sexta-feira, 14 de outubro de 2011

FCCV- VIOLÊNCIA: QUANDO A MIDIA PROCURA DIZER MAIS

 

FORUM COMUNITÁRIO

 DE COMBATE

À VIOLÊNCIA

Salvador - Bahia - Brasil


Leitura de fatos violentos

publicados na mídia

Ano 11, nº 38, 10/10/11 

 

VIOLÊNCIA: QUANDO A MÍDIA PROCURA DIZER MAIS


O jornal A Tarde publicou, em 3 de outubro de 2011, uma reportagem sobre roubo de carros em Salvador. Por se tratar de assunto corriqueiro, o tema já não dá lugar à produção de amplas matérias jornalísticas a cada caso e, assim, a tendência é noticiar “por baixo”, à guisa de exemplos  que ilustram uma prática verificada diariamente. Na edição referida, entretanto, o assunto é uma das manchetes de capa e ocupa duas páginas no primeiro caderno do noticioso.


A manchete destacada e o amplo espaço concedido à questão sugerem novidade que pode ser traduzida em algo como um esforço midiático que visa a atualização do problema. De fato, a jornalista Helga Cirino traz elementos novos para se interpretar o crescimento de casos registrados em Salvador. E entre os aspectos evidenciados está uma específica finalidade do crime que tem sido incrementada nos dias atuais. Trata-se do roubo de carro como meio capaz de dar suporte à atividade criminosa fim. 
Podemos imaginar um tipo de crime de natureza coadjuvante relativamente à ilegalidade principal. Em tal circunstância, o carro em si mesmo não é o alvo do crime, ao contrário, ele se reduz à sua condição original de meio de transporte, não sendo apreciado como mercadoria a ser incluída no comércio dos produtos roubados, passando a ser equipamento necessário à produção de outros delitos. O sentido de sua subtração, portanto, deve ser vinculado à necessidade de oferecimento de uma infraestrutura e de uma logística imprescindível ao empreendimento criminoso principal. Tem-se, assim um “roubo-meio” acobertado pelos desígnios finalísticos da atividade criminosa.
Esta modalidade de transgressão foi explicada ao jornal pelo delegado Augusto Eustáquio, titular da Delegacia de Repressão a Furtos e Roubos de Veículos (DRFV): “Furtos e roubos de veículos viraram crime meio. Temos toda uma outra gama de crimes que caem também na estatística de roubo de veículo. Não podemos esquecer que o ladrão que rouba banco e pratica homicídio, tráfico de drogas não vai a pé”.
Com mais essa motivação para o roubo de veículos, crescem os registros, incrementando-se os índices relativos a tais ocorrências naquela delegacia. Passa a ser necessário, portanto, um esclarecimento dado por uma fonte institucional com o fito de deixar patente a nova motivação criminosa e seu impacto sobre o número de casos contabilizados. Provavelmente, a DRFV tenha sido concebida em um tempo em que os roubos ou furtos de carros eram atividades fim no mundo do crime. Agora, conforme as declarações do delegado titular, pode-se dizer que houve uma ampliação no que se refere aos motivos destas práticas delituosas, dando-se margem a uma subdivisão interna à rubrica “furto e roubo” que pode ser representada por dois tipos de modalidade: a) o roubo do carro em si; b) a supressão do veículo para dar suporte a outra atividade criminosa. Esse segundo formato, entretanto, não aparece nos índices, ou seja, não há um tratamento distinto dos dados para fins de cotejamento.
À parte a dificuldade que a vítima tem de distinguir em qual dos modos seu bem suprimido se enquadra, parece plausível supor que em ambas as situações o objeto é ilicitamente apropriado por outrem, e, portanto, é furtado ou roubado. Assim, superando-se a questão de modo singelo afirmando-se que roubo é roubo e que furto é furto, chega-se a outra inquietação que concerne à ampliação das modalidades de motivos para atos criminosos. E o aspecto mais inquietante diz respeito ao estabelecimento de práticas criminosas que exigem várias formas de ilicitudes que combinadas potencializam feitos cada vez mais complexos e impactantes. Por esta vertente é possível observar que há iniciativas criminosas que contemplam tipos diferentes de delitos nos moldes de organizações que exploram vários ramos de determinado mercado.
A questão identificada pelo titular da DRFV parece ser um traço que tangencia o mercado do crime em sua expressão mais atual.  Por exemplo, para que tenham garantia e sucesso, as organizações criminosas adotam a corrupção como crime-meio, comprando silêncios, facilidades e proteção; quando ameaçadas por setores incorruptíveis, elas exibem a violência em todas as suas gradações. Na defesa da continuidade de suas práticas enfrentam hostilidades contra as quais adotam parcerias sofisticadas, a exemplo da transmutação da substância criminosa em objeto da ordem estabelecida, a exemplo da lavagem de dinheiro que pode realçar o PIB de um país.
Tem crescido um tipo de crime com “vocação heterogênea” cujos formatos são dados pelas potencialidades apresentadas nos contextos de ação. Os gestores dos negócios criminosos precisam ter “faro” para identificar em dada circunstância quais os delitos mais compatíveis a uma exploração prioritária e, em seguida, estudar aqueles crimes coadjuvantes que devem estar reservados como “cartas na manga” para dar suporte ao objetivo principal. 
A configuração que se projeta desafia a idéia do tratamento dispensado a cada crime de maneira isolada e específica para fins de controle público. Mesmo nos casos dos delitos praticados por pessoas que não têm um forte pertencimento às esferas mais sofisticadas e organizadas da área criminosa, cabe imaginar que este modelo de gestão tem sido fonte de aprendizado por parte dos delinquentes menos poderosos. E esta espécie de didática tem sido possível dentro do formato da “educação à distância”, promovido por alguns segmentos da mídia que dão às complexas tramas delituosas uma espécie de qualidade espetacular.


Cabe refletir, então, sobre a necessidade de se alimentar no espírito jornalístico a busca por questionamentos que contribuam para a compreensão do problema da violência em nosso contexto, a exemplo da reportagem aqui referida.

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