[fonte - ARQUITEXTOS ISSN 1809-6298, 028.06 ano, set 2002
CIDADE MODERNA SOBRE CIDADE TRADICIONAL (1)
Célia Helena Castro Gonsales
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Um Plano urbanístico – tanto em seu
traçado, seu aspecto físico, quanto em seu conjunto de ordenanças – ao
constituir-se a partir de uma idéia de cidade, funciona como guia, aponta para
uma direção segundo a qual a produção da cidade deve seguir.
É um modelo ou ordenamento ideal que aporta sempre uma ordem para a construção
e transformação urbanas e que, finalmente, expressa um acordo consensual para a
ação (1).
Os componentes da cidade estão
representados no plano e constituem classes de espaços formalmente
caracterizados: a rua, a praça, o parque, os espaços privados e os espaços
públicos. As tipologias edilícias – que sempre estão implícitas em um traçado –
são fundamentais na conformação desses componentes. Estão presentes na origem
da cidade porque levam consigo uma informação cultural de como construir, como
produzir o espaço habitável.
Dessa forma, o plano condiciona as tipologias
futuras, dando maior ou menor grau de liberdade para seu desenvolvimento.
As tipologias edilícias são
fundamentais também na divisão territorial ou no parcelamento do solo: nas
antigas cidades a repartição cadastral está definitivamente ligada à tipologia
dos edifícios de cada período – casa gótica-mercantil, casa pátio; na cidade
jardim, pensada a partir dos
novos conceitos de cidade surgidos no final do século XIX, o parcelamento é
gerado a partir da idéia de edificação isolada no lote; as tipologias
arquitetônicas idealizadas pelos arquitetos modernos levam ao anseio de uma
cidade sem divisão do solo, uma cidade de superquadras.
Pelotas – cidade localizada ao sul do Rio Grande
do Sul – divide-se em duas zonas básicas. A primeira seria a zona fundacional,
do século XIX, com quatro “loteamentos” sucessivos configurando um traçado em
tabuleiro ou retícula (2). Os quarteirões são divididos em lotes estreitos e
profundos cuja tipologia edilícia geradora é a casa também estreita e profunda
localizada na divisa frontal com raízes gótico-medievais européias (3). A
segunda zona seria a conformada pelas áreas de expansão desenhadas na periferia
do tabuleiro desde o começo do século XX, a partir de loteamentos com traçados
menos rígidos onde a idéia de cidade-jardim com casas isoladas é a referência
constante.
A retícula da zona de fundação se
mantém intacta até hoje. Mas o plano é sempre um tempo da cidade como nos
lembra insistentemente Aldo Rossi em sua mais famosa obra escrita. Apesar da
contundência desse traçado ortogonal inicial, variações de soluções espaciais
foram possíveis, permitidas e incentivadas. Contrariando de alguma forma a
direção apontada pelo plano original, o Plano Diretor de 1968 – ratificado
nesse sentido depois pelo 2o Plano Diretor, de 1981 – estabelece, em parte, os
mesmos preceitos da cidade-jardim – e da Carta de
Atenas (4) – já ensaiados nos novos loteamentos das áreas de expansão, para
essa zona mais antiga. Dá-se, então, dentro do tabuleiro duas situações
diferenciadas.
Na área adjacente ao miolo central,
mesmo sem propor alterações no traçado existente nem nas divisões dos
quarteirões, começa a ser aplicado um código que altera a estrutura do espaço
urbano. Através da aplicação de uma série de normas postulativas (5) como a
obrigatoriedade de recuos de ajardinamento que separam a casa da rua e
incentivo de recuos laterais, a tipologia edilícia moderna é potencializada. A
tradicional interdependência entre arquitetura e morfologia urbana tende a
desaparecer e a presença do edifício isolado que antes era uma exceção vai-se
tornando, senão norma, ao menos muito recorrente. Assim, nessas áreas, a busca
de um espaço “mais aberto”, moderno, de densidades baixas procedentes da
cidade-jardim, tem como conseqüência uma perda de parte da identidade do espaço
público a partir de sua perda de unidade.
Por outro lado, no centro
propriamente dito – delimitado pelos dois Planos como Zona de Comércio Central
–, as mudanças, quando ocorrem, se dão de maneira diferente da área adjacente.
A arquitetura moderna, apesar da nova idéia de cidade que levava intrínseca,
teve uma troca mais qualitativa com a cidade tradicional nas situações em que
não houve uma ruptura radical, onde os parâmetros básicos – principalmente a
relação edifício/lote – incluídos no traçado original foram mantidos.
Nesse setor central, não havendo
exigência de recuos, ocorre apenas um incremento da altura com edifícios
essencialmente multifamiliares e comerciais. Há uma alteração do espaço urbano
no que diz respeito ao volume de caixa de rua, mas, com as edificações
construídas sobre os limites do lote, a idéia de rua como um espaço fechado e
formalmente definido permanece.
Nesse caso, o tratamento dos acessos
e do pavimento térreo – essencialmente nos edifícios mais nobres – em geral
recebe atenção especial por parte dos “arquitetos modernos”. Já que o lote
exíguo não permite a real concretização do objeto isento, dá-se certa
modificação do espaço fechado da rua-corredor através de reentrâncias e vazios
ao nível da calçada e rupturas das esquinas, possibilitando uma atitude moderna
que não descaracteriza o “espaço contido” característico dessa área. Tais
gestos modernos, nesses edifícios localizados no centro comercial e histórico,
enriquecem o espaço urbano tradicional ampliando as visuais e criando, por exemplo,
perspectivas mais abertas em relação aos principais monumentos da cidade.
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