NELSON RODRIGUES 100 ANOS (3)
[fonte : ANTARES, n°2, jul-dez 2009, pp 153.-166]
O urbano ululante: imprensa e cidade na tragédia de Nelson Rodrigues
Douglas Ceccagno
Mestre em Letras e Cultura Regional (UCS). Doutorando em Letras (PUC-RS) e bolsista da CAPES. Docente no Departamento de Letras e Filosofia da Universidade de Caxias do Sul – Rio Grande do Sul – Brasil.
(continuação)
A partir disso, pode-se afirmar que o jornal funciona nessa coletividade como um criador de mitos, aos quais a sociedade confere sua crença, de modo que, com o passar do tempo, eles venham a ser mais importantes que os fatos que lhes deram origem. Conforme Baczko, “en las mentalidades, la mitologia nacida de um acontecimiento a menudo prevalece sobre el acontecimiento mismo.” (1991, p. 12)
Através do mito criado pela imprensa em torno da historia familiar de Arandir e dá importância conferida ao acontecimento, reforça-se o código moral, ao mesmo tempo em que se provoca o escândalo em torno da historia e, consequentemente, corrobora-se a credibilidade em favor do veiculo jornalístico.
Por sua vez, a cidade que se vislumbra nessa cena e um agrupamento social onde os poderes se confundem e, com eles, sua legitimação. A partir do momento em que Amado Ribeiro finge ser um policial, ele assume as funções e os poderes da policia, de maneira que passa a ser respeitado como tal. A ele e permitido o direito de interromper um enterro e de ameaçar uma testemunha. A partir desse ponto de vista, o urbano passa a ser a instância em que a sociedade nâo distribui de maneira eficaz os poderes, de forma que o próprio grupo social, personificado na cena pela viúva, torna-se ameaçado pela confusão de papeis que ele mesmo legitima.
Em O beijo no asfalto, observa-se ainda a euforia do repórter pela credibilidade de seu discurso, pois isso caracteriza o poder da imprensa na cidade e, ao mesmo tempo, a autoridade do jornalista. Na cena em que acontece o encontro entre Amado Ribeiro e Aprigio, o sogro de Arandir, o jornalista confessa a invenção do discurso que e veiculado pelo jornal, e tomado como verdadeiro pelos leitores:
Botei que teu genro esbarrou no rapaz. (triunfante) Mas não esbarrou! Aí é que está. Não esbarrou. (lento e taxativo) Teu genro empurrou o rapaz, o amante, debaixo do lotação. Assassinato. Ou não é? (maravilhado) Aprigio, a pederastia faz vender jornal pra burro! Tiramos, hoje, esta rodando, trezentos mil exemplares! Crime, batata! (RODRIGUES, 2004, p. 96)
E, quando Aprigio pergunta se o repórter tem certeza do que afirma, o mesmo demonstra total desinteresse pela veracidade do relato jornalístico, importando-se apenas com a vendagem do jornal: “Sei lá! Certeza, propriamente. A única coisa que sei é que estou vendendo jornal como água. Pra chuchu.” (RODRIGUES, 2004, p. 97)
A vendagem do jornal não importa a Amado como uma garantia financeira. Ele até refuta, de antemão, um possível suborno, declarando que somente se venderia em troca de uma mulher (já fazendo alusão as belezas de Selminha, a filha de Aprigio). Porem, no que concerne ao sucesso do jornal junto ao publico, o interesse do jornalista e a instalação do discurso verdadeiro, a fim de ser merecedor de todo respeito e poder advindos dessa autoridade: “Mas parei a cidade! Só se fala do ‘Beijo no asfalto’! Eles têm que respeitar! Tem que respeitar! Eu não dou bola! Não dou pelota!” (RODRIGUES, 2004, p. 97) Eles, na falam do repórter, e um sujeito indeterminado, posto que o pronome compreende um numero maior de pessoas que o dos leitores do jornal.
Quando a noticia começa a circular, ela se torna parte do senso comum, fazendo com que a sociedade em geral deposite confiança na veracidade do discurso jornalístico e, consequentemente, confira ao repórter a distinção social que ele almeja.
A crítica à atuação da imprensa, nessa cena, não está só nas falas das personagens, mas também na descrição de Amado Ribeiro, que aparece sem paletó, com a camisa para fora das calcas, uma garrafa de cerveja na mão e, conforme a rubrica do autor, “na melhor das hipóteses, semibêbado” (RODRIGUES, 2004, p. 95). Durante o diálogo, o repórter muda muitas vezes de humor, sendo que, numa única fala, há a indicação de cinco emoções diferentes: exultante e feroz; rindo, feliz; triunfante; lento e taxativo; maravilhado (RODRIGUES, 2004, p. 96) Essa imagem miserável do repórter, com sua inquietude e sua embriaguez, e uma forma de representar como o papel que a imprensa assume no meio urbano pode descaracterizar a humanidade do individuo.
Enquanto o profissional, por um lado, abre mão dos valores humanitários em nome da distinção que sua atuação jornalística pode lhe conferir, por outro lado, a sociedade que o legitima e ameaçada por sua autoridade, que tem o poder de tornar a difamação uma verdade indiscutível no grupo social. Já a cidade, por sua vez, toma a forma de uma construção imaginaria que, pelos discursos veiculados pelos meios de comunicação, torna-se real apenas através da aceitação das verdades que a imprensa institui. Porem, e a partir desses discursos que a urbanidade constrói seus sentimentos, pensamentos e anseios, pois determina como e quem se deve julgar e condenar, quem e necessario temer e quem e preciso respeitar.
Como criadora de mitos, a imprensa pode ainda ser vista como o veiculo pelo qual um individuo se torna símbolo de algo presente no imaginário coletivo. Pode-se observar esse aspecto da representação na tragédia Boca de Ouro, onde a personagem titulo é socialmente reconhecida, não por sua individualidade, mas pelo mito criado pelos meios de comunicação. O limite entre o individuo Boca de Ouro e o mito criado a partir dele dá-se, simbolicamente, quando o secretario do jornal O Sol recebe, por telefone, a noticia da morte do criminoso.
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(amanhã, sexta-feira, última postagem da série)
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