Bjerrum, 1967:
"Um demônio do deslizamento
parece rir da incompetência humana".
Comecemos pelas conclusões técnicas:
1ª) Além das incertezas decorrentes da impossibilidade de quantificar os efeitos e/ou a participação da ação climática, ainda há muitas imprecisões e indeterminações a superar nas análises da estabilidade de taludes e de encostas, em particular onde ocorrem solos residuais tropicais, não saturados.
2ª) Em decorrência deste fato, QUALQUER talude, ou encosta, que apresente parte de, ou toda a, sua face exposta ou revestida com vegetação, está sujeito(a) a sofrer desprendimentos, erosão e, até mesmo, rupturas, no decorrer de sua vida.
3ª) Cada talude ou encosta deve ser analisado(a) como problema individual e receber uma solução compatível com o resultado dessa análise.
4ª) Não há métodos e/ou soluções de aplicação geral, ou de caráter exclusivo, ou inteiramente seguros, para a estabilização de taludes e de encostas, em especial em regiões tropicais.
5ª) As únicas soluções que oferecem segurança absoluta requerem a execução de contenções e/ou o revestimento total do talude, com concreto projetado; são, sempre, as mais onerosas.
6ª) O bom senso e a engenharia, contudo, recomendam buscar soluções que conduzam a RISCO MÍNIMO, associado a menor custo e levando em conta o tipo e proximidade de ocupação das áreas que possam vir a ser afetadas por possíveis deslocamentos de massas de solo e/ou rocha.
O exposto é uma síntese de alguns fatos que comecei a assimilar a partir de 1958, quando, graças à visão do Professor Hernani Sávio Sobral e por ele orientado, fui encarregado de instalar e de ministrar a Disciplina de Mecânica dos Solos e Fundações na EPUFBA.
Voltando aos aspectos técnicos e com ênfase em Salvador, é fato comprovado que, nos centros urbanos, o problema de estabilização é mais grave, pois as populações de baixa renda costumam ocupar as encostas, que representam áreas de difícil acesso ou de maior risco, carentes de obras de proteção, de estabilização e de drenagem entre outras.
Essa ocupação não traduz uma preferência; decorre do fato de que construir em encostas é sempre mais caro que em áreas planas, ou onduladas, ou ao longo das linhas de cumeada; este fato afasta os investidores dos terrenos mais “acidentados”.
Tivemos um Secretário de Obras, na Prefeitura de Salvador, colega nosso, cujo período exato de gestão não sei precisar (após o dito Golpe de 64, por volta do fim da década de 60). Nessa época, o Prof. Antônio José da Costa Nunes esteve em Salvador com o objetivo avaliar o problema de nossas encostas e estimar a ordem de grandeza dos custos dos estudos, dos projetos e da execução de obras emergências em nossa Cidade, com base em sua experiência pessoal e na do Instituto de Geotécnica do Rio de Janeiro.
Ao ouvir as conclusões do Prof. Nunes, que informou da relação entre possíveis acidentes e as condições de clima, o nosso Secretário de Obras pronunciou-se: “não temos dinheiro para tanto; não choverá, durante minha gestão, o suficiente para a ocorrência de acidentes catastróficos”. Não choveu ...
Essa foi a primeira vez que a Escola Politécnica e a Prefeitura de Salvador tentaram posicionar-se com relação ao problema de encostas em Salvador. A solução foi salomônica ...
Constatei que falava para surdos. Decidi, então, calar, salvo para transmitir um pouco do pouco que conheço sobre o assunto, em palestras, quando convidado para fazê-lo e sem qualquer ônus para quem convida.
Ocorridos os acidentes, quando há vítimas fatais e/ou elevado número de desabrigados, aparecem as manchetes em jornais e na televisão, em geral complementadas por entrevistas e/ou pronunciamentos, nos quais são apresentadas as supostas causas de tais acidentes e as medidas necessárias para evitá-las, nem sempre partindo de pessoas qualificadas para fazê-lo.
O problema da estabilidade e da estabilização de taludes e de encostas é tão complexo que, ainda hoje, sempre tem lugar certo em Congressos e é objeto específico de Colóquios, Simpósios e outros, além de ser tema permanente de teses de Mestrado e de Doutorado em Geotecnia e em Geologia.
E o que aconteceu nos últimos cinquenta anos, em Salvador?
Agravou-se o problema? Não.
Quantas vítimas fatais tivemos, nesses quarenta anos, em decorrência de rupturas de taludes e de encostas?
O número de vítimas é proporcional ao aumento da população em áreas de risco? Asseguro que não; é muito menor do que o imaginável.
O número de vítimas aumentou apesar do número, proporcionalmente reduzido, de ações implementadas visando à estabilização de encostas ? Reitero que não.
Ao que parece, as ações da Prefeitura de Salvador não seguem um planejamento e não têm continuidade; obras projetadas nem sempre são executadas; as vítimas passam meses ou anos em abrigos “provisórios”; sucedem-se mesas redondas, seminários, convênios entre Prefeitura e Universidade e as conclusões e sugestões dos técnicos e especialistas são relegadas ao esquecimento. Poderia ocupar páginas relacionando reuniões técnicas, pronunciamentos, convênios, contratos com empresas de consultoria e obras, tudo realizado sem a devida coordenação e/ou planejamento; quase sempre, ações esporádicas, interrompidas após alguns meses ou após um a dois anos de seu início, início este que, com frequência, coincide com a ocorrência de deslizamentos ou de acidentes que deixam algumas mortes e muitos desabrigados.
Qual a frequência com que ocorrem as chuvas “catastróficas” ?
Que são chuvas catastróficas, para a Cidade do Salvador ?
Isto é assunto para outro artigo, pois depende da análise de elevado volume de dados oficiais e relativos a precipitações máximas, sua distribuição no tempo, tempo de recorrencia e outros.
Concluo, com algumas considerações e proposições para debate.
1ª) Nada na vida é totalmente positivo ou negativo, dentro da relatividade que rege nossas ações, nosso conhecimento, nossas emoções e o destino que traçamos, mas este nem sempre é aquele que se realiza ...
2ª) Assim, a densidade de ocupação, desordenada, de nossas encostas, inadequada do ponto de vista de saúde pública e de uso do solo, entre outros, revelou-se positiva na grande maioria das áreas ocupadas, por reduzir a infiltração de águas pluviais.
3ª) Aqui e ali, em áreas dispersas, há lixo e aterros ou bota-fora mal construídos, drenagem inadequada, e/ou ausência de rede de esgotos contribuindo para a ocorrência de acidentes com vítimas, quando chove; no entanto, as áreas ocupadas e/ou protegidas pela ocupação desordenada são de tal monta que o número de vítimas tem-se revelado proporcionalmente muito inferior ao crescimento da população que ocupa nossas encostas e/ou à nefasta ação antrópica.
4ª) O problema atual das encostas, em Salvador, nada tem a ver com encostas e/ou taludes em rodovias, áreas industriais, áreas de mineração, bacias de acumulação de barragens e outras semelhantes: a determinação de áreas de risco, assim como a estabilização de encostas e de taludes representam um problema técnico que tem solução a médio ou longo prazo e requer recursos hoje não disponíveis.
5ª) O problema real, e mais grave que o problema técnico, é o problema social, envolvendo saneamento básico, alimentação e instrução para toda a população que ocupa as encostas, representando mais de dois terços da população de Salvador, mas da qual apenas uma minoria tem, de fato, suas vidas ameaçadas quando chove.
6ª) Quando chove, divulgam-se dados qualitativos, tais como: “chuvas excepcionais”; ou “chuvas mais intensas que aquelas que normalmente ocorrem nesse mês”; ou "chuvas que ultrapassaram X mm em um dia” etc. Considero esse procedimento uma manipulação de dados, com fins políticos inadequados, cujos objetivos variam, quando não traduzem a incompetência de quem os apresenta.
7ª) Por que não esclarecer o público, divulgando mais informações, tais como: o que é tempo de recorrência; qual a intensidade de precipitação em uma hora, ou duas, ou vinte e quatro horas; qual a frequência de dias com chuvas; qual o vlume diário de precipitação; qual o tempo de recorrência utilizado no dimensionamento das obras de drenagem; comparação com chuvas registradas em anos anteriores, desde que em período superior a dez ou vinte anos ?
8ª) A resposta é óbvia: para não revelar, entre outros:
- a) o subdimensionamento das obras de drenagem; ou
- b) a falta de planejamento urbano; ou
- c) o descaso com a ocupação do solo; ou
- d) a economia nos projetos e nas obras visando à possibilidade de executar mais obras, ainda que de pior qualidade; ou, no meu entender, o pior:
- e) a miséria e a ignorância sem controle, que deixam as famosas autoridades sem força moral para fazer cumprir a lei. Deixam de fiscalizar a ocupação do solo, permitem invasões, sejam elas de ricos ou de pobres, entre outras ações tais como não permitir, à polícia, intervir quando gente faminta saqueia mercados...
9ª) A conjunção das condições climáticas, geológicas, topográficas e geotécnicas de Salvador é desfavorável, mas não é pior que as de outras cidades brasileiras. As condições sociais da maioria de sua população, contudo, são tais que em breve poderão vir a igualar as das favelas do Rio de Janeiro.
10ª) As dificuldades são evidentes; enunciá-las ocuparia tempo e espaço não disponíveis. No entanto, ações parciais e periódicas já foram implementadas. Hoje, a situação não é melhor, em parte por falta de vontade política e, principalmente, por falta de planejamento, de continuidade e/ou perseverança.
11ª) Quando aqueles que aceitam ocupar cargos de liderança e/ou chefia, nos diversos escalões, decidirem despir-se de vaidades e de ambições, colocando seus projetos pessoais como consequência dos objetivos sociais, e não como prioridade, ou seja quando houver mais humildade, sinceridade e honestidade, os caminhos serão encontrados e os fins atingidos, ainda que apenas na ou nas próximas gerações. “Não basta dizer e fazer; é necessário ser, em espírito e verdade, aquilo que recomendamos aos outros”. (Huberto Rohden).
12ª) A conclusão anterior não é utópica; dizer sim, mas, seja lá o que for, é dizer não (sim, mas = não). Diga-se, então: NÃO concordo, NÃO aceito, NÃO participo, NÃO acredito, mas nunca: NÃO É POSSÍVEL ou, É DIFÍCIL. “Não jureis de forma alguma; seja o vosso modo de falar um simples sim, um simples não; o que passa daí vem do mal”.
Qual a verdade sobre o problema de estabilidade de encostas e de taludes em Salvador?
A Verdade é a Harmonia entre nosso Pensamento e a Realidade (H. Rohden).
Concluo: a solução para o problema das encostas de Salvador não está nas mãos dos técnicos, pois os temos e altamente preparados; apenas depende da contribuição deles.
É necessária uma decisão política, adulta, associada a uma mudança de postura dos diversos grupos que integram nossa sociedade, dividindo as responsabilidades entre o Governo Federal, o Estadual e o Muncicpal, cabendo, a este último, planejar, projetar, aprovar e fiscalizar as ações e as obras no âmbito da Cidade do Salvador.
Salvador, 17/01/2011.
* Moacyr Schwab de Souza Menezes é engenheiro civil, professor da Politécnica da UFBA e pioneiro no ensino da Geotecnia, na Bahia.