sexta-feira, 2 de novembro de 2012

ELIZABETH C GAMA - CANDOMBLÉ NO RIO DE JANEIRO (1)


ANAIS DO III ENCONTRO NACIONAL DO GT HISTÓRIA DAS RELIGIÕES E DAS RELIGIOSIDADES
– ANPUH  -Questões teórico-metodológicas no estudo das religiões e religiosidades. IN: Revista
Brasileira de História das Religiões. Maringá (PR) v. III, n.9, jan/2011. ISSN 1983-2859.
Disponível em http://www.dhi.uem.br/gtreligiao/pub.html
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HISTÓRIA E MEMÓRIA DO CANDOMBLÉ NO RIO DE JANEIRO: NOVAS
PERSPECTIVAS DE ANÁLISE (1)
Elizabeth Castelano Gama
UFF

João Paulo Alberto Coelho Barreto, o João do Rio, deixou registrado em suas crônicas um inquietante material sobre a religiosidade de origem africana no Rio de Janeiro.
Entre Fevereiro e Março de 1904, João do Rio publicou as reportagens que chamou de As
religiões no Rio. Com o objetivo manifesto de contar a verdade sobre a cidade através das
reportagens, o jornalista desempenhou o papel que Benjamim atribui uma função de
conselheiro. Ou seja, sua narrativa gira em torno da idéia de estar prestando uma utilidade à
sociedade desvelando uma cidade “escondida”, sem deixar de tecer críticas a ela, expondo
algumas práticas, por vezes ridicularizadas, na tentativa de uma repreensão moral.
O capítulo No Mundo dos feitiços corresponde às cinco reportagens sobre as religiões
negras: Os feiticeiros, As Iaôs, O Feitiço, A Casa das almas e Os novos feitiços de Sanin.
João apresenta Antônio como seu colaborador/informante. Antônio foi aquele que o
iniciou no mundo dos feitiços da cidade a troco de “papel-moeda” e vinho do porto. Era um
descendente de africanos, ex-escravos, e freqüentava o mundo das casas-de-santo da cidade.
Contudo, o informante não se inclui como praticante do culto aos orixás, sua fala sempre é
marcada pela alteridade, não raro acompanhada pelo deboche.

A caracterização da religião é feita pela narrativa intercalada de algumas transcrições de conversas entre o jornalista e seu informante que falava inglês e lia Shakespeare. No conjunto das reportagens João do Rio trata de vários temas, analisaremos especificamente a construção de uma personagem específica: Assiata. A obra de Roberto Moura,  Tia Ciata e a Pequena África no Rio de Janeiro, foi publicada em 1983. Com a intenção de contar a história dos primórdios do samba na cidade, o autor realiza um trabalho pioneiro, a partir de relatos orais, que irá ser referência para outros trabalhos seguintes sobre o tema e o local. A região da Gamboa e Saúde, mas principalmente, e Pedra do Sal, se tornaram o lugar de memória principal quando o assunto é samba, capoeira e candomblé. A obra aborda vários assuntos, principalmente relacionadas a música, mas enfocaremos na construção de outra personagem, Tia Ciata. Assiata, Ciata.
“ – E há muitas mães-de-santo?
- Umas 50, contando as falsas [...]. (RIO, 2006 p. 43)

Entre as mães-de-santo “falsas” relacionadas por Antônio, consta um nome que será mencionado com ênfase mais de uma vez no texto, trata-se de Assiata. “Esta é de força. Não tem navalha,  finge de mãe-de-santo e trabalha com três Ogãs falsos – João Ratão, um moleque chamado Macário e certo cabra pernóstico, o Germano. A Assiata mora na rua da Alfândega, 304. Ainda outro dia houve lá um escândalo dos diabos, porque a Assiata meteu na festa de Iemanjá algumas iaos feitas por ela. Os pais-de-santo protestaram, a negra danou, e teve de pagar a multa marcada pelo santo. Essa é uma das feiticeiras de embromação”. (Op. Cit. p. 44)
A memória sobre o candomblé carioca no início do século XX está assentada na chamada “Pequena África”, é nesta região que residiam os pais e mães-de-santo que foram consagrados pela memória produzida. No único livro dedicado ao tema:  Os Candomblés antigos do Rio de Janeiro. A Nação Ketu: origens, ritos e crenças (1994), Agenor Miranda escreve suas memórias. Apesar de declarar que seus escritos são  “uma ínfima parcela da totalidade do tema”, por comodidade ou por falta de interesse ou documentação, os demaispesquisadores repetiram e reproduziram suas memórias com estatuto de única verdade.

A narrativa do livro vincula as casas de santo que existiram no Rio de Janeiro à Bahia, tanto que antes de iniciar a descrição, o autor introduz explicando sobre os três terreiros de maior tradição nagô em Salvador: Casa Branca, Opô Afonjá e Gantois.

Agenor Miranda fala da migração baiana para a cidade do Rio de Janeiro a partir da segunda metade do século XIX afirmando que esses negros baianos “constituíam um grupo à parte na massa de ex-escravos e seus descendentes, que, na virada do século, estavam dispersos na cidade, com ocupações variadas”. Contudo, diz que a maioria deles vivia entre a Saúde, Gamboa e Santo Cristo. Nos cortiços do centro da cidade teriam sido fundadas as primeiras casas de Candomblé da cidade. Os nomes citados por ele, e que são repetidos em outras obras, são: João Alabá, Cipriano Abedé, Mãe Aninha e Bamboxê. João Alabá de Omolu morava na Rua Barão de São Félix e teria iniciado muitas flhas-de-santo, entre elas, Tia Ciata. Já Cipriano Abedé de Ogun morava na rua João Caetano e foi o responsável, senão pela iniciação, pelos conhecimentos adquiridos pelo próprio autor do texto na lei do santo. Na Rua Marquês de Sapucaí, Bamboxê fundou sua casa. Mãe Aninha, vinda de Salvador em 1886, fundou junto a Bamboxê e Oba Saniá uma casa-de-santo na Saúde.

Agenor Miranda nasceu 3 anos após a publicação do livro de João do Rio, em 1907, e foi iniciado em 1912, com 5 anos em Salvador.  Muda-se para o Rio de Janeiro apenas em 1927. João Alabá havia falecido em 1926 (alguns relatos dizem 1924) e Cipriano Abedé em 1933. Portanto, a centralidade desses nomes como principais exponentes do candomblé carioca no início do século na memória de Agenor Miranda está mais ligado aos ensinamentos e informações que foram lhe passados em Salvador num ambiente específico, e não coincidente, ambiente que mantinha uma relação com esses nomes na capital federal, do que a uma ampla vivência na cidade do Rio de Janeiro. João Alabá também é uma figura que teve enfoque na principal obra que moldou uma visão sobre a religiosidade africana no Rio de Janeiro: A Pequena África e o reduto de Tia Ciata (1983) de Roberto Moura.

Neste capítulo citado, o autor busca compor a trajetória dos migrantes baianos para a cidade do Rio de Janeiro. A partir da fixação e ganho de estabilidade, os primeiros migrados teriam propiciado um ambiente capaz de acolher um fluxo migratório razoável.

A definição que Roberto Moura dá a essa comunidade baiana é de um grupo com uma tradição comum, coesa e harmoniosa, além, é claro, de exaltar o poder de sua influência “por toda a comunidade heterogênea que se forma nos bairros em torno do cais do porto e depois da Cidade Nova”. A proeminência desta comunidade na vida cultural e religiosa do centro da cidade é destacada na configuração do grupo baiano como uma elite local:

Ali, os baianos forros migrados por opção própria constituiriam uma elite no meio popular e, generalizando-se as informações de seus sobreviventese descendentes, pode-se supor serem predominantemente nagôs (iorubás) (MOURA, 1983). Na tentativa de ilustrar tal afirmação, o autor busca recompor duas trajetórias de grandes personalidades da comunidade baiana. A de Hilário Jovino Ferreira e a de Ciata,  a mais famosa das inúmeras tias baianas da época. Ambos eram ligados a casa-de-santo de João Alabá. Será a descrição de Ciata e as descrições sobre sua inserção no universo religioso que nos interessará a partir daqui.

As descrições sobre o candomblé da casa de João Alabá são feitas a partir de memórias, registro orais utilizados pelo autor. Através de depoimento de Carmem Teixeira da Conceição, que foi filha-de-santo de Alabá, tomamos conhecimento de que o candomblé de seu pai era uma das maiores referências no Rio de Janeiro para os baianos que chegavam a cidade. Casa cheia, culto tradicional.

Afirmando Roberto Moura ser preocupação de um pai-de-santo a continuação do culto aos orixás e a garantia de coesão do grupo, no caso de João Alabá, teriam sido as tias baianas “os grandes esteios da comunidade negra, responsáveis pela nova geração que nascia carioca, pelas frentes do trabalho comunal, pela religião, rainhas negras de um Rio dJaneiro chamado por Heitor dos Prazeres de „Pequena África‟ [...]”.O autor atribui a essas tias uma centralidade funcional para a coesão do grupo. Ciata e outras tias como Bebiana, Carmem Ximbuca, Perciliana, entre outras, pertenciam ao terreiro de Alabá, que, segundo o autor, compunha um dos principais núcleos de organização e influência sobre a comunidade. Portanto, seria a partir da atuação dessas negras baianas, devido ao grande respeito que teriam dentro da comunidade, que teria havido, nas palavras do autor, “permanência das tradições africanas e as possibilidades de sua revitalização na vida mais ampla da cidade”. Outras tias são citadas, fora do eixo da casa de Alabá, mas o enfoque foi dado a Ciata, a mais famosa e mais influente na conclusão do autor.

Nascida em Salvador em 1854, iniciada no candomblé ainda adolescente. Chega ao Rio aos 22 anos, 1876 e fixa residência na Rua da Alfândega, 304. Mesmo endereço da  “falsa” mãe-de-santo Assiata, descrita por João do Rio. A Ciata de Roberto Moura é assim: espírito forte, sábia, talento para a liderançadetentora de sólidos  conhecimentos religiosos e culinários, mulher de grande iniciativa e energia, trabalhadora. Detentora de um posto religioso na casa de Alabá, que teria sido fundada por Bamboche, o autor se permite imaginar “ser Ciata e sua gente baiana no Rio ligada ao tronco mais tradicional do candomblé nagô de Salvador”. 

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