (BRITO, 2009, pp. 183-184 – grifo do autor) Sob essa ótica, no uso das variantes típicas dos falares nordestinos há uma intencionalidade: ao valorizarem a linguagem nordestina, Luiz Gonzaga e Patativa do Assaré valorizam o “ser nordestino” em sua totalidade. Conforme nos diz Bakhtin, o signo linguístico, as palavras, possuem um valor de relação social, uma vez que elas interagem com o contexto em que estão inseridas, ou seja, há um entonação pragmática e ideológica no uso das palavras (SANTOS, 2009). Esse “ser nordestino”, entenda-se, é uma construção histórica que gerou no consciente coletivo nacional um bloco monolítico e homogêneo chamado “Nordeste”, baseado nas categorias da  seca, do  retirante, do  cangaço e do  beato. Ou seja, o Nordeste é pensado em termos de flagelo, revolta e religiosidade. A invenção do
Nordeste, segundo Albuquerque Jr. (2007), se deve às elites políticas dessa região, que se valeram do discurso da seca para atrair investimentos federais, a partir da falência da economia açucareira no final do século XIX.

Um segundo grupo criador dessa identidade nordestina é constituído pelos emigrantes dessa região, que se estabeleceram no Sul e Sudeste ao longo do século XX, muitas vezes privados de seus direitos mais fundamentais, homogeneizados em sua diversidade, em razão do olhar de estranheza e da força da opressão, e encarnam em sua cultura e em seu modo de ser o mito do “nordestino cabra-da-peste”, valente, honrado, destemido e religioso, mas também agregado, vassalo, submisso e acrítico em relação à sua própria condição. É o Nordeste emoldurado pelo Mito da Necessidade (ALBUQUERQUE JR., 2007, p. 123). O próprio Luiz Gonzaga experimentou a condição de imigrante nordestino no Rio de Janeiro e foi justamente por seu estilo nordestino de ser, caracterizar-se e comportar-se que passou a ser conhecido, contratado e admirado como músico, conquistando fama nacional. Albuquerque Jr. (2007, p. 120) afirma que Gonzagão surgiu, na Rádio Nacional, como o representante da identidade musical nordestina, inventando uma roupa que representaria essa nordestinidade, indumentária normalmente usada pelo vaqueiro  e um chapéu de cangaceiro, além de uma sandália de couro conhecida como sandália de rabicho. Tendo sofrido preconceito no início de sua carreira por ser nordestino, ele, contudo, de sua origem não se envergonhara; ao contrário, justamente por seu sotaque e sua forma anasalada de fala, pelas próprias roupas que escolhera, seu talento, a qualidade da música que interpretava e o acerto de muitas estratégias adotadas para a promoção, como fazer  shows pelo interior da região patrocinado pelas empresas Colírios Moura Brasil ou a Shell, por exemplo, tornou-se um ídolo daquelas populações nordestinas que viviam nas grandes cidades do Sul e que sentiam enorme saudade dos lugares de onde haviam saído, tema  privilegiado de suas canções, nas quais o sertão aparecia idealizado e o desejo de voltar era
permanentemente repetido.

3.1 O Nordeste linguístico

Nessa construção ideológica do Nordeste, estão presentes o conceito e a ideia de “nordestinês”, um sotaque muito explorado pelas novelas e programas de televisão, caracterizado como o falar nordestino, mas que não passa de uma virtualidade, pois o Nordeste é não só uma região extensa e diversa, como também um espaço de multiculturalismo e multilinguismo, onde a homogeneidade é tão insustentável quanto a homogeneidade brasileira. Em outras palavras, a revalorização do Nordeste começa pelo aspecto em que o nordestino recebe o primeiro olhar de desaprovação e de riso, isto é, na maneira como ele se expressa para expressar seu mundo. Sobre isso, diz-nos Bagno (2007):

É um verdadeiro acinte aos direitos humanos, por exemplo, o modo como a fala nordestina é retratada nas novelas de televisão, principalmente da Rede Globo. Todo personagem de origem nordestina é, sem exceção, um tipo grotesco, rústico, atrasado, criado para provocar o riso, o escárnio e o deboche dos demais personagens e do espectador. No plano lingüístico, atores não nordestinos expressam-se num arremedo de língua que não é falada em lugar nenhum do Brasil, muito menos no Nordeste. Costumo dizer que aquela deve ser a língua do Nordeste de Marte! Mas nós sabemos muito bem que essa atitude representa uma forma de marginalização e exclusão (BAGNO, 2007, pp. 43-44).

O preconceito contra  o nordestino parte da linguagem, porque “todo signo é ideológico, e portanto também o signo lingüístico vê-se marcado pelo horizonte social de uma época e de um grupo social determinados” (BAKHTIN, 2006, p. 43). Ou seja, ao marcar o nordestino com o ferro  da exclusão, impõe-se primeiro essa segregação sobre sua forma de expressar-se e de comunicar-se com o outro, pois, descaracterizando-se o discurso, desconsidera-se o sujeito que o profere.

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(Continua amanhã, terça-feira)

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