FORUM COMUNITÁRIODE COMBATEÀ VIOLÊNCIASalvador - Bahia - BrasilLeitura de fatos violentospublicados na mídiaAno 11, nº 37, 03/10/11 | ||
MADRI (Espanha) e PINDOBAÇU (Bahia - Brasil): duas faces dos tempos do ketchup |
Analisando Movimento 15 de maio (15-M), o professor Victor Sampedro, catedrático da Universidade espanhola Rey Juan Carlos, em Madri, chama a atenção para o fato de que 15-M “busca uma transformação profunda da cultura e das instituições políticas, porém não encontra reflexo na mídia”.
Em seu artigo intitulado “15-M e jornalistas. Um pacto para a ruptura e a autonomia”, analisa, entre outros elementos, a maneira conservadora com que a mídia tem representado os acontecimentos que estão envolvendo de modo intenso e extenso consideráveis frações da população espanhola que se mobilizam em torno de reivindicações que, em última instância, colocam em xeque o modelo de representação política e de gestão pública atuais. As práticas da democracia representativa estão sendo questionadas pelos cidadãos sem as intermediações políticas e midiáticas habituais.
Entretanto, a mídia tem representado estes acontecimentos a partir de seus modelos rotineiros de construção da realidade, mantendo, portanto, os créditos em relação às instituições que compõem a ordem estabelecida e, consequentemente, evitando o reconhecimento de elementos novos e de ruptura característicos do 15-M. As fontes procuradas pelos meios de comunicação de massa espanhóis para tratar do assunto estão, predominantemente, alocadas em áreas que representam posições externas e até antagônicas ao movimento que, por sua vez, tem adotado estratégias para que a divulgação de suas imagens se torne inevitável. A ocupação de cenários urbanos com expressivo significado simbólico, tal como a Praça do Sol em Madri, tirou a estabilidade de uma forma de poder vigente que se caracteriza pela ausência física dos cidadãos na construção da imagem de quem decide sobre a vida de todos. Ocupando a praça em grande volume e por longa permanência, os indignados passam sem os favores midiáticos que resultariam em consagração da própria ordem, porém, não ficam despercebidos. Eis um problema que a tão aclamada era da imagem não tem como contornar: a visão. Cronicamente marginalizados pelas agendas midiáticas e políticas, os indignados recorrem ao “truque” da presença em praça pública. Tem-se, então, em pleno tempo de consagração da imagem virtual, um retorno ao plano real em sua confusão, profusão e, sobretudo, descontrole.
Enquanto se debate o papel da mídia em momentos cruciais como os atualmente vividos pelos espanhóis, muitos outros espaços aguardam a chegada dos primeiros raios midiáticos. E é isto que sucedeu, recentemente, à cidade de Pindobaçu, no estado da Bahia. Ali foi produzido um feito criminoso cuja trama “sensibilizou” as câmeras do planeta, ganhando, conforme anuncia o jornal Correio da Bahia de 24 de setembro, o lugar de notícia mais lida no mundo, às 20h30 do dia 23, superando informações sobre a Assembleia Geral da ONU.
O acontecimento internacional consiste na história de um crime de morte encomendado por uma mulher que pagou mil reais pelo assassinato da amante de seu marido. O matador, conhecendo a futura vítima, informou a ela sobre a sua missão e os dois simularam a tragédia. Ele “a matou” para efeitos fotográficos que funcionaram como prova para o recebimento do pagamento. A produção da morte foi feita à base de ketchup que foi espalhado sobre o tronco da “vítima”, devidamente amordaçada e com uma faca espetada na altura da axila direita. Dias depois de realizada a compra do préstimo criminoso, a mandante do crime viu a sua “vítima” em uma rua da cidade. Decepcionada com a falta de retidão do profissional contratado, a mentora e mandante do crime prestou queixa na delegacia acusando o falso matador de tê-la roubado. Ouvido pelo delegado, ele esclareceu toda a história que incrimina seus três atores. E, com este feito, Pindobaçu estreou na mídia, obtendo sucesso em nível mundial.
A mídia brasileira passou, então, a noticiar as repercussões do caso de Pindobaçu, evidenciando-se o reconhecimento do sucesso de uma ocorrência nacional nessa espécie de hit parede em que se transformou o mercado da informação em nível global. Desse modo, Pindobaçu consegue um feito raro ao estrear com pé direito no espaço midiático, oferecendo-se ao mundo sob forma de singularidade dentro do gênero “curiosidades patéticas”.
E diante da surpreendente projeção, um radialista da cidade informa que: “as pessoas estão empolgadas com tantos veículos de comunicação noticiando o ocorrido, levando para todo o Brasil o nome de Pindobaçu”. A Mulher-Ketchup está sendo chamada para disputar vaga no parlamento municipal. O prefeito, cujo nome foi mencionado em vários meios de comunicação do Planeta, mostra-se entusiasmado com esta espécie de lançamento da sua cidade para a esfera do País e do mundo e, obviamente, considera positiva a divulgação do episódio: “pelo menos está tornando Pindobaçu uma cidade conhecida, leva o nome do nosso município para outros Estados. Afinal de contas, não houve violência nem morte”.
A história se pronuncia mais pelo desejo exacerbado de ter existência midiática do que pelas características criminosas que a ocorrência encerra. Neste caso, a mídia se torna uma finalidade e deixa de ocupar o lugar de meio. E quem chega a este ápice é merecedor de recompensas, a exemplo de uma vaga na câmara de vereadores, cogitada para a Mulher-Ketchup.
Em sua análise, Sampedro chama a atenção para o fato de que os meios de comunicação se converteram em “fins em si mesmos” e, desse modo, informar se reduz a conquistar cotas de audiência, “cuja atenção e interesse se dirigem ao voto e ao consumo”. No caso de Pindobaçu, ao se notar o desejo e êxtase em torno da midiaticidade, é possível dar prosseguimento às sugestões de Sampedro a partir da idéia de que a mídia tem se tornado fator de existência para aqueles que, formalmente, representam os cidadãos. No caso em tela, o feito midiático se converteu em obra política, mesmo tendo a trama dimensão de ocorrência privada, envolvendo relacionamentos íntimos de três habitantes envolvidos em práticas criminosas.
Apesar do retumbante sucesso do caso, Pindobaçu continua obscura, diferente do que pensam os seus moradores. O seu ingresso definitivo no campo midiático é muito mais sentido na forma de convencimento interno. Mas... Como vivem os seus habitantes? Do que vivem? Por que uma ocorrência privada tem o condão de dar à cidade uma animação tão especial? Pindobaçu teria se rendido ao fascínio do jeito de ser Ketchup? Ou será que este o único meio da cidade se ver na grande e luminosa tela?
Lá em Madri, o 15-M tem buscado modos de interferir na imagem que se tem da vida de modo a se produzir auto-retratos que revelem o teor atual da cidadania e a disposição de fazê-la mais ativa que os níveis atualmente “consumidos”. Por lá, o modelo Ketchup está em crise. E isto retira os ânimos da mídia em relação aos tempos posteriores aos falsos molhos que produzem sabores artificiais de vida e de morte.
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