Sem passagem para Barcelona | |||
| |||
Samuel Silva, português, Garota Ruiva, desenho fotorrealista com caneta Bic
SORTE
O destino não nos pertence
nem a deuses runas
ou a leitoras de entranhas
A nudez e a tardia
indisciplina dos corpos
inutilmente perseguem a luz
Como agora
arriscar as veias?
Onde se apaga
o vazio?
Soube de búfalos
que trocam o cansaço
pela própria morte
Samuel Silva, Bebê nas mãos do pai
OPÇÃO Arquitetos adotam a transparência
como regra e matéria-prima
cobrem as cidades com casas de vidro
quase tudo se sabe
de lado a lado
é livre a visão
do peito rasgado
da luz que se apaga
dois gatos à espera
papilas que exultam
(o verbo esconder resseca
as coordenadas abertas)
há até quem prefira
vender suas vestes
e assim exposto
no ventre da urbana vitrine
apenas estar
em linha reta
outros rezam
pelo final das tempestades
ou pelo tiro na testa
Samuel Silva, Jaguar
PERPLEXIDADE I
O Deus que conheço
não morreu
Está
Entre a fome e fama
em meio ao que explode ou afaga
flor e moeda
Terras que escorrem
matam crianças
cavalos
a última ave
Mas sim
está
II
Depois do grito do riso
restam farpa tarefa burla
atalho algum que me
engane ou salve?
III
No encalço da crença
um céu branco
estanca
Samuel Silva, Duas irmãs
ANIVERSÁRIO Cinquenta anos não vieram
com astúcia e ciência
Não os convidei
Caminhava
quando me acertaram
Com eles se abriu
imensa folha
de papel em branco
encobrindo
o céu
o Cristo no monte
as horas
E eu
— só —
não sei
Samuel Silva, Bebezinha
CLÍNICA (à maneira de Eltânia André)
I
Sofremos iguais
inacabados e iguais
aqui
em Bali
Nepal
Morremos iguais
ignorantes e iguais
aqui
em Manaus
Cadaval
Uma flor igual
em cada cova
funda ou rasa
II
O relógio desperta
abrem-se os sinais
os filhos de bicicleta
Samuel Silva, Retrato de Mulher
CRISE DA POESIA Há quase metade de meio século
o marido dela tinha fartos cabelos
negros e lisos
Mas morreu aos vinte e oito anos
de infecção ao extrair o segundo siso
Ainda assim teve cabelos negros e lisos
O desconhecido na cerimônia de casamento
tem bastos cabelos grisalhos
está ali ao lado da mulher
um pouco gorda e muito decotada
e desce os dedos pelo risco
de suas costas nuas
Confortável em seus cabelos de praia
há de fazer churrascos aos sábados
quem sabe jogar buraco às quartas
Alguém diz que busco ser poeta
vinte e quatro horas por dia
e me pergunto se há poesia
em invejar os cabelos do morto
ou do idoso grisalho
que é anônimo
e assim
se basta
Samuel Silva, Moça com brinco de pérola (a moça não é a de Vermeer, mas a do filme, Scarlett Johansson)
GOTHAM I Nesta noite
Gotham não será salva
o herói passou o dia em luta
com seus hiatos e reticências
e esse céu malva arde a febre
das ausências e cobranças
Além disso há a miopia
e alergia a lentes de contato
Não se usa óculos sobre máscara
e faz tempo faz tempo
foi-se a Mulher-Gato
Número 342 - Ano 13 |
São Paulo, quarta-feira, 28 de outubro de 2015
|
«O tempo / é escritura de estilhaços. A paz é um pássaro sem asas.» (Myriam Fraga) *
| |
Nenhum comentário:
Postar um comentário