domingo, 1 de junho de 2014

FCCV - MORTE: A ÚLTIMA FALTA DE CIDADANIA

FCCV

FORUM COMUNITÁRIO DE COMBATE À VIOLÊNCIA

Leitura de fatos violentos publicados na mídia

Salvador - Bahia - Brasil

Ano 14, nº 03, 27/03/2014 

MORTE: A ÚLTIMA FALTA DE CIDADANIA


Em nossas leituras, é necessário, vez por outra, contar com a disposição de voltar atrás e girar em torno de um mesmo caso e capturar novas perspectivas. Uma mesma situação sugere coisas muito diversas. Por exemplo, falamos de Amarildo, daquele pedreiro que desapareceu na UPP da Rocinha depois de ser levado pela polícia. Atualmente o caso ocupa o signo da resignação no que concerne ao óbito do desaparecido. A “esperança” reside na busca pelo corpo, mas este derradeiro sinal palpável parece inexistente, como se o Amarildo tivesse sido cancelado enquanto ente físico e assumido a dimensão do nada, não obstante a acusação contra policiais e as suas prisões. Nesse particular, ou seja, no que concerne ao desaparecimento do corpo, o caso Amarildo se aproxima do de Elisa Samúdio. Nesse último, a morte está confessada, alguns dos acusados foram declarados culpados, eles confessaram crimes, mas o local do corpo é ainda mistério.


Há outro tipo de desaparecimento cadavérico que se caracteriza como achado de uma “arqueologia macabra” e resulta da descoberta de ossadas em locais inusitados, espécie de esconderijo de vítimas de crimes violentos, cujos algozes conhecem opções para o sepultamento de cadáveres acometidos pela mesma forma de falecimento. Em princípio, não há diferença entre os casos Amarildo e Samúdio quanto ao modelo da arqueologia macabra. Certamente foram ocultados com a mesma finalidade, ou seja, não serem jamais encontrados e, principalmente, identificados.
Entretanto, há uma peculiaridade na história da ausência destes dois indivíduos que os coloca em condições distintas dos outros desaparecidos os quais contam com uma além-morte “bem sucedida” que favorece ao ocultamento dos corpos.  Isto quer dizer que o modelo standardde desaparecimento não ocasiona questionamentos suficientes a ponto de impor dúvidas quanto às justificativas iniciais e já “clássicas” oferecidas. 
No caso de Samúdio, o aspecto que contribuiu para a falta de congruência em relação ao padrão foi o envolvimento da desaparecida com o goleiro Bruno, do Flamengo. A existência de uma busca de reconhecimento de paternidade do filho de Samúdio alterou o comportamento da mídia pelo fato de ser o famoso jogador Bruno o possível pai. No período, o atleta estava muito bem situado no mercado, chegando a ser cogitado como um dos goleiros a atuar na seleção brasileira. Neste contexto, o assunto assumiu lugar de centralidade na agenda midiática. Trata-se de um conjunto de questões pessoais que, através da mídia, tomaram feição de problema de interesse público.
Quanto a Amarildo, a história não conta em seu ponto de partida com elementos associados à atenção midiática. O seu desaparecimento, depois de ter sido levado pela polícia à UPP da Rocinha, colocou em cena a comunidade mobilizada e, com o passar dos dias, isto fez desencadear apresentações em outros palcos, cada vez menos anônimos, da sociedade. Cresceu, assim, a força da pergunta: onde está Amarildo? A pressão intimidou esferas importantes do poder, fazendo-se superar aquela interpretação básica, aplicável ao sumiço de um pobre qualquer e que está associada a uma culpa atribuída ao desaparecido. 
Saindo da zona básica da “autoevaporação”, o sumiço do pedreiro adquiriu força de episódio a ser explicado de modo convincente, contando com o apoio luxuoso de Caetano Veloso, Marisa Monte e a simpatia de setores influentes da sociedade, a exemplo da mídia televisiva e de todas as outras. Cabe, então, pensar sobre a trajetória que vai do anonimato à transformação desta história em acontecimento midiático. Sem chegar a tanto, esta leitura tenta esboçar um começo desta análise.
Os dois exemplos mencionados podem sugerir uma leitura preocupante no que tange à sorte dos mortos. Em ambos os casos o peso da reclamação (do clamor público) impôs que o Estado, através do poder judiciário, reconhecesse a morte das duas vítimas, identificasse os autores das violências e atuasse em conformidade com as normas decorrentes do convencimento em relação aos crimes.
Diante disso, cabe questionar: e como ficam os casos que são protegidos pelo anonimato por não disporem de potencialidade midiática? Que poder, dentro do “mercado” dos mortos por violência, tem aquele corpo, aquela ossada sem nome, sem nada?


Quantos mortos morrem ali e quanto frágeis são as suas histórias de vida que não conseguem ser resgatados para o mundo das mortes oficiais? Quantos lutos em torno de adeuses sem corpos? Não há número, não há conta. Também isso é sinal de nula importância, a última versão da falta de cidadania, última estação da exclusão social.
  


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