[jornal Folha de São Paulo. São Paulo (SP - Brasil), 19 de novembro de 2011, p. A3]
NÃO
Do bar à cadeia em um chope?
Fernando Costa Mattos
O que me chama particularmente a atenção na recente escalada de rigor contra os motoristas que consomem álcool é a tipificação da infração como crime.
Não sou contra considerar ilícito tal comportamento (enquanto infração punível com multa), e acho que o motorista que tiver causado danos à vida de outrem sob efeito do álcool pode ter sua pena bastante agravada. Considero desproporcional à realidade, contudo, considerar tal comportamento um crime, podendo desencadear a prisão do motorista infrator.
Não sou contra considerar ilícito tal comportamento (enquanto infração punível com multa), e acho que o motorista que tiver causado danos à vida de outrem sob efeito do álcool pode ter sua pena bastante agravada. Considero desproporcional à realidade, contudo, considerar tal comportamento um crime, podendo desencadear a prisão do motorista infrator.
Pergunto:
1) Por que não é considerado crime dirigir com sono? Se as estatísticas levassem esse fator em conta, veríamos que muitos acidentes são causados por motoristas que adormecem ao volante. E, se não existir ainda, deve ser fácil inventar algum aparelhinho capaz de medir quanto o indivíduo dormiu nas últimas 24 horas;
2) Por que não é considerado crime dirigir falando ao celular? Dependendo da situação, o celular pode ser muito mais perigoso, no sentido de desconcentrar o motorista, do que meia dúzia de chopes;
3) Por que não é considerado crime dirigir um carro com defeito? Todos sabemos que boa parte dos acidentes (isto já foi comprovado) é causada por carros defeituosos. Isso sem falar na má qualidade das estradas, responsáveis por outro tanto dos acidentes, sem que ninguém cogite punir os administradores responsáveis por elas;
4) Por fim, mas não menos importante, por que não é considerado crime dirigir mal? Alguém duvidaria de que essa é outra causa importante (talvez a mais importante, sobretudo quando combinada a um dos três fatores acima) para a ocorrência de acidentes?
Não seria tão difícil assim fiscalizar esse comportamento: por meio das milhares de câmeras que se multiplicam Brasil afora ("Big Brother" em ação!), poderiam ser verificadas diversas situações típicas de incompetência ao volante (dirigir colado no carro da frente, transitar na faixa da esquerda sem necessidade, fechar o carro do lado, frear bruscamente sem necessidade etc., sem falar naquelas condutas que já são fiscalizadas, mas não são consideradas crime).
Sim: aparentemente, dirigir a 250 km/h é menos grave, aos olhos do legislador pátrio, do que dirigir cautelosamente, para percorrer um trajeto curto, tendo tomado um ou dois chopes. Pois como responder a essas perguntas e entender as assimetrias da lei a não ser reconhecendo a efetividade, cada vez maior, desse fenômeno que costumo chamar de "neomoralismo da saúde"?
Basta uma coisa problemática estar relacionada a tabaco, a álcool ou a outras drogas para que esses sejam logo considerados os grandes vilões da história, sem levar em conta outros fatores e nuanças do problema (vide a recente demonização dos "maconheiros da USP").
Fulano usou droga? Que vá para a cadeia! Sicrano fumou em local fechado? Que vá para a cadeia! (Sim, isso logo será crime!). Beltrano bebeu e dirigiu (não importando se para percorrer uma curta distância entre o bar e sua casa ou se para pegar uma estrada e andar a 250 km/h)? Que vá para a cadeia!... Ora!
Que se construam logo novas cadeias! E não porque as atuais estejam abarrotadas (como estamos fartos de saber), mas porque logo a sociedade inteira estará nelas (tal como foi para o hospício em "O Alienista", de Machado de Assis).
FERNANDO COSTA MATTOS, doutor em filosofia pela USP, é professor de filosofia na Universidade Federal do ABC e pesquisador do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap).
1) Por que não é considerado crime dirigir com sono? Se as estatísticas levassem esse fator em conta, veríamos que muitos acidentes são causados por motoristas que adormecem ao volante. E, se não existir ainda, deve ser fácil inventar algum aparelhinho capaz de medir quanto o indivíduo dormiu nas últimas 24 horas;
2) Por que não é considerado crime dirigir falando ao celular? Dependendo da situação, o celular pode ser muito mais perigoso, no sentido de desconcentrar o motorista, do que meia dúzia de chopes;
3) Por que não é considerado crime dirigir um carro com defeito? Todos sabemos que boa parte dos acidentes (isto já foi comprovado) é causada por carros defeituosos. Isso sem falar na má qualidade das estradas, responsáveis por outro tanto dos acidentes, sem que ninguém cogite punir os administradores responsáveis por elas;
4) Por fim, mas não menos importante, por que não é considerado crime dirigir mal? Alguém duvidaria de que essa é outra causa importante (talvez a mais importante, sobretudo quando combinada a um dos três fatores acima) para a ocorrência de acidentes?
Não seria tão difícil assim fiscalizar esse comportamento: por meio das milhares de câmeras que se multiplicam Brasil afora ("Big Brother" em ação!), poderiam ser verificadas diversas situações típicas de incompetência ao volante (dirigir colado no carro da frente, transitar na faixa da esquerda sem necessidade, fechar o carro do lado, frear bruscamente sem necessidade etc., sem falar naquelas condutas que já são fiscalizadas, mas não são consideradas crime).
Sim: aparentemente, dirigir a 250 km/h é menos grave, aos olhos do legislador pátrio, do que dirigir cautelosamente, para percorrer um trajeto curto, tendo tomado um ou dois chopes. Pois como responder a essas perguntas e entender as assimetrias da lei a não ser reconhecendo a efetividade, cada vez maior, desse fenômeno que costumo chamar de "neomoralismo da saúde"?
Basta uma coisa problemática estar relacionada a tabaco, a álcool ou a outras drogas para que esses sejam logo considerados os grandes vilões da história, sem levar em conta outros fatores e nuanças do problema (vide a recente demonização dos "maconheiros da USP").
Fulano usou droga? Que vá para a cadeia! Sicrano fumou em local fechado? Que vá para a cadeia! (Sim, isso logo será crime!). Beltrano bebeu e dirigiu (não importando se para percorrer uma curta distância entre o bar e sua casa ou se para pegar uma estrada e andar a 250 km/h)? Que vá para a cadeia!... Ora!
Que se construam logo novas cadeias! E não porque as atuais estejam abarrotadas (como estamos fartos de saber), mas porque logo a sociedade inteira estará nelas (tal como foi para o hospício em "O Alienista", de Machado de Assis).
FERNANDO COSTA MATTOS, doutor em filosofia pela USP, é professor de filosofia na Universidade Federal do ABC e pesquisador do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap).
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SIM
Amargo, mas necessário
Anestesiados por tantas tragédias de trânsito, bombardeados por estatísticas alarmantes, corremos o risco de perder o que temos de mais humano: a capacidade de indignação. O recorde de 40.600 mortes em 2010 soa como um número a mais, que não conseguimos traduzir em dor e sofrimento.
E, no entanto, em algum lugar do Brasil, mais uma criança é atropelada enquanto acordamos e escovamos os dentes; um carro na contramão esmaga um homem e duas mulheres enquanto tomamos banho e nos vestimos; mãe e filho agonizam na estrada durante nosso café da manhã. Ao longo do dia, pais avós, amigos, namorados, irmãos e filhos choram e se desesperam.
À noite, enquanto vemos o jornal ou a novela, um motorista imprudente mata duas pessoas; a cada hora da madrugada, quatro jovens morrem entre as ferragens na saída de uma festa ou de um bar.
Peço emprestada uma frase de um dos tantos artigos sobre trânsito publicados recentemente: "Temos um exército de homicidas e suicidas em potencial ao volante, que pilotam estimulados por álcool, deprimidos por drogas ou excitados pela sensação de onipotência".
Não é retórica. Pesquisa do Ministério da Saúde mostra que, em 2010, esse exército de homicidas e suicidas matou 111 pessoas por dia e deixou internadas outras 146 mil.
Só no SUS, foram gastos R$ 187 milhões com acidentados (65% dos sobreviventes vão ficar com sequelas graves). Mais: se as estatísticas incluíssem quem morre dias ou meses depois dos acidentes, por conta dos traumas, seriam cerca de 80 mil vítimas fatais por ano.
São motivos de sobra para revitalizar uma lei que chegou a salvar 3.000 vidas em 2008, quando entrou em vigor a Lei Seca.
De lá para cá, o medo de ser pego no bafômetro foi diminuindo, junto com a fiscalização e com as campanhas de conscientização.
A lei caiu no vazio depois que a Justiça referendou que ninguém é obrigado a produzir provas contra si mesmo. Hoje, a maioria dos motoristas se recusa a passar pelo teste e não pode ser incriminada, mesmo se estiver trocando as pernas.
Não adianta ter uma ótima lei se ela não pode ser executada. É esse o maior mérito do projeto que aprovamos no Senado: a tolerância zero dispensa exames técnicos para quantificar o álcool no sangue. Vídeos ou provas testemunhais bastam para incriminar um motorista visivelmente embriagado.
O remédio é amargo demais, alfinetam alguns. Será? É um remédio apropriado para uma epidemia. Um remédio que corta o mal pela raiz (a bebida está por trás de 40% das mortes no trânsito). Fica claro que dirigir sob efeito de álcool e outras drogas é crime, haja ou não acidente. Entendimento, aliás, já expresso em julgamento por dois ministros do STF.
Vale lembrar que o porte ilegal de armas também é crime, independentemente de assassinato.
Quando o atual Código de Trânsito substituiu o anterior e passou a tipificar e estabelecer punições para crimes de trânsito, ele também foi apontado como um remédio muito amargo. Mas, em apenas um ano -1998-, o saldo das mortes caiu de 35 mil para 30 mil, e seguiu caindo até que o aumento da frota automotiva e o abandono das campanhas educativas alimentaram outra vez a violência; em 2008, o número de mortes chegou a 38 mil.
O remédio da vez foi a Lei Seca, que tratamos agora de resgatar. É o mínimo que podemos e devemos fazer -além de campanhas maciças de educação- diante de tragédias mil vezes anunciadas.
Temos hoje 65 milhões de veículos nas ruas, e a indústria automotiva anuncia investimentos de peso para os próximos anos -munição extra para um exército de motoristas despreparados e irresponsáveis.
RICARDO FERRAÇO é senador pelo PMDB/ES.
Amargo, mas necessário
Ricardo Ferraço
Anestesiados por tantas tragédias de trânsito, bombardeados por estatísticas alarmantes, corremos o risco de perder o que temos de mais humano: a capacidade de indignação. O recorde de 40.600 mortes em 2010 soa como um número a mais, que não conseguimos traduzir em dor e sofrimento.
E, no entanto, em algum lugar do Brasil, mais uma criança é atropelada enquanto acordamos e escovamos os dentes; um carro na contramão esmaga um homem e duas mulheres enquanto tomamos banho e nos vestimos; mãe e filho agonizam na estrada durante nosso café da manhã. Ao longo do dia, pais avós, amigos, namorados, irmãos e filhos choram e se desesperam.
À noite, enquanto vemos o jornal ou a novela, um motorista imprudente mata duas pessoas; a cada hora da madrugada, quatro jovens morrem entre as ferragens na saída de uma festa ou de um bar.
Peço emprestada uma frase de um dos tantos artigos sobre trânsito publicados recentemente: "Temos um exército de homicidas e suicidas em potencial ao volante, que pilotam estimulados por álcool, deprimidos por drogas ou excitados pela sensação de onipotência".
Não é retórica. Pesquisa do Ministério da Saúde mostra que, em 2010, esse exército de homicidas e suicidas matou 111 pessoas por dia e deixou internadas outras 146 mil.
Só no SUS, foram gastos R$ 187 milhões com acidentados (65% dos sobreviventes vão ficar com sequelas graves). Mais: se as estatísticas incluíssem quem morre dias ou meses depois dos acidentes, por conta dos traumas, seriam cerca de 80 mil vítimas fatais por ano.
São motivos de sobra para revitalizar uma lei que chegou a salvar 3.000 vidas em 2008, quando entrou em vigor a Lei Seca.
De lá para cá, o medo de ser pego no bafômetro foi diminuindo, junto com a fiscalização e com as campanhas de conscientização.
A lei caiu no vazio depois que a Justiça referendou que ninguém é obrigado a produzir provas contra si mesmo. Hoje, a maioria dos motoristas se recusa a passar pelo teste e não pode ser incriminada, mesmo se estiver trocando as pernas.
Não adianta ter uma ótima lei se ela não pode ser executada. É esse o maior mérito do projeto que aprovamos no Senado: a tolerância zero dispensa exames técnicos para quantificar o álcool no sangue. Vídeos ou provas testemunhais bastam para incriminar um motorista visivelmente embriagado.
O remédio é amargo demais, alfinetam alguns. Será? É um remédio apropriado para uma epidemia. Um remédio que corta o mal pela raiz (a bebida está por trás de 40% das mortes no trânsito). Fica claro que dirigir sob efeito de álcool e outras drogas é crime, haja ou não acidente. Entendimento, aliás, já expresso em julgamento por dois ministros do STF.
Vale lembrar que o porte ilegal de armas também é crime, independentemente de assassinato.
Quando o atual Código de Trânsito substituiu o anterior e passou a tipificar e estabelecer punições para crimes de trânsito, ele também foi apontado como um remédio muito amargo. Mas, em apenas um ano -1998-, o saldo das mortes caiu de 35 mil para 30 mil, e seguiu caindo até que o aumento da frota automotiva e o abandono das campanhas educativas alimentaram outra vez a violência; em 2008, o número de mortes chegou a 38 mil.
O remédio da vez foi a Lei Seca, que tratamos agora de resgatar. É o mínimo que podemos e devemos fazer -além de campanhas maciças de educação- diante de tragédias mil vezes anunciadas.
Temos hoje 65 milhões de veículos nas ruas, e a indústria automotiva anuncia investimentos de peso para os próximos anos -munição extra para um exército de motoristas despreparados e irresponsáveis.
RICARDO FERRAÇO é senador pelo PMDB/ES.
SIM
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