sábado, 3 de novembro de 2012

ELIZABETH C GAMA - CANDOMBLÉ NO RIO DE JANEIRO (2)



ANAIS DO III ENCONTRO NACIONAL DO GT HISTÓRIA DAS RELIGIÕES E DAS RELIGIOSIDADES
– ANPUH  -Questões teórico-metodológicas no estudo das religiões e religiosidades. IN: Revista
Brasileira de História das Religiões. Maringá (PR) v. III, n.9, jan/2011. ISSN 1983-2859.
Disponível em http://www.dhi.uem.br/gtreligiao/pub.html
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HISTÓRIA E MEMÓRIA DO CANDOMBLÉ NO RIO DE JANEIRO: NOVAS
PERSPECTIVAS DE ANÁLISE (2)
Elizabeth Castelano Gama
UFF


Descrevendo suas possíveis funções dentro do terreiro, é a partir da sua proeminência que o autor confere a Ciata uma centralidade nesse meio religioso. Apesar de ser parte integrante de um terreiro considerado tradicional, no texto aparecem referências de festas religiosas em sua própria casa. Essas festas, religiosas ou não, estavam garantidas, salvaguardadas da perseguição policial por ter Ciata como marido um funcionário público ligado a polícia. Portanto, além da tradicionalidade, existia o fator segurança, o que propiciava um ambiente perfeito para preservação das práticas religiosas dentro dessa comunidade.O autor conjectura que, ao lado de Hilário Jovino, Ciata teria sido a principal  liderança negra no período: “espírito agregador, familiar, religioso”. E assim define e dá a sua casa status de capital de um continente negro dentro de uma cidade:

A casa de tia Ciata se torna a capital dessa Pequena África no Rio de Janeiro, seu carisma se somando à ocupação integral de seu marido, permitindo que fosse preservada sua privacidade que se abria para a comunidade. A negra tinha respeitada sua pessoa e  inviolabilizada sua casa. Privilégio? Coisa de cidadão que quanto preto recebia ou exigia, se estranhava. Na sua casa, capital do pequeno continente de africanos e baianos, se podiam reforçar os valores do grupo, afirmar o seu passado cultural e sua vitalidade criadora recusados pela sociedade. [...]. Da Pequena África do Rio de Janeiro surgiriam alternativas concretas de vizinhança, de vida religiosa, de arte, trabalho, solidariedade e consciência, onde predominaria a cultura do negro vindo da experiência da escravatura, no seu encontro com o migrante nordestino de raízes indígenas e com o proletário ou o pária europeu, com quem o negro partilha os azares de umavida de sambista e trabalhador. (MOURA, 1983)

Podemos afirmar que é esta a memória vitoriosa tanto da região, quanto da figura de Ciata e seu reduto baiano. Antes de confrontarmos a imagem da Tia Ciata de Roberto Moura com a Assiata de João do Rio na tentativa de compreensão da construção da memória da religiosidade negra no Rio de Janeiro, consideramos importante ressaltar alguns pontos passíveis de crítica sobre a centralidade do redutor baiano abordado aqui. Para isso, dialogaremos com o artigo de Tiago Melo Gomes  Para Além da Casa de Tia Ciata: outras experiências no universo cultural carioca, 1830-1930

Apesar do enfoque cultural (música), muitas questões abordadas pelo autor nos são úteis para repensar o tema específico sobre a memória da religiosidade afro-brasileira na cidade. O autor menciona que carnavalescos e estudioso da música popular renderam homenagens ao grupo baiano. Entretanto, a partir da obra de Roberto Moura a atribuição de elite a esse grupo deu um salto considerável. Tiago Gomes atribui o sucesso da reelaboração da centralidade baiana no livro ao contexto historiográfico dos anos 1980. Segundo o autor, nos anos 1980 houve um esforço de  recuperação de visões alternativas aos projetos modernizadores dos grupos de elite da Primeira República. A imagem de um grupo específico e desterritorializado que buscava recriar sua identidade e lutar por cidadania era interessante para uma nova visão sobre as relações Estado-sociedade nesse período.

O fato é que após ganharem livro (e filme), “Tia Ciata e seus amigos” foram adotados pela historiografia posterior com pouca cautela:

A imagem de uma comunidade baiana forte, numerosa – e, se não livre de disputas internas, por certo unida em torno de sua formação cultural  – é bastante sedutora, mas a verdade é que esta centralidade baiana tem sido muito mais afirmada do que demonstrada. (GOMES, 2004, p. 179)
O argumento central do artigo, que visa analisar os pressupostos dessa valorização dos amigos de Tia Ciata como formadores do universo cultural carioca, é de que por mais que tivessem sido importantes os baianos migrados para o Rio de Janeiro, eles necessariamente dialogaram com outros grupos e tradições, sendo o carnaval e demais atividades culturais populares fruto de uma criação coletiva mais ampla.

Na tentativa de compreender a proeminência desse grupo baiano na comunidade negra, Tiago Gomes diz que a argumentação da importância desse grupo ancora-se basicamente na idéia de uma grande migração de Salvador para o Rio de Janeiro entre fins do século XIX e início do XX. Argumento que critica citando dados demográfico sobre migração interprovincial utilizados por Robert Slenes que não garantem a sustentação de uma “diáspora baiana” para a Capital. A crítica do autor que mais nos interessa e contribui para repensar o nosso tema é a importância das tias baianas na comunidade negra do Rio de Janeiro. Roberto Moura afirma terem sido elas o esteio da comunidade tendo como razão principal o fato delas, através de seus ofícios de quituteiras, tecerem uma ampla rede de contatos sociais que lhes dariam posição de poder no interior da comunidade. Esta rede de contatos garantiria segurança ao grupo e liberdade à comunidade baiana, o que traria como consequência a possibilidade  deles manterem suas práticas culturais.
A base de fontes de Roberto Moura é oral. São depoimentos dos descendentes desse grupo baiano. Dessa forma, Tiago Gomes ressalta a carência de entrecruzamento de outros tipos de fontes independentes, eu diria até mesmo de outros relatos, dizendo, por fim, que a centralidade desse grupo de migrantes repousa, historiograficamente, em bases frágeis. E que tal atribuição de importância tem sido pouco pesquisada e muito repetida, ocasionando a falta de conhecimento sobre esse grupo e suas relações, tanto relações internas, quanto com a outros grupos. Dois questionamentos do autor evidenciam tal desconhecimento por não terem sido respondidos de modo convincente: De que forma eram vistos os “baianos” por outros grupos sociais e quais seriam as fronteiras dessa “comunidade baiana”.

A Assiata de João do Rio está longe da imagem doce e batalhadora da Tia Ciata de Roberto Moura. No capítulo sobre os feiticeiros, ela é citada novamente ganhando a alcunha  de “Assiata, outra exploradora”. Contudo, o trecho que define a personagem pelas palavras do jornalista encontra-se no capítulo A Casa das Almas:

A morte e a loucura nem sempre se limitam ao estreito meio dos negros. As beberragens e o pavor atuam suficientemente nas pessoas que os freqüentam. A Assiata, uma negra baixa, fula e presunçosa, moradora à rua da Alfândega, dizem os da sua roda que pôs doida uma senhora distinta, dando-lhe mistura para certas moléstias do útero. (RIO, 2006 p. 65/66)

Falsa mãe-de-santo, exploradora, feiticeira de embromação, presunçosa e assassina. Por seu destaque em mais de um capítulo, não temos dúvida de que Ciata era uma  personagem bastante conhecida no circuito afro-religioso. O nosso intuito em destacar todas  essas características pejorativas não é o de contra-argumentar ou de sobrepor a imagem de uma mulher por outra. O papel do historiador não é o de escolher um indício do passado e  lhe conferir autoridade. Assim como acreditamos que a metodologia utilizada por Roberto Moura com os relatos orais dos filhos e amigos de Ciata não é a metodologia mais adequada para um trabalho que se pretende histórico, já que é elementar a crítica das fontes utilizadas, não pretendemos assumir integralmente os relatos anônimos do informante (ou informantes) de João do Rio como verdade. Mas não podemos deixar de considerá-los e confrontá-los com a imagem maternal e, ao mesmo tempo, símbolo de resistência, que temos da personagem Ciata hoje.

Mas, se a intenção não é a de questionar desafiadoramente essa imagem, a utilização dos textos de João do Rio como fonte de investigação aponta para importantes questões que consideramos essenciais e que, inevitavelmente, evidencia as inúmeras lacunas que temos sobre as formas de organização religiosa do negro na cidade do Rio de Janeiro.

Podemos apontar indícios do passado apontados pelo jornalista que poderia incomodar ou fazer repensar um passado harmonioso, indícios do passado esses que um protagonista da história poderia certamente não selecionar em suas  Certamente, o elemento mais interessante da obra é o conflito dentro de um grupo específico. Antônio, o negro informante de João do Rio, poderia, na realidade, até mesmo não existir, fato que não acreditamos. Mas, não resta dúvidas de que o cotidiano desse grupo religioso foi narrado ao jornalista por pessoas que faziam parte da realidade experimentada diariamente. Portanto, as acusações, por exemplo, de “embromação” religiosa podem ser interpretadas como „falas‟ que denunciam as estratégias de deslegitimação de uns contra outros.

A ênfase em chamar Ciata de falsa mãe-de-santo e indicar que existiam muitas outras falsas nesse universo, indica uma disputa no campo religioso que não permitiria aceitar a idéia de homogeneidade de um grupo (o povo-de-santo). Ao contrário, as visitas que João do Rio fez aos terreiros por intermédio de Antônio, todas eram casas de africanos. E sabemos, por meio de referências bibliográficas sobre o candomblé em Salvador (mas também pela tradição oral) que o processo de crioulização (mestiçagem) dentro do universo religioso foi conflituoso. Os africanos não poupavam críticas ao crescimento das casas-de-santo lideradas por negros nascidos no Brasil. Um bom exemplo é a crítica de Martiniano Eliseu do Bonfim que, apesar de não ser africano, esteve ligado a casas fundadas por africanos em Salvador, além de ter ido à África, como mencionamos anteriormente:

[...]Nem mesmo visito os terreiros desde que dona Aninha  –descanse em paz”  – se foi. Considero-a a última das mães [...]. sinto saudades dela agora. Acho que toda a Bahia sente. Não faço questão de pisar em nenhum outro templo, mesmo que me convidem. Nenhum deles faz as coisas direito como ela fazia. Não acredito que saibam falar com os orixás e trazê-los para dançar nos terreiros dos templos. (MARTINIANO ELISEU DO BONFIM, Década de 1930 apud LIMA, 2004). No livro de João do Rio não há uma crítica aberta ao grupo baiano. Mas existem algumas pistas que poderiam nos permitir imaginar a possibilidade dessa rivalidade entre líderes africanos e brasileiros também no Rio de Janeiro, o que explicaria a agressividade da fala de Antônio sobre o grupo de Ciata. Destaco duas referências sobre o assunto a partir das descrições dos candomblés no Rio feitas: “As casas dos minas conservam a sua aparência de outrora, mas estão cheios de negros baianos e mulatos” (RIO, 1904, p. 29). E a mais importante  porque envolve explicitamente um caso provocativo: “A recordação de um fato triste – a morte de uma rapariga que fora à Bahia fazer santo – deu-me ânimo e curiosidade para estudar um dos mais bárbaros e inexplicáveis costumes dos fetiches do Rio”. (RIO, 2006, p. 35)





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