sábado, 31 de janeiro de 2015

CHRISTIAN CRUZ - ALGUMA COISA ACONTECE



Alguma coisa acontece

CHRISTIAN CARVALHO CRUZ -
 O ESTADO DE S. PAULO
31 Janeiro 2015 | 16h 00

Um desfile de tipos e situações onde a Ipiranga cruza

 com a Avenida São João

TIAGO QUEIROZ/ESTADÃO
X da questão. Na esquina, o Edifício Zico; vizinho a ele, de janelas verdes, o Palacete dos Artistas
- Não, meu bem. Não é o peso do cacete que importa. 
É bom que seja de ferro pra não quebrar, vá. 
Mas o negócio é onde se bate. Aprende, ói: é na 
canela ou nessa parte aqui em que o pescoço junta 
com o ombro. Vê? A dor é tanta que o pilantra na 
hora entorta. E aí você fica tranquilo pra continuar
 batendo até ele se mijar todo.

A Edna Revisz prefere ver as coisas da vida assim, 
“simplificadas”. Diz que foi o que aprendeu morando 
43 anos na esquina mais famosa da cidade, a Ipiranga 
com a São João, que essa semana recebeu umas faixas 
em xis pros pedestres atravessarem na diagonal e ganharem
 tempo e continuarem correndo e correndo e não vendo o dia
 passar. A Edna é zeladora do Edifício Zico, predinho antigo
 de seis andares com salas comerciais até o quinto com a casa 
dela no sexto. “Quando cheguei, vinda da zona norte e de mãe
 evangélica, eu era um nabo, um rabanete de tão burra. 
Aqui aprendi como é que se vive.”

Se a gente considerar só os imóveis das esquinas
 propriamente ditas, onde as avenidas se encontram 
em ângulos (quase) retos, e desconsiderar (como de costume)
 o pessoal das camas de papelão na calçada, a Edna é a única 
a morar no lugar que um dia mexeu com o coração do Caetano 
Veloso. “Era 1972. Vim procurar emprego. Achei bonito o rapaz 
na porta do Cine Arcades aqui ao lado e parei pra conversar. 
Ele era gerente do cinema e zelador do Zico ao mesmo tempo. 
Engravidei, casei, enviuvei. Aí herdei dele o trabalho, o salário 
e o direito de morar aí em cima sem pagar aluguel”, a Edna resume, 
sentada atrás do balcão onde tem por companhia os três maços de
 cigarros paraguaios que ela devora, uma lista telefônica ensebada
 que ela não consulta, os comprimidos que à tarde a deixam meio
 grogue (são 15 por dia, mas ela só lembra o nome de um: Rivotril) 
e o porrete de ferro com o qual ela se defende. “Pelo menos uma
 vez por mês dou num.”

O melhor de viver ali não tem, ela diz. E o pior é tudo. 
A Edna é meio ranzinza. Paulistana, né? Esporte preferido
: ficar na encolha e reclamar. “Acho uma alegria pagar a multa 
de R$ 3,60 por não votar. Não voto mesmo. Tudo picareta.” 
O Arcades, que há tempos virou Paris e exibe filmes 
hetero-travesti-animais-gays a R$ 10 em cabines individuais 24 horas, 
ela chama de “avacalhação homossexual, brigas, drogas na nossa cara,
 à noite é duro dormir”. As novas faixas de pedestre são “uma gastação
 de dinheiro dos diabos; tem nego levando algum, sempre tem”.
 O Bar Brahma, do outro lado da Ipiranga, “nunca foi pro meu bico”. O belo prédio vazio e grafitado, atravessando a São João, é “bom pra pichador cair lá de cima”. E o Citibank, na diagonal, sonho dos arrivistas doutros tempos e hoje uma fachada medonha encimada pelo velho relógio de ponteiros (que não entrou no horário de verão), merece só uma interjeição de desprezo: “Punff”.

Longe de nós querer dar pitaco na vida da Edna, 
mas talvez fizesse bem a ela deixar o porrete. Conhecer
 gente nova, jogar conversa fora. Verdade que ali na esquina, 
no meio de tantas pessoas impessoais, fica difícil. São 4.700 
caboclos transitando por hora, e transitando sempre com pressa, 
absortos em seus fones de ouvido, engolidos por seus celulares. 
Só que não custa imaginar uma esquina melhor, né? Que houvesse 
ali vizinhos pra pedir açúcar, um troco emprestado pra jogar no bicho.
 Já pensou, Edna, uma vida ampliada em vez de simplificada?
 Um troca-troca geral de simpatias entre gente próxima? Só na sua esquina daria uma suruba maravilhosa, com todo o respeito.
Tipo assim, Edna: esse é o Raimundo José. Raimundo-Edna, Edna-Raimundo. Prazer. Ele é morador novo. Mudou-se em dezembro pro prédio contíguo ao seu, que dobrando a São João sentido Paiçandu recebe o nome de Palacete dos Artistas. Ali funcionava o antigo Hotel Cineasta. A Prefeitura sentou a marreta, coloriu a fachada e os janelões, deixou um brinco. E fez 50 apartamentos pra alugar a preços sociais (10% da renda familiar) a cantores, atores, bailarinos, cenógrafos, pintores veteranos. Um pessoal com mais de 60 que um dia fez a cidade brilhar e ultimamente a cidade só fazia apagar. O Raimundo é cantor. Vendeu 500 mil cópias do samba Santo Forte, que ele gravou em 1976. “Não mexe comigo que eu ponho seu nome lá no meu terreiro / Eu sou macumbeiro lerê, eu sou macumbeiro lerê.” Ele tá com 75 e a voz continua um veludo. Se bobear você já o ouviu cantar, porque da janela da sua varanda cheia de plantas e grade enferrujada dá pra ver o quarto dele. O Raimundo é um cavalheiro. Entende de horóscopo e se ressente de não ter sido pai. “Leoninos como eu são seres paternais. Mas infelizmente não dei sorte com as mulheres.” Depois de uma temporada como assessor do Agnaldo Timóteo na Câmara de Vereadores, o Raimundo tem cantado aqui e ali. Acha que em seis meses dá cabo das prestações dos armários que comprou pro apartamento novo e aí vai gravar um CD. “Artista é que nem pipoca, meu querido: se para de pular vai pro saco.” Mas tem uma coisinha: vindo de 15 anos na Bela Vista, o Raimundo tá achando meio complicado se adaptar à vida na esquina.
Não seja por isso. Raimundo-Arnaldo, Arnaldo-Raimundo. Prazer. Arnaldo Pereira, 63, é um Ph.D. em Ipiranga com São João. Nascido e crescido no que foi a melhor banca de jornais do pedaço, a Banca do Gaúcho, que era do pai dele. “O Praça me pegou no colo. Carne Frita me tirava debaixo das mesas dizendo que aquilo não era ambiente pra criança”, ele vai citando os dois lendários sinuqueiros do Salão Maravilhoso. Há uns 30 anos o Arnaldo vendeu a banca e se mocozou no Edifício Zico como comerciante. Admirador de artes marciais e boxer amador, ele abriu no quarto andar uma loja que vende quimonos e suplementos pra marombados e no quinto uma academia de muay thai. Olha, Raimundo, o Arnaldo te conhece de vista e até canta o Corpo Fechado de cor, batucando no peito. Diz que nos tempos da banca cansou de te ver na frente do finado Bar Avenida, o ponto dos músicos onde os donos das boates vinham contratar, montar conjuntos de última hora, ou só pagar o cachê da noite anterior. “O Caetano era discriminado e não aparecia. Os músicos da cidade não gostavam do pessoal dele, aquele negócio de novos baianos. Diziam que eles não tomavam banho. Fez a música porque é um gênio, mas não era habitué da esquina.” Como a Edna, o Arnaldo acha que aprendeu a viver ali. “Eu era um vira-lata com curso primário, um bicho. Mudei quando consegui interpretar um texto pela primeira vez, aos 23 anos. Era a coluna do Plínio Marcos na Última Hora, a Navalha na Carne.” Santo Plínio Marcos! Hoje o Arnaldo é capaz até de explicar com poucas palavras a debacle da esquina. Diz ele que são meia dúzia de famílias dominando todos os imóveis. “Num certo momento, elas pressionaram tanto os inquilinos, um treco meio arrogante de ‘eu sou o dono e aqui mando eu, vocês pagam o que eu quiser ou saem’, que os pequenos empresários começaram a debandar em busca de pontos mais baratos. Agora essas famílias pagam o preço: um por um, seus imóveis vazios vão sendo invadidos pelos sem-teto.” O Arnaldo perdeu a esposa tá fazendo um mês e, morador do Parque Peruche, tem pensado seriamente em se mudar pro centro pela primeira vez na vida.

Ô Arnaldo, esse aqui é o Castor Guerra, ele também mora no Palacete dos Artistas. Castor-Arnaldo, Arnaldo-Castor. Prazer. O Castor é um camarada grandalhão, de barba e cabelos brancos e compridos. Mete um pouco de medo, porque quando cumprimenta a gente ele não larga a nossa mão e os nossos olhos. Meio desconfiado, só quer saber de papo depois que a gente assiste aos vídeos dele atuando no YouTube. Não é por nada, não, viu Castor, mas um chopinho com o Arnaldo ia te ajudar a relaxar. Ou, melhor ainda!, um café com leite com a Vera Berenguel. Mas à tardezinha, porque ela só chega pra trabalhar ao meio-dia. 

Vera-Castor, Castor-Vera. Prazer. A Vera foi camelô por 20 anos e agora é dona da Relojaria Zerbazi, uma loja-linguiça há mais de 60 anos instalada no térreo do Edifício Zico. Incrível como cabe coisa naquele 1 metro de frente por 5 de profundidade. Ela vende relógios, isqueiros, canivetes, fones de ouvido, celulares, charutos Cohiba comprados dos médicos cubanos e ainda troca baterias e pulseiras. Mas o que a Vera tem de melhor ela dá de graça: uma paciência sincera pra ouvir cliente amargurado. Na última quarta-feira, um senhor de paletó parou pra perguntar o preço de uma carteira de couro enfeitada com um brasão da República e a inscrição Agente de Segurança. Custava R$ 65. Ele pagou e ficou mais uma hora por ali, contando à Vera como se sentia um inútil, um lixo de homem, um não sei quê. “É que a mulher dele morreu, tadinho, e ele saiu com uma prostituta. Tá todo culpado.” 
Às vezes a Vera pega uns desses culpados vindos do segundo andar, onde desde 1984 o Daniel Ribeiro mantém uma sex shop com neons piscantes nas janelas que dão pra esquina. Os cabras compram lá seus consolos, bombas penianas (“sempre prum amigo”, salienta o Daniel), ainda meio tensos, querendo ir logo embora, e param na lojinha da Vera pra comprar as pilhas pros equipamentos. E aí, talvez por causa da proximidade da rua, da luz do dia, da liberdade, derramam nela a culpa que sentem e os motivos das aquisições.
A Vera só ouve. Pois não anda com muita força pra dar conselhos. Há três anos ela perdeu o marido, de anemia falciforme. E há um ano e meio não tem notícia do único amigo que fez na esquina: o Cláudio Ribeiro, torcedor símbolo do Corinthians, aquele figura de dentes parcos e cabelos fartos à black power que aparecia até em jogos do Brasil em Copas do Mundo. Por anos ele vendeu cartões telefônicos na esquina e protegia Vera dos malandros. Dormia pelos hotéis do centro. “Um dia ele me pediu pra guardar uma sacola porque precisava se hospitalizar. Nunca mais apareceu. Disseram que ele morreu. Esperei até outro dia, e aí resolvi queimar a sacola, sem coragem de olhar o que tinha dentro.” (Na Gaviões da Fiel e no Corinthians não há confirmação da morte do Ribeiro, vulgo Cotonete, tampouco sabem do paradeiro dele.) 
Mas, Vera, fica assim não. Ó, esse é o Roberto Luna, já ouviu falar? Luna-Vera, Vera-Luna. Prazer. O Luna é um baita cantor, do time do Nelson Gonçalves e do Altemar Dutra. Manda um bolero, um samba-canção e um tango que nem os argentinos acreditam. “Eu sei que vocês vão dizer / Que é tudo mentira / Que não pode ser”, diz a Molambo, seu maior sucesso. Só toma cuidado porque o Luna é um mulherengo dos bons e não é difícil adivinhar que ele vai se derreter todo com seus olhos azuis, Vera. O Luna nasceu Valdemar Farias em Serraria, Paraíba. Começou como crooner nas boates e cassinos do Rio, onde ganhou o nome artístico, fama e um contrato com a Rádio Nacional. “Adoro a minha Paraíba, mas eu queria mesmo é ser paulistano”, suspira. Tá com 85. Ele se mudou há pouco pro Palacete, ainda tá com o apartamento meio bagunçado, mas nada tão grave que não dê pra achar a garrafa de uísque. O Luna fala um bocado, fala de tudo, emenda um assunto no outro, se perde, se esquece, sempre numa gentileza que só vendo. Diz que morar agora na esquina é uma volta às origens, porque em 1953 a Rádio Nacional o mandou pra São Paulo pruma temporada de 30 dias. Fez tanto sucesso que ficou pra sempre. “Me hospedei no Hotel Excelsior, em frente ao Cine Marabá, na Ipiranga. Rapaz, eu me lembro como se fosse hoje. Me apaixonei por isso aqui num dia que olhei pra esquina, lá de cima, da janela do meu quarto no 22º andar, e por causa da garoa não enxerguei os carros, as pessoas, nadinha. Só dava pra ver os semáforos mudando de cor.” Um poeta esse Luna. 
Sabia que ele tem um sonho que bem daria uma canção novinha pra esquina? E, olha, vai ver esse sonho do Luna sirva pra gente enterrar de vez o mau gosto, mau gosto, mau gosto da especulação imobiliária, da falta de compaixão com a turma do papelão e das ocupações, se livrar da cultura do porrete na mão, da força da grana que destrói as coisas belas. Hein? Hein? E dali da Ipiranga com a São João a gente comece a virar a cidade do avesso do avesso do avesso. Hein? Hein? Ai, ai, acho que alguma coisa acontece no meu coração... 

Vai, Luna, conta o seu sonho pra ver se alguém se habilita a musicar ele pra gente. “Eu queria que no inverno acontecesse uma noite de garoa. Uma só, pra eu poder olhar a esquina aqui da minha nova janela e chorar de alegria.”

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