DISCURSO AMOROSO URBANO/3
André Simões
Na semana passada, ouvi pela milionésima vez que Chico Buarque “entende a alma feminina” – uma garota me disse isso enquanto escutava a canção “Tatuagem”. Todos sabemos que é um tremendo lugar-comum esse negócio de ligar a alma feminina ao Chico. Uma questão interessante seria descobrir quando se passou a fazer essa relação; qual o primeiro registro, na mídia ou na academia, de alguém usando a ideia.
Tal trabalho exigiria uma pesquisa historiográfica rigorosa, demandaria tempo. Mas mesmo somente utilizando alguns poucos fatos notórios, já podemos lançar luz sobre questões que não vêm sendo adequadamente debatidas quando o assunto é o eu-lírico feminino na obra de Chico Buarque – e na canção brasileira, de maneira mais ampla.
Nos Estados Unidos, todos os melhores letristas homens escreveram abundantemente no feminino. Vamos citar aí, para fins de exemplo, entre tantos que poderiam ser listados, Cole Porter, Ira Gershwin, Irving Berlin, Lorenz Hart e Stephen Sondheim. No Brasil, a associação imediata vem sempre e unicamente com Chico Buarque, embora consigamos pescar alguns outros exemplos pingados de canções femininas escritas por homens. O que acontece? Os americanos seriam privilegiados ao ter compositores mais sensíveis, que entendem como se sente uma mulher?
A questão, quero acreditar, é outra. O cancioneiro americano se estabeleceu graças a musicais para teatro e cinema. Os letristas eram obrigados a usar o feminino, pois escreviam para personagens femininas – simples assim. E daí surgiram coisinhas como “My Funny Valentine”, “Bewitched”, “The Man I Love”, “Someone to Watch Over Me” e “Love for Sale” – para ficar apenas nas que todo mundo conhece, ou deveria conhecer.
No Brasil, a tradição se formou de maneira diferente: compositores escreviam suas canções para cantores de rádio, que poderiam ser homens ou mulheres. É interessante notar que, mesmo entre nossas letristas mulheres, o eu-lírico feminino claro e inequívoco não era comum. Em “Castigo”, de Dolores Duran, tradicionalmente o intérprete masculino canta “Eu não seria este ser que chora”, e o feminino, “Eu não seria esta mulher que chora”.
Se podemos estabelecer um marco para uma mudança de uso do eu-lírico feminino na canção brasileira, devemos lembrar da peça “Calabar – O Elogio da Traição” (1972/1973), de Chico Buarque e Ruy Guerra, com cinco canções femininas. A partir daí, Chico passaria a compor muito frequentemente no eu-lírico feminino, e na maioria absoluta das vezes em canções para teatro ou cinema.
O que quero observar é que, se Chico é exceção entre os compositores brasileiros ao escrever muito no feminino, também é exceção ao ter grande parte de sua obra escrita “sob encomenda” – como já observou em diversas entrevistas. O meio, neste caso, proporciona a situação adequada para que o compositor sensível possa se expressar de diversas maneiras, inclusive no eu-lírico feminino.
Se muito se fala da influência dos compositores da Broadway e de Hollywood na obra de músicos brasileiros de uma geração anterior – Tom Jobim, acima de todos –, quase nunca se relaciona Chico Buarque a eles. Por quê? A hipótese mais plausível, para mim, está relacionada ao fato de Chico fazer parte de uma geração de artistas muito presente no combate ao regime de 64. Tornava-se vexatória qualquer relação com americanos “imperialistas”.
Mas, passados tantos anos, creio que não haver mais constrangimento em notar que, entre outros fatores, pela multiplicidade de gêneros musicais adotados, pelo rimário virtuosístico, pela fluidez com que mistura referências eruditas e de cultura pop e, por que não?, pela naturalidade no eu-lírico feminino, Chico Buarque está muito mais próximo de um Cole Porter do que de Noel Rosa, de quem tantas vezes foi identificado como sucessor.
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