[fonte - jornal Folha de São Paulo.São Paulo (SP - Brasil), 28 de outubro de 2012]
AVENIDA BRASIL
FERREIRA
GULLAR
Pretenderia o autor nos convencer de
que quem não se torna bandido é babaca? Seria uma péssima lição
Faz muitos anos que uma novela de
televisão não desperta tanto interesse do
público noveleiro quanto esta "Avenida Brasil", cujo derradeiro
capítulo foi ao ar na noite de sexta-feira, 19 deste mês.
De fato, a novela conquistou não
apenas os aficionados do gênero, como muito mais gente, até mesmo quem nunca
assiste a novelas. A coisa chegou a tal ponto que, segundo foi noticiado, a
presidente Dilma determinou o adiamento do comício pela eleição de Haddad, em
São Paulo, que deveria realizar-se na noite daquela sexta-feira, temendo que
não fosse quase ninguém.
Outro indício, jamais registrado
antes, desse interesse pela novela de João Emanuel Carneiro foi o pique de
consumo de energia
elétrica, logo após a exibição dos capítulos
finais. É que o pessoal deixava de fazer qualquer coisa -desde cozinhar até
tomar banho ou ligar o computador- para só fazê-lo após o fim do capítulo. A
novela interrompia o curso da
vida. Isso foi o que ouvi de um repórter de televisão.
Qual a razão de tanto sucesso, admito
não saber ao certo. Imagino muitas explicações mas, se arrisco uma delas, diria
que é o tipo de dramaturgia adotado pelo autor. Uma das características do
gênero é a morosidade da ação dramática, que resulta numa série de outras
consequências.
A razão disso é que a novela tem que
durar meses, o que obriga a um número fantástico de capítulos -esta, de que
falamos aqui, teve nada menos que 179, transmitidos durante sete meses.
Defendo a tese de que toda
dramaturgia não dura mais que uma hora e meia a duas horas. Essa é a duração de quase todos os
filmes e peças teatrais. Não existe dramaturgia para durar sete meses.
Em função disso, os nossos
telenovelistas são obrigados a criar histórias paralelas, que se mesclam à
história principal, tudo com o propósito de fazer com que a novela dure tanto.
Isso, como já disse, faz com que a ação dramática se torne prolixa e lenta.
Essa lentidão não houve na
"Avenida Brasil". Pelo contrário, nela, a ação dramática era sempre
intensa, e isso se deveu ao fato de que, a cada capítulo, inesperados conflitos
surgiam envolvendo os diferentes núcleos e os muitos personagens.
O preço pago
pelo autor, por lançar mão de tais recursos, foi a implausibilidade de certas
situações e a incoerência de atitude dos personagens, mas que João Emanuel, com
sua competência, conseguiu muitas vezes superar, ganhando pelo menos a
tolerância do telespectador.
É certo que, apesar dessa
originalidade, em comparação com a forma dramatúrgica comumente adotada nas
telenovelas, João Emanuel também se valeu de um recurso usado por todos os
teledramaturgos desde o sucesso obtido pela vilã Odete Roitman (1988). Não por
acaso, a execrável Carminha se tornou a principal agente da ação dramática de
"Avenida Brasil".
Neste ponto, esta novela só difere
das demais pelo grau de vilania e crueldade que atribuiu à personagem. Aliás,
nisto, ela é quase imbatível, já que quase todos os personagens são de uma
sordidez sem limites. Com a agravante de que os que escapam disso -que não
matam, não traem, não subornam nem se deixam subornar- são idiotas ou tolos,
como Tufão, marido de Carminha, o corno manso por excelência.
Para minha surpresa, ouvi num debate
de televisão que o êxito de "Avenida Brasil" se deve ao fato de ser
ela o retrato verdadeiro da nossa sociedade. Se isso é correto, moro em outro
país sem o saber, já que as pessoas com quem convivo e as famílias que conheci
ao longo de minha vida -e bota vida nisso- nem de longe se parecem com os
personagens criados por nosso brilhante teledramaturgo.
Certamente li nos jornais e ouvi
contarem histórias escabrosas, implicando traições, homicídios e falcatruas,
mas nunca na escala em que nos mostrou a novela, onde todo mundo é bandido ou
babaca. Pretenderia o autor nos convencer de que quem não se torna bandido é
babaca? Seria uma péssima lição.
Mas não se trata disso. Novela é
ficção, não é a realidade, nem poderia ser. Como se sabe, a arte existe porque
a vida não basta. E os bons sentimentos não dão boa dramaturgia. Haja vista o
último capítulo da novela.
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