A LÓGICA DA VIOLÊNCIA CONTEMPORÂNEA
Francisco Antonio Zorzo
Professor da Universidade Federal da Bahia
Bahia - Brasil
Entraram em cartaz, quase que simultaneamente em
Salvador, os filmes “O Som ao Redor”, do diretor pernambucano, Mendonça Filho e
“Django Livre” do diretor norte-americano Tarantino. Ambos os filmes tratam da
questão da violência, mas segundo concepções completamente diferentes. Vale a
pena colocar o filme brasileiro lado a lado com o do incensado diretor de “Pulp Fiction”.
Desde já, para efeito de uma comparação inicial, pode-se supor que o filme pernambucano tenha mais a ensinar ao público soteropolitano do que o de Hollywood. Aliás, para efeitos narrativos, o filme O Som ao Redor acaba justamente no momento em que inicia a bombástica trama de Tarantino.
Quando o duelo sangrento se instala, no caso da narrativa que se passa em Recife, o filme, literalmente, acaba e acendem-se as luzes da sala. O de Tarantino começa a partir daí, com a revanche explosiva e mortal da criação mítica de um herói. Na busca da justiça do ex-escaravo Django, o espectador mergulha na roda da tortura e destruição da América profunda.
O primeiro filme teve um lançamento discreto quando comparado com o norte-americano. Sabe-se que o lançamento do filme de Tarantino oportunizou o trunfo comercial de ser forte candidato à premiação do Oscar. Isso o coloca na lógica do mundo dos produtos culturais globalizados. O filme de Kleber Mendonça Filho trilhou por um caminho mais difícil, mas teve também reconhecimento internacional em festivais, que foi quase imediato, e foi incluído entre os melhores do ano na mídia estrangeira.
Por tratar, sem juízos de valor, das micro-relações do cotidiano de um bairro de Recife, e por deixá-las em aberto no seu elíptico final, o filme nacional desencadeia muitas perguntas na mente do expectador. Como nós nos protegemos da violência na cidade contemporânea? Qual é o pior tipo de segurança, a pessoal ou a vídeo-vigilância? Como foi possível que a segurança coletiva fosse parar na mão de agentes tão violentos?
A idéia que O Som ao Redor transmite é de que, por trás das novas formas de segurança, estão as velhas relações de desigualdade em relação à justiça. Tais relações são anteriores à vídeo-vigilância e aos serviços técnicos oferecidos na porta dos edifícios.
Portanto, o filme pernambucano tem o mérito de incorporar no retrato da violência atual, a firme noção de que não se pode ignorar as formas de poder mais arcaicas que a geraram. As relações de poder, no campo dos grupos e encontros pessoais, geram uma violência que se capilariza socialmente e que se amplifica tecnologicamente. Ela inunda e irriga de fortes emoções as relações de vizinhança e as de convivência, mas também proporciona negócios e serviços. Haja estômago e gastos inúteis nesse processo interminável de aplicação de força para resolver problemas de todo calibre, que deveriam ser resolvidos com educação, habitação e outros serviços públicos.
As antigas formas de
sociabilidade tornaram-se inadequadas para as metrópoles brasileiras. O
problema é que não se inventaram laços substitutos à altura das demandas. Nas
cenas do bairro classe média de Recife, por exemplo, quando há nexos sexuais e chamados
da paixão entre as pessoas, eles não formam um tipo de amor mais duradouro. No
filme, a família brasileira tradicional sofre ataques por todos os lados. O sistema
de som roubado e o carro riscado mostram o que Mendonça Filho quis destacar
como sendo a bateria moral da coletividade, ou seja, o desprezo e as diferenças
entre classes e os grupos sociais.
A obra contém uma cena muito exemplar e densa de significações sociais, que ocorre a partir de uma reunião ordinária de condomínio. Cabe ao filho de um dos proprietários, um pré-adolescente, mostrar o vídeo que montou com os problemas de segurança do prédio. O documentário feito pelo menino, sobre a segurança noturna do prédio, de um lado realça o ponto de vista da classe média, como se o problema fosse de contratação de pessoal treinado para a função. Mas por outro, bem mais grave, indica que o que se sabe sobre o problema desde a infância antenada dos dias de hoje, e não é pouco, foi construído em cima de uma paranoia coletiva.
Quer dizer, a faceta visual e sonora do dispositivo engana os que acham que o tema é técnico. Por um mérito cinematográfico, revela-se que a intimidade das pessoas está permeada por outros tipos de tensões em disputa. Ao serem exibidas em tela, permitindo que o público entenda a lógica do dispositivo de segurança que atinge as redes sociais. É por isso que o som ao redor, que dá nome ao filme, deveria ser chamado de ruído.
Para infelicidade geral, esse barulho é alto, como o latido do cão que ladra à noite na vizinhança e que se agonia às cegas. O cão sofre com o aparelho que emite um infra-som à distância, lançado por um morador escondido atrás de uma janela. Esse tipo de som, que a direção musical da obra conduzida por DJ Dolores foi muito competente em realçar, entra na esfera do incômodo.
Tal como esse ruído, a violência é incidental. Não se ouve o som que inunda o ambiente em que se vive. É justo por recursos como esse que o filme que tem um imenso dom de evocação. Ele presta um serviço para o público brasileiro, pois explicita as forças latentes que movimentam nossa sociedade e denuncia o buraco em que estamos nos metendo no campo da segurança.
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