quarta-feira, 14 de novembro de 2012

FCCV - VIOLÊNCIA E LIMITAÇÕES DEMOCRÁTICAS


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Leitura de fatos 
violentos publicados na mídia, 
Ano 12, nº 20, 12/11/2012

Salvador - Bahia - Brasil



VIOLÊNCIA
 E LIMITAÇÕES 
DEMOCRÁTICAS  


No dia 28 de outubro de 2012, quando em muitos municípios brasileiros foi realizado o segundo tuno das eleições municipais, Rafael Fernandes da Silva foi morto pela polícia, na cidade do Rio de Janeiro. Ele dirigia um automóvel que teve um pneu estourado ao passar por um buraco. O estouro foi interpretado como tiros por oito policiais militares que estavam em serviço. Eles cercaram o carro e ordenaram aos ocupantes que descessem e colocassem a cabeça no chão. Como um deles, irmão da vítima (também militar) não atendeu ao pedido, os policiais passaram a atirar.
Depois da morte, os militares envolvidos na ação tentaram modificar a cena do crime. De acordo com o pai da vítima, ouvido pela Folha de São Paulo, “o PM colocou o dedo no buraco do tiro para tentar tirar a bala de fuzil lá de dentro. O irmão dele se jogou encima e impediu. Quando eu cheguei, eles estavam tentando levar o meu filho, já morto, mas eu não deixei (...). Eles estavam tentando fazer com que parecesse que houve confronto”.
Neste dia, o Brasil comemorou a festa da cidadania. As eleições transcorreram sem maiores distúrbios e, mais uma vez, as respostas contidas nas urnas foram logo reveladas aos cidadãos. A nossa “tecnologia eleitoral” foi, mais uma vez, a musa das eleições, quesito inescapável quando dos elogios vindos de todas as partes.
De dois em dois anos se assiste, no Brasil, aos rituais que caracterizam o processo eleitoral e, a não ser em casos isolados, esse interim transcorre dentro dos parâmetros legais, cabendo como nota destoante o uso da boca de urna. Isto faz notar que à beira da urna temos uma democracia satisfatória. Mas quando as questões são cotidianas, longe, portanto, das zonas eleitorais, a garantia de direitos ainda é incompleta e, muitas vezes, substituída por privilégios para alguns e impossibilidade de direitos para outros. O falecimento de Rafael Silva é expressão disto.
Há lugares nos quais a mera explosão de um pneu é capaz de desencadear uma reação policial que leva a morte de um adolescente em um bairro pobre. Como pano de fundo, fica-se com a impressão de que certo tipo de rumor em determinado local remete, automaticamente, a uma certeza: é tiro! E neste lugar, tiro é respondido com tiro. Caso haja equívoco, retira-se a bala do corpo, altera-se a cena da morte e transfere-se a responsabilidade ao morto.
Houve um erro em cena: o pneu “atirou” em vez de desempenhar o seu papel coadjuvante de rodar sobre a via pública. Foi este roubo de cena que impôs aos atores policiais o “único ato cabível” a seu desempenho na circunstância: atirar, responder com tiros. E em seguida, para dar coerência à peça, fez-se necessário criar ajustes no cenário e adequá-lo ao script para tornar verossímil a história tão corriqueira nos espaços mais desprotegidos da cidade.
A prática de transferência de culpa ao mais fraco tem permitido a vigência de um estranho poder de ferir e de matar. E isto se dá em pleno estágio de garantia dos direitos individuais e coletivos, quando o direito à vida é cláusula pétrea na Constituição e a palavra cidadania é tão proferida que pode ser reconhecida como refrão nos discursos dos poderes estabelecidos.
Passadas as eleições, vão se acumulando exceções ao código que coloca a todos em um mesmo prumo legal. Ao contrário das nossas respeitadas urnas eleitorais, são reproduzidas, em série, as modestas urnas mortuárias que são preenchidas por corpos de adolescentes e jovens muitos dos quais acusados, injustamente, de seus próprios falecimentos, assim como queriam os policiais que mataram Rafael. Depois, voltam os pleitos e com eles as promessas de mais qualidade de vida, mas a insegurança persiste em seu vigor ordinário e sem trégua, nem mesmo quando é hora de festa da cidadania. 




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