ANAIS DO III ENCONTRO NACIONAL DO GT HISTÓRIA DAS RELIGIÕES E DAS RELIGIOSIDADES
– ANPUH -Questões teórico-metodológicas no estudo das religiões e religiosidades. IN: Revista
Brasileira de História das Religiões. Maringá (PR) v. III, n.9, jan/2011. ISSN 1983-2859.
Disponível em http://www.dhi.uem.br/gtreligiao/pub.html
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HISTÓRIA E MEMÓRIA DO CANDOMBLÉ NO RIO DE JANEIRO: NOVAS
PERSPECTIVAS DE ANÁLISE (2)
Elizabeth Castelano Gama
UFF
Descrevendo suas possíveis funções
dentro do terreiro, é a partir da sua proeminência que o autor confere a Ciata
uma centralidade nesse meio religioso. Apesar de ser parte integrante de um
terreiro considerado tradicional, no texto aparecem referências de festas
religiosas em sua própria casa. Essas festas, religiosas ou não, estavam
garantidas, salvaguardadas da perseguição policial por ter Ciata como marido um
funcionário público ligado a polícia. Portanto, além da tradicionalidade,
existia o fator segurança, o que propiciava um ambiente perfeito para
preservação das práticas religiosas dentro dessa comunidade.O autor conjectura que, ao lado
de Hilário Jovino, Ciata teria sido a principal liderança negra no período: “espírito
agregador, familiar, religioso”. E assim define e dá a sua casa status de
capital de um continente negro dentro de uma cidade:
A casa de tia Ciata se torna a
capital dessa Pequena África no Rio de Janeiro, seu carisma se somando à
ocupação integral de seu marido, permitindo que fosse preservada sua privacidade
que se abria para a comunidade. A negra tinha respeitada sua pessoa e inviolabilizada sua casa. Privilégio? Coisa
de cidadão que quanto preto recebia ou exigia, se estranhava. Na sua casa,
capital do pequeno continente de africanos e baianos, se podiam reforçar os
valores do grupo, afirmar o seu passado cultural e sua vitalidade criadora
recusados pela sociedade. [...]. Da Pequena África do Rio de Janeiro surgiriam
alternativas concretas de vizinhança, de vida religiosa, de arte, trabalho,
solidariedade e consciência, onde predominaria a cultura do negro vindo da
experiência da escravatura, no seu encontro com o migrante nordestino de raízes
indígenas e com o proletário ou o pária europeu, com quem o negro partilha os
azares de umavida de sambista e trabalhador. (MOURA, 1983)
Podemos afirmar que é esta a
memória vitoriosa tanto da região, quanto da figura de Ciata e seu reduto
baiano. Antes de confrontarmos a imagem da Tia Ciata de Roberto Moura com a
Assiata de João do Rio na tentativa de compreensão da construção da memória da
religiosidade negra no Rio de Janeiro, consideramos importante ressaltar alguns
pontos passíveis de crítica sobre a centralidade do redutor baiano abordado
aqui. Para isso, dialogaremos com o artigo de Tiago Melo Gomes Para Além da Casa de Tia Ciata: outras
experiências no universo cultural carioca, 1830-1930
Apesar do enfoque cultural
(música), muitas questões abordadas pelo autor nos são úteis para repensar o
tema específico sobre a memória da religiosidade afro-brasileira na cidade. O
autor menciona que carnavalescos e estudioso da música popular renderam homenagens
ao grupo baiano. Entretanto, a partir da obra de Roberto Moura a atribuição de elite
a esse grupo deu um salto considerável. Tiago Gomes atribui o sucesso da
reelaboração da centralidade baiana no livro ao contexto historiográfico dos
anos 1980. Segundo o autor, nos anos 1980 houve um esforço de recuperação de visões alternativas aos
projetos modernizadores dos grupos de elite da Primeira República. A imagem de
um grupo específico e desterritorializado que buscava recriar sua identidade e
lutar por cidadania era interessante para uma nova visão sobre as relações
Estado-sociedade nesse período.
O fato é que após ganharem livro
(e filme), “Tia Ciata e seus amigos” foram adotados pela historiografia
posterior com pouca cautela:
A imagem de uma comunidade baiana
forte, numerosa – e, se não livre de disputas internas, por certo unida em
torno de sua formação cultural – é bastante
sedutora, mas a verdade é que esta centralidade baiana tem sido muito mais
afirmada do que demonstrada. (GOMES, 2004, p. 179)
O argumento central do artigo,
que visa analisar os pressupostos dessa valorização dos amigos de Tia Ciata
como formadores do universo cultural carioca, é de que por mais que tivessem
sido importantes os baianos migrados para o Rio de Janeiro, eles necessariamente
dialogaram com outros grupos e tradições, sendo o carnaval e demais atividades
culturais populares fruto de uma criação coletiva mais ampla.
Na tentativa de compreender a
proeminência desse grupo baiano na comunidade negra, Tiago Gomes diz que a
argumentação da importância desse grupo ancora-se basicamente na idéia de uma
grande migração de Salvador para o Rio de Janeiro entre fins do século XIX e
início do XX. Argumento que critica citando dados demográfico sobre migração
interprovincial utilizados por Robert Slenes que não garantem a sustentação de uma
“diáspora baiana” para a Capital. A crítica do autor que mais nos interessa e
contribui para repensar o nosso tema é a importância das tias baianas na
comunidade negra do Rio de Janeiro. Roberto Moura afirma terem sido elas o
esteio da comunidade tendo como razão principal o fato delas, através de seus
ofícios de quituteiras, tecerem uma ampla rede de contatos sociais que lhes
dariam posição de poder no interior da comunidade. Esta rede de contatos
garantiria segurança ao grupo e liberdade à comunidade baiana, o que traria
como consequência a possibilidade deles
manterem suas práticas culturais.
A base de fontes de Roberto Moura
é oral. São depoimentos dos descendentes desse grupo baiano. Dessa forma, Tiago
Gomes ressalta a carência de entrecruzamento de outros tipos de fontes
independentes, eu diria até mesmo de outros relatos, dizendo, por fim, que a centralidade
desse grupo de migrantes repousa, historiograficamente, em bases frágeis. E que
tal atribuição de importância tem sido pouco pesquisada e muito repetida,
ocasionando a falta de conhecimento sobre esse grupo e suas relações, tanto
relações internas, quanto com a outros grupos. Dois questionamentos do autor
evidenciam tal desconhecimento por não terem sido respondidos de modo
convincente: De que forma eram vistos os “baianos” por outros grupos sociais e
quais seriam as fronteiras dessa “comunidade baiana”.
A Assiata de João do Rio está
longe da imagem doce e batalhadora da Tia Ciata de Roberto Moura. No capítulo
sobre os feiticeiros, ela é citada novamente ganhando a alcunha de “Assiata, outra exploradora”. Contudo, o
trecho que define a personagem pelas palavras do jornalista encontra-se no
capítulo A Casa das Almas:
A morte e a loucura nem sempre se
limitam ao estreito meio dos negros. As beberragens e o pavor atuam
suficientemente nas pessoas que os freqüentam. A Assiata, uma negra baixa, fula
e presunçosa, moradora à rua da Alfândega, dizem os da sua roda que pôs doida
uma senhora distinta, dando-lhe mistura para certas moléstias do útero. (RIO,
2006 p. 65/66)
Falsa mãe-de-santo, exploradora,
feiticeira de embromação, presunçosa e assassina. Por seu destaque em mais de
um capítulo, não temos dúvida de que Ciata era uma personagem bastante conhecida no circuito
afro-religioso. O nosso intuito em destacar todas essas características pejorativas não é o de
contra-argumentar ou de sobrepor a imagem de uma mulher por outra. O papel do
historiador não é o de escolher um indício do passado e lhe conferir autoridade. Assim como
acreditamos que a metodologia utilizada por Roberto Moura com os relatos orais dos
filhos e amigos de Ciata não é a metodologia mais adequada para um trabalho que
se pretende histórico, já que é elementar a crítica das fontes utilizadas, não
pretendemos assumir integralmente os relatos anônimos do informante (ou
informantes) de João do Rio como verdade. Mas não podemos deixar de
considerá-los e confrontá-los com a imagem maternal e, ao mesmo tempo, símbolo
de resistência, que temos da personagem Ciata hoje.
Mas, se a intenção não é a de
questionar desafiadoramente essa imagem, a utilização dos textos de João do Rio
como fonte de investigação aponta para importantes questões que consideramos
essenciais e que, inevitavelmente, evidencia as inúmeras lacunas que temos sobre
as formas de organização religiosa do negro na cidade do Rio de Janeiro.
Podemos apontar indícios do
passado apontados pelo jornalista que poderia incomodar ou fazer repensar um
passado harmonioso, indícios do passado esses que um protagonista da história
poderia certamente não selecionar em suas Certamente, o elemento mais interessante da
obra é o conflito dentro de um grupo específico. Antônio, o negro informante de
João do Rio, poderia, na realidade, até mesmo não existir, fato que não
acreditamos. Mas, não resta dúvidas de que o cotidiano desse grupo religioso
foi narrado ao jornalista por pessoas que faziam parte da realidade experimentada
diariamente. Portanto, as acusações, por exemplo, de “embromação” religiosa
podem ser interpretadas como „falas‟ que denunciam as estratégias de
deslegitimação de uns contra outros.
A ênfase em chamar Ciata de falsa
mãe-de-santo e indicar que existiam muitas outras falsas nesse universo, indica
uma disputa no campo religioso que não permitiria aceitar a idéia de
homogeneidade de um grupo (o povo-de-santo). Ao contrário, as visitas que João
do Rio fez aos terreiros por intermédio de Antônio, todas eram casas de
africanos. E sabemos, por meio de referências bibliográficas sobre o candomblé
em Salvador (mas também pela tradição oral) que o processo de crioulização
(mestiçagem) dentro do universo religioso foi conflituoso. Os africanos não
poupavam críticas ao crescimento das casas-de-santo lideradas por negros
nascidos no Brasil. Um bom exemplo é a crítica de Martiniano Eliseu do Bonfim que,
apesar de não ser africano, esteve ligado a casas fundadas por africanos em
Salvador, além de ter ido à África, como mencionamos anteriormente:
[...]Nem mesmo visito os
terreiros desde que dona Aninha
–descanse em paz” – se foi.
Considero-a a última das mães [...]. sinto saudades dela agora. Acho que toda a
Bahia sente. Não faço questão de pisar em nenhum outro templo, mesmo que me
convidem. Nenhum deles faz as coisas direito como ela fazia. Não acredito que
saibam falar com os orixás e trazê-los para dançar nos terreiros dos templos.
(MARTINIANO ELISEU DO BONFIM, Década de 1930 apud LIMA, 2004). No livro de João
do Rio não há uma crítica aberta ao grupo baiano. Mas existem algumas pistas
que poderiam nos permitir imaginar a possibilidade dessa rivalidade entre líderes
africanos e brasileiros também no Rio de Janeiro, o que explicaria a
agressividade da fala de Antônio sobre o grupo de Ciata. Destaco duas
referências sobre o assunto a partir das descrições dos candomblés no Rio
feitas: “As casas dos minas conservam a sua aparência de outrora, mas estão
cheios de negros baianos e mulatos” (RIO, 1904, p. 29). E a mais importante porque envolve explicitamente um caso
provocativo: “A recordação de um fato triste – a morte de uma rapariga que fora
à Bahia fazer santo – deu-me ânimo e curiosidade para estudar um dos mais
bárbaros e inexplicáveis costumes dos fetiches do Rio”. (RIO, 2006, p. 35)
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