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FCCV
Leitura de fatos violentos
publicados na midia
Salvador - Bahia - Brasil
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Ano 14, nº 5, 04/06/2014
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No dia 3 de maio de 2014 aconteceu um crime bárbaro. Houve um linchamento de uma mulher de 33 anos de idade. De acordo com a mídia, os agressores são moradores do bairro em que a vítima morava.
Diante das informações anteriores é provável que muitos leitores se perguntem: o que é que ela fez para ter tão triste fim?
A questão acima mencionada já se estabilizou na sociedade enquanto referência típica de reação às mortes violentas. A “explicação” para o óbito está na vida do morto, ele se colocou no mundo como um imã em relação a este tipo de finitude. Portanto, a disposição social está em torno de um saber preciso e circunstancial, não comportando um querer saber trabalhoso e prenhe de dúvidas, à semelhança de grandes mistérios.
Não há dúvidas de que ela, a vítima, é a primeira culpada de sua morte, afinal foram os próprios vizinhos que, num ataque de fúria incontida, desferiram tantos socos e foram tantos golpes que ela não resistiu. Falta apenas um detalhe: o que foi que ela fez?
E assim tem crescido um tipo de apreciação que tende a oferecer conformidade entre a morte violenta e sua vítima, com tal exatidão que não deixa espaço para maiores questionamentos. O perecimento e o perecido compõem uma unidade, um só corpo. É exemplo trágico de complementaridade.
Fabiane Maria de Jesus morreu assim. No chão da rua, agredida por uma multidão. Foi vítima de um boato divulgado por um site do Guarujá, cidade litorânea do estado de São Paulo, que noticiou a existência de uma sequestradora de crianças na cidade, que usava as crianças em rituais de magia negra.
A multidão se convenceu de que a sequestradora era Fabiane, embora ela fosse moradora do bairro e não tivesse problemas com a vizinhança. E assim, como que, magicamente, a pessoa conhecida na vida diária transformou-se em um monstro, sem direito à discussão ou à dúvida. Tem-se, assim, uma necessidade incontrolável de encontrar e eliminar a assombração. E de tão assombrados, os moradores criam e creem ter encontrado o ser anômalo. Jamais cogitariam serem eles, em forma de multidão, os monstros.
O corpo de Fabiane sobre o solo, todo machucado é enquadrado na tela de TV e reportado como vítima inocente de crime bárbaro. A inocência de Fabiane soou como acusação contra seus algozes muito mais que a sua vida que foi suprimida. Ou seja, o equívoco não foi tratado como coisa menor, ao contrário, tornou-se o elemento crítico de maior peso. O aspecto moral subjacente era o desencaixe entre a vítima e aquela forma de morte. É lamentável porque foi em vão, porque não limpou, não higienizou o ambiente social.
Mais duro ainda foi o render-se conta de que a história da sequestradora de crianças era falsa enquanto a morte de Fabiane é verdadeira. Estes elementos tornaram o caso mais lamentável que o ânimo violento da multidão. É como se ela, a multidão, tivesse empreendido uma ação mecânica diante de um acontecimento, por ela considerado, crítico. E se tudo fosse verdade, as agressões seriam menores, dado o peso asqueroso dá vítima. Agora pesa a inocência da vítima e a falsidade da história.
Casos como estes evidenciam o quanto a vida tem sido objeto de desconsideração quando se tem a crença de que o indivíduo não é merecedor de sua própria existência. Por esta lógica, algumas mortes são tomadas como úteis, necessárias, desejáveis. Diante dessa classificação, tem ocorrido, com grande frequência, como consideração póstuma às vítimas de violência, a rotulação de indivíduos de alta periculosidade. Seria este o fim de Fabiane se não tivesse sido descoberto o “engano”.
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