segunda-feira, 18 de fevereiro de 2013

CARNAVAL E O FLUXO DO DESEJO

Francisco Antônio Zorzo
Fevereiro de 2013


Costuma-se dizer que o carnaval baiano se renova a cada ano. Mas, se isso ocorre, não é graças à indústria cultural, nem às distribuidoras de bebidas e de outros produtos que abastecem a farra. É o investimento do desejo coletivo que mantém a vitalidade de uma festa multitudinária como o carnaval de Salvador.

O investimento do desejo da multidão, ademais, introduz na festa, a cada ano, uma nova disposição cultural. O objeto do carnaval não é o trio, nem o camarote, nem as sedutoras marcas de grife que proliferam na avenida. Nem sequer é o consumo dos foliões, como alguns acreditam, mas algo que se desprende de todos esses objetos. Não é na forma dos abadás e nas áreas VIP, que se deve procurar a diferença do carnaval, mas no modo como o desejo é colocado no seu trajeto, o fluxo que se transmuta em quantos forem os objetos de desejo dos foliões.

As causas e os efeitos do carnaval, que entram em ebulição com a oportunidade do encontro, vem de tempos antigos em que ganharam um nexo de investimento coletivo. O fluxo carnavalesco desborda todos os ritos da sociedade. Muito já se falou em liberação sexual no carnaval, mas, tomando cuidado com o falso-moralismo, poder-se-ia advogar o contrário. O carnaval fortalece o desejo e o interdito, ou seja, opera o limite do laço social com as fantasias mais cruas. Não é preciso ser antropólogo ou psicanalista para perceber que as regras tem aqui um componente nitidamente acelerador do fluxo, basta ver os esticados cordões de isolamento ao redor dos grandes blocos.

O carnaval libera fantasmas civilizatórios. Os fantasmas individuais e coletivos de incesto, de sedução e de castração podem aflorar, ser visualizados e conjurados com a festa de Momo. No transe coletivo, os fantasmas mais atravessados são simples transgressões à proibição, relativas a figuras morais que, como se sabe, nada tem a ver com o sexo na avenida.

Inconscientemente, as formas de participação integram diversas modalidades de desejos intensivos. Por exemplo, pais e filhos vão à matinée com motivos distintos. Contando com a bagunça dos jatos de espuma e bolhas de sabão, sob o olhar dos pais é permitida uma válvula de escape que propicia boas troças infantis. A rua vira um playground e, por isso também, há muitos olhares de meninos e meninas de todas as idades, como que abandonados, à procura de parceiros de brincadeira ou substitutos de seus pais e irmãos de outras ocasiões festivas.

Os atos de domínio nitidamente sexual, que concorrem ao assédio em público, são em número bem menor quando comparados às múltiplas simulações e tentativas frustradas de se exibir e de atrair a atenção do outro. Quem pisa na avenida percebe logo o sentido do jogo no espetáculo atual, em que o beijo funciona muitas vezes como um esperado aplauso, tão convencional como um aperto de mãos e um click no mouse.

No campo erótico, a fantasia de macho pegador e de mulher prostituída são muito comuns, mas, no grosso da coreografia atual, apenas alcançam a conotação de norma de comportamento. Don Juan virtual e a prostituta digital possuídos pelo demônio são personagens atônitos da cena, que compartilham com o Hulk, o Batman e a Mulher Maravilha os olhares da galera do desejo acorrentado.

Estabelecendo um jogo dentro desse jogo de investimentos coletivos conta-se com fluxos particulares, que talvez possam ser redobrados de frisson e até de rivalidade. Mas a condição da cápsula é excitada de um modo quase compulsivo. Pelo visual, o olho se expande em celulares e câmeras portáteis, que são uma forma de reter fragmentos da experiência, para dar a ela um eventual sentido posterior. Mas se carnaval é fazer a paródia, como obter um sentido fora da performance?

Apesar das amarras, há o grande fluxo que integra o desejo de todos que passam pela festa. Mas, para onde vai a libido? O procedimento condutor básico é histérico, pois visa dramatizar os componentes dos interditos sociais. Curiosamente, no bloco das sapatonas, das muquiranas e dos inúmeros grupos de travestidos, as cantadas tornaram-se estupidamente engraçadas. O disfarce do velho exibicionista que carrega uma prótese sexual não assusta mais as garotas que assistem o desfile do camarote. O que o carnaval faz é retirar a ilusão do sofrer, transformando, pela paródia, a miséria banal em felicidade atual


Hoje, para aproveitar o desvio e assumir o descontrole e a ambiguidade, o folião torna-se histérico. Transgredindo a fachada social, ele coloca a máscara de gozador, possuído pelo sexo, transeunte perdido e bêbado. Ser pérfido e infiel são adjetivos alternativos do comportamento carnavalesco atual. Mediante as tendências de formatação do carnaval, resta ao pipoca a perfídia para com o sistema cultural dominante.

No carnaval, o que atiça os desejo é o elemento gerador de uma reserva singular de fantasias. O desejo coletivo ajuda a arejar os traumas afetivos, faz dos fantasmas coisas manejáveis até certo ponto, mesmo que sem conseguir espantá-los das mentes cansadas. Isso alivia um tanto a geração de angústia que agonia nossa sociedade. No campo subjetivo, afortunadamente, com essa breve transformação podemos encarar melhor as agruras do mundo real na quarta-feira de cinzas.

O folião detém um saber que o movimenta. É um saber débil, que não segue as normas da maneira instituída e que pode ficar no plano do imaginário, mas que é retomado e reinvestido no rito anual. O que pode deslanchar a liberação é o sujeito estar a fim, expor o desejo e saber se divertir ao pular no meio da multidão. Ou seja, o folião quer fazer a sua performance sem que ninguém o interrompa enquanto delira. Muito além das propagandas e anúncios de leds luminosos, somente interessa gritar mais alto, viva o Carnaval!

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