DISCURSO AMOROSO URBANO (1)
LUPICÍNIO RODRIGUES
21/01/2010 00:13:00
As alegres paixões tristes
de Lupicínio Rodrigues
Por Tiago Barros
Lupicínio Rodrigues compôs sambas alegres, marchinhas de carnaval, xotes, samba-canções e até o hino do Grêmio, mas seu nome costuma ser imediatamente associado ao romântico e melancólico gênero musical que ele teria inaugurado, popularmente conhecido como "dor de cotovelo". Termo criado em referência à proverbial prática boêmia de se embriagar durante longas conversas a respeito de desilusões amorosas com os cotovelos displicentemente apoiados no balcão ou na mesa de algum bar. É sobre seus clássicos do gênero que versa Lupicínio e a dor de cotovelo, escrito pela pesquisadora de cultura brasileira e professora de filosofia Rosa Maria Dias. Livro batizado com o mesmo título do disco lançado por ele em 1973, que consiste em um dos principais objetos de análise da obra por conter algumas de suas mais significativas músicas, como "Loucura", "Castigo", "Meu barraco", "Judiaria", "Caixa de ódio", "Dona de bar", dentre outras.
Um dos objetivos centrais do livro é o de investigar o processo criativo através do qual Lupicínio Rodrigues transfigurou suas dolorosas decepções afetivas em belas canções. Porém, atenta à advertência feita pelo próprio compositor no encarte do LP de que "o disco não é para ser examinado, é necessário sentí-lo [...] é preciso saber sentir com a garganta seca, mãos trêmulas, olhos úmidos, a sua, a nossa, a vossa, a universal dor de cotovelo", a autora assinala que a linguagem teórica tende a afastar as paixões de seu núcleo de pensamento e se propõe a conduzir suas análises em sentido oposto ao do costumeiro ascetismo acadêmico, desenvolvendo uma interpretação mais próxima de uma "dramatização" do discurso apaixonado do que de uma metalinguagem sobre ele.
Para Rosa Dias, "Lupicínio esquadrinha em suas letras os desenlaces e os desencontros amorosos" e "nesse disco, como em todos os outros, o sujeito aparece sempre com um único querer que sofre e para quem não existe salvação a não ser continuar amando". A saudade provocada pela ausência da amada desperta no sujeito amoroso o ressentimento e a culpa que o convertem em sujeito moral movido pela necessidade de consolo e pelo desejo de vingança, sentimentos que transformam o peito do apaixonado em "uma caixa de ódio com um coração que não quer perdoar" (versos da música "Caixa de ódio"). Enquanto sujeito ressentido, o personagem das canções "recrimina a mulher amada pela separação, por suas dores e pelo seu desassossego" e enquanto sujeito culpado "incrimina-se por uma falta cometida contra o ser amado; acredita tê-lo ofendido e experimenta por isso um sentimento de remorso". Em ambos os casos é intensa a vitimização daquele que se sente injustiçado, assim como seu clamor pela punição do suposto responsável por seu sofrimento. Como exemplo podemos nos recordar de um dos mais agressivos trechos de sua célebre composição "Vingança": "Equanto houver força em meu peito eu não quero mais nada/ Só vingança, vingança, vingança aos santos clamar/ Você há de rolar como as pedras que rolam na estrada/ Sem ter nunca um cantinho de seu pra poder descansar."
Apesar das viscerais letras biográficas em primeira pessoa, a autora procura desvincular o artista de seus personagens ao defender que as paixões tristes presentes nas composições não bastam para identificar seu criador ao sujeito bilioso nelas descrito. Esclarece que o fato de Lupicínio costumeiramente cantar as dores do sujeito moral ressentido e culpado não significa necessariamente que ele próprio possua tais sentimentos, já que, à medida em que são cantadas, as vivências estão subjugadas a uma potência criadora artística "impessoal" que reflete sentimentos gerais: "Quando capturada pela arte, a dor amorosa não exerce uma ação nociva sobre o coração. O artista é capaz de assimilar o passado, assenhorar-se do caos de si mesmo e transfigurá-lo". Tamanha distância a pesquisadora considera haver entre o compositor e seus personagens que chega a caracteriza a experiência musical do "inventor da dor de cotovelo" como essencialmente alegre: "Postos em música, tecidos com alegria, os sentimentos do ressentimento passam com o tempo, são `chuvas de verão` e não sentimentos mediante os quais Lupicínio nega o amor e, consequentemente, a vida". Interpretação endossada por declarações do próprio compositor, como o seu depoimento concedido ao Museu da Imagem e do Som do Rio de Janeiro em 1968: "Eu faço música por brincadeira, para me divertir e divertir os amigos [...] Tive mil problemas com mulheres, mas acho que foram problemas bons, entre outros motivos, porque me deram horas de felicidade e vários sambas." As dificuldades afetivas pelas quais ele passou não imobilizaram sua vida nem o levaram a desistir do amor, ao contrário, serviram de estímulo para novas tentativas e de matéria prima para suas belas canções.
A autora também destaca que "quando se trata de Lupicínio, torna-se impossível desvincular melodia, letra e canto" e dedica a parte final de seu livro a tratar de sua importância não apenas enquanto compositor, mas também como músico e cantor. Evidencia que, apesar da aparente simplicidade, muitos de seus versos e melodias são resultantes de um apurado trabalho para melhor transmitir os estados de alma do sujeito apaixonado de suas canções. Lupicínio foi um dos primeiros a ousar cantar profissionalmente sem possuir o "dó de peito" exigido dos grandes cantores da época, razão pela qual costumeiramente ironizavam que ele "dizia" suas letras e não que as "cantava". Talvez este preconceito que o tenha levado a humildemente escrever que seu conceituadíssimo disco de 1973 "pretende apenas ser um singelo roteiro musical visando facilitar os cantores e intérpretes de meu país, que se interessem pelas composições [...] Não se trata de um disco de cantor. É um autor – entre tantos – vendendo seu `peixe`". Sem dúvida alguma "seu peixe" foi muito bem vendido, até melhor do que ele esperava, pois, além de boa parte de suas composições terem se tornado presença obrigatória no repertório de praticamente todos os intérpretes brasileiros, seu desempenho como cantor é cada vez mais reconhecido e admirado. A este respeito, Rosa Dias chama atenção para o importante fato de que Lupicínio foi um dos principais precursores do cantor "sem voz" que interpreta suas músicas de modo próximo ao da palavra falada, estilo que só viria a se consolidar no Brasil a partir da Bossa Nova.
Lupicínio e a dor de cotovelo é um livro belo e cuidadoso em que Rosa Maria Dias desenvolve uma análise apaixonada e original. Deve ser lido não apenas pelos que desejam conhecer mehor o importante disco de 1973, mas também é leitura obrigatória para todos os que quiserem saber mais a respeito de Lupicínio Rodrigues e do lugar de destaque que ele ocupa na música popular brasileira.
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